A
expressão “nossos irmãos mais velhos” surge aplicada aos judeus e foi enunciada
a primeira vez por João Paulo II, como reforço de uma outra “nossos irmãos
prediletos”, na sua visita à Sinagoga de Roma (a primeira de um
Papa àquela Sinagoga)
a 13 de abril de 1986 e repetida pelo Papa Francisco no passado dia 17 de
janeiro numa sua visita similar. E sucede às nefastas expressões “pérfidos
judeus” e “perfídia judaica”, inseridas na 8.ª prece das “orações solenes” ou
“oração dos fiéis” da Ação Litúrgica da tarde de Sexta-feira Santa antes da
reforma decretada pelo Concílio Vaticano II e que exprimiam a notória ideologia
antissemita, não baseada em caraterísticas biológicas ou de raça, como
preconizava o nazismo, mas em pressupostos religiosos, históricos e sociais (quiçá
pelo seu poder organizativo e jeito financeiro e especulativo), assente no facto de terem dado
a morte a Jesus de Nazaré não o tendo acolhido como o Messias.
É
a mácula exclusivista que atravessa em muito a História da Igreja em que alegadamente
Benito Mussolini terá fundamentado as suas leis antissemitas e antirraciais.
Entretanto,
pelo menos a partir do auge da II Guerra Mundial, em que os judeus, praticamente
de quaisquer lugares onde tivessem pouso, eram deportados para campos de
concentração em que seriam objetos das maiores torturas, a que inexoravelmente
se seguia a morte nas mais desumanas condições, a ótica eclesial mudou. João Paulo II, no seu discurso de 1986,
dizia:
“Também
a comunidade hebraica de Roma pagou um alto preço de sangue. E, num gesto
significativo nos anos negros da perseguição racial, abriram-se as portas dos
nossos conventos das nossas igrejas, do Seminário Romano, de edifícios da Santa
Sé e da própria Cidade do Vaticano, para oferecer refúgio e salvação a tantos
hebreus de Roma, procurados pelos perseguidores.”
Depois, chega o pontificado de João XXIII, que na perspetiva
do respeito por todos os homens, do apelo a todos os homens de boa vontade,
teve um belo gesto quando passava pela cidade de Roma: mandou parar a comitiva
e abençoou os judeus que vinham a sair da sua sinagoga. Tão apreciado foi este
gesto papal e a postura do bom Papa João que no momento das suas exéquias o
rabino-chefe com um número considerável de judeus se misturaram com a multidão
católica na Praça de São Pedro. E veio o Concílio, que produziu um pequeno, mas
notável documento, a Nostra Aetate (NA), declaração sobre as relações da Igreja com as religiões
não cristãs, que, no respeito por todo o sentir religioso, mencionou
expressamente o hinduísmo e o budismo, o judaísmo e o islamismo. Por outro
lado, a encíclica Ecclesiam Suam, de
Paulo VI, na forte preocupação do diálogo da Igreja com o mundo, incentivou o
diálogo inter-religioso.
Bento XVI, a 17 de janeiro de 2010, visitou a Sinagoga de
Roma que denominou de “Templo Maior dos Judeus de Roma”.
O Papa polaco e o Papa alemão – que, na esteira de Paulo VI, visitaram
a Terra Santa, quiseram visitar os irmãos judeus que praticamente convivem com
o Pontífice quase porta a porta. Por outro lado, apesar das diferenças
históricas, sublinharam o património comum de cristãos e judeus, estribado na
Bíblia Hebraica onde ressalta a fé abraâmica e dos demais patriarcas, a
economia de salvação assente no dinamismo da aliança com Deus, a força
inspiradora e normativa da Lei (sintetizada
no Decálogo outorgado a Moisés pelo Deus único, vivo e verdadeiro), a profundeza
da literatura sapiencial (a Igreja assumiu
os salmos e demais cânticos bíblicos como base da sua oração oficial) e a força da
literatura e da postura corajosa dos profetas.
Para tanto, os Pontífices tiveram o bom senso de apresentar,
em representação da Igreja, a autocrítica sobre a postura histórica em relação
ao judaísmo e oferecer – em nome da fraternidade proveniente das raízes comuns
– a cooperação sincera e intensa para o diálogo, a cooperação e a provocação
comum da paz.
***
Por seu turno, Francisco assume-se como o terceiro
Papa a visitar a Grande Sinagoga de Roma, seguindo os passos de seus
antecessores Bento XVI e João Paulo II. Esta sua visita ocorreu, como se disse,
no passado domingo, 17 de janeiro – dia em que a CEI (Conferência
Episcopal italiana) celebra o
“Dia do diálogo entre Católicos e Judeus”,
“cumprindo mais um gesto de fraternidade e unidade entre as duas religiões”.
Depois de agradecer as palavras que lhe foram
endereçadas pelos anfitriões na sua primeira visita àquela Sinagoga, como Bispo
de Roma, expressou àquela Comunidade, como a todas as demais Comunidades
judaicas, a saudação fraterna de paz da Igreja de Roma e de toda a Igreja
católica. Em seguida, faz uma pequena resenha sobre o seu relacionamento com as
comunidades judaicas:
“As nossas
relações interessam-me muito. Em Buenos Aires, eu já estava acostumado a ir às
sinagogas para encontrar as comunidades lá reunidas; seguir de perto as
festividades e comemorações judaicas; dar graças ao Senhor, que nos dá a vida e
nos acompanha no caminho da história.”
Reconhecendo que, se criou, ao longo do tempo, uma
união espiritual propícia ao “nascimento de autênticas relações de amizade, que
inspirou um empenho comum”, giza o essencial no diálogo inter-religioso: “encontrar-nos,
como irmãos e irmãs, diante do nosso Criador e a Ele prestar louvor;
respeitar-nos e apreciar-nos mutuamente e colaborar”.
Porém, no diálogo judeu-cristão, descobre “uma ligação
única e peculiar em virtude das raízes judaicas do cristianismo”: judeus e
cristãos devem “sentir-se irmãos, unidos pelo próprio Deus e por um rico
património espiritual comum” (cf NA, 4) em que nos devemos basear e em torno do qual havemos
de continuar a construir o futuro.
Aludiu às visitas dos seus predecessores para
exprimir, em seguida, o seu ponto de vista alinhado com a tradição mais recente
da Igreja pós-conciliar.
Com efeito, de acordo com o pensamento de João Paulo
II, os judeus são “os nossos irmãos e as nossas irmãs mais velhas na fé”, uma
vez que “todos nós pertencemos a uma única família, a família de Deus”. Por
isso, Ele acompanha-nos a todos e nos protege como seu Povo; “juntos, como
judeus e como católicos, somos chamados a assumir as nossas responsabilidades
por esta cidade [de Roma], dando a nossa contribuição, também espiritual, e
favorecendo a resolução dos diversos problemas atuais”.
Na rota dos seus predecessores e evocando o
cinquentenário da Declaração Nostra Aetate
do Concílio Vaticano II, reconhece que fora essa a pedra de toque documental
para “o diálogo sistemático entre a Igreja católica e o Judaísmo”, traçando o
caminho da “descoberta das raízes judaicas do cristianismo” e do “não a toda a forma de antissemitismo” e
à “condenação de toda a injúria, discriminação e perseguição que daí derivam”.
Já no passado dia 28 de outubro (dia
comemorativo do cinquentenário da NA), na Praça São Pedro, Francisco saudara um grande
número de representantes judaicos, aos quais explicitou:
“A
verdadeira e própria transformação da relação entre Cristãos e Judeus, durante
estes 50 anos, merece uma gratidão especial a Deus. A indiferença e a oposição
se converteram em colaboração e em benevolência. De inimigos e estranhos,
tornamo-nos amigos e irmãos”.
Com efeito, a NA
“definiu, teologicamente, pela primeira vez e de maneira explícita, as relações
da Igreja católica com o Judaísmo”. E, se é certo que “não resolveu todas as
questões teológicas” que atingem esta relações, contudo, estabeleceu “uma
referência, de modo encorajador, fornecendo um estímulo importantíssimo para
ulteriores e necessárias reflexões”.
Depois, o Pontífice recordou que a Comissão para as Relações religiosas com o
Judaísmo publicara, em 10 de dezembro de 2015, um novo documento sobre as
questões teológicas, surgidas nos últimos decénios após NA. De facto, merece ser sempre mais aprofundada a dimensão teológica
do diálogo judaico-católico.
Em conformidade com este pressuposto, Francisco
encoraja “todos os que estão comprometidos com este diálogo a continuar neste
caminho, com discernimento e perseverança” e passa a tecer alguns considerandos:
- Teologicamente, é clara “a indivisível ligação que
une Cristãos e Judeus”, de modo que “os cristãos não podem deixar de fazer
referência às raízes judaicas” e “a Igreja, mesmo professando a salvação,
mediante a fé em Cristo, reconhece a irrevogabilidade da Antiga Aliança e o
amor constante e fiel de Deus por Israel”.
- Para lá das questões teológicas, são de encarar em
conjunto “as situações difíceis, com as quais o mundo de hoje se defronta”, designadamente
“os conflitos, as guerras, as violências e as injustiças” que provocam “ferimentos
profundos na humanidade e nos impelem a comprometer-nos pela paz e a justiça”.
- Fazendo jus à vida, que é sagrada “como dom de Deus”,
defende que “a violência do homem contra o homem está em absoluta contradição
com qualquer religião digna deste nome e, em particular, com as três grandes religiões
monoteístas”. Fundamenta-se no 5.º preceito do Decálogo, que estipula “Não matar” (Ex 20,13). Por outro lado, assegura que “Deus, que é Deus da
vida, quer sempre promovê-la e salvaguardá-la”. Por consequência, “nós, criados
à sua imagem e semelhança, devemos fazer o mesmo” e ter em conta que “todo ser
humano, como criatura de Deus, é irmão, independentemente da sua origem ou da
sua pertença religiosa”.
- Assim, toda pessoa deve ser objeto da benevolência humana
tal como o é da benevolência Deus, “que estende a sua mão misericordiosa a
todos, independentemente da sua fé e proveniência”, dispensando “atenção particular
aos que mais precisam: os pobres, os enfermos, os marginalizados, os indefesos”.
Pelo que aonde quer que a vida corra perigo somos chamados “a promovê-la e
salvaguardá-la”. E, “quanto mais nos sentirmos ameaçados”, tanto mais se deverá
“confiar em Deus, “nossa defesa e o nosso refúgio” (cf Sl 3,4;
32/31,7),
procurando “fazer resplandecer em nós o seu rosto de paz e de esperança”, nunca
cedendo “ao ódio e à vingança”.
- Na convicção de que “a violência e a morte jamais
terão a última palavra diante de Deus, que é Deus do amor e da vida”, devemos todos
“invocá-Lo com insistência, para que nos ajude a praticar – na Europa, na Terra
Santa, no Oriente Médio, na África e em qualquer outra parte do mundo, – não a
lógica da guerra, da violência, da morte, mas a da paz, da reconciliação, do
perdão, da vida”.
Por fim, aludindo às violentas perseguições que o povo
judeu teve que padecer ao longo da História, evocou os mais de 6 milhões de
pessoas que, “apenas por pertencerem ao povo judaico, foram vítimas da barbárie
mais desumana perpetrada em nome de uma ideologia, que queria substituir Deus
pelo homem”, anotando que, só “em 16 de outubro de 1943, mais de mil homens,
mulheres e crianças da comunidade judaica de Roma, foram deportados para
Auschwitz”. Depois, na certeza de que “o passado deve servir de lição para o
presente e o futuro”, declarou que a Shoah
nos ensina a necessidade permanente da “máxima vigilância, para podermos
intervir, tempestivamente, em defesa da dignidade humana e da paz”. E, apelando
à gratidão por tudo o que foi possível realizar nos últimos cinquenta anos,
porque aumentaram e aprofundaram a compreensão recíproca e a mútua confiança e
amizade”, formulou o convite a que “peçamos juntos ao Senhor a fim de que
conduza o nosso caminho rumo a um futuro bom e melhor”.
***
Todas estas evocações, esclarecimento doutrinal, propósitos
e compromissos não fazem esquecer o passado nem o desculpam. No entanto, podem
ajudar a resgatá-lo e a olhar em conjunto o futuro de esperança e de felicidade.
“Que o Senhor nos abençoe e nos guarde, faça resplandecer sobre nós a sua face
e nos dê a sua graça. Que o Senhor volva o seu rosto para nós e nos dê a paz” (Nm 6,24-26).
2016.01.19 –
Louro de Carvalho
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