Enquanto
em muitos lugares já se celebrava a solenidade da Epifania do Senhor, o Papa Francisco
– porque noutros países, incluindo a cidade-estado do Vaticano, a Solenidade se
celebra a 6 de janeiro no cumprimento da tradição ocidental gregoriana –
continua a falar do mistério do Natal. E nunca a meditação natalina será descabida
ou excessiva enquanto a epifania de Deus não chegar, com todas as suas
consequências, ao coração de todas as pessoas, povos e suas estruturas políticas
e socioeconómicas.
Da
liturgia do II domingo depois do Natal, o Papa salienta a leitura evangélica do
prólogo do Evangelho de São João, que exalta o mistério do “Verbo, a Palavra
criadora de Deus, que se fez carne da nossa carne e habita entre nós” (Jo
1,14). Diz o
Pontífice que “essa Palavra mora no céu, na dimensão de Deus, mas desceu sobre
a terra” com uma finalidade específica, “para que nós a escutássemos e pudéssemos
conhecer e tocar com a nossa mão o amor do Pai. Com efeito, o Verbo de Deus “é
o próprio Filho Unigénito, que Se fez homem, cheio de amor e de fidelidade” (cf
Jo 1,14). Dito de outro modo, o “Verbo de Deus encarnado é o próprio Jesus”.
O
predito prólogo é um hino em que se condensa o núcleo do mistério natalino e em
que São João nos leva a meditar na relação íntima que une o Verbo ao Pai e nos
ensina como a Palavra pela qual o Pai Se exprime se veio progressivamente a
manifestar ao mundo. Primeiro, Deus revelou-Se pela criação; depois, pela
revelação feita ao povo de Israel; e, finalmente, pela encarnação do Verbo –
fazendo-Se carne, habitou connosco.
Este
advento da Palavra na nossa carne é a prova de que Deus é próximo, é Amor e
quer ter a sua morada no meio de nós e em nós, de modo que, transformando-nos
no seu amor a ponto de nele amarmos os irmãos, possamos chegar até Ele.
No entanto, segundo Francisco, o
evangelista do 4.º Evangelho não subestima a dramaticidade da Encarnação do Filho de Deus, acentuando que os
homens não acolheram o dom do amor de Deus: “O Verbo era a Luz verdadeira, que, ao
vir ao mundo, a todo o homem ilumina. Ele estava no mundo e
por Ele o mundo veio à existência, mas o mundo não O reconheceu.” (Jo 1,9-10). E, mais adiante, o
evangelista é mais claro: “Veio para
o que era seu, e os seus não O receberam” (Jo, 1,11).
O Verbo é a luz.
Porém, os homens preferiram as trevas. Diz o Papa que “os homens fecharam a
porta na face do Filho de Deus”. Isto sucedeu e continua a suceder porque “o mistério
da iniquidade contamina a nossa vida”. Por isso, o insigne discursante faz
apelo à nossa vigilância e atenção para que “o mistério da iniquidade não
prevaleça”. Já o Livro do Génesis nos ensina a compreender esta realidade ao constatar
que o mal está acocorado à nossa porta e nos espreita (cf Gn 4,7). Ai de nós se o deixamos entrar:
seria então fechar a nossa porta a qualquer outra pessoa! Ao invés, – recorda o
Papa – “somos chamados a escancarar a porta do nosso coração à Palavra de Deus,
ou seja a Jesus, para nos tornarmos seus filhos”.
É claro que
não podemos ficar presos ao lado dramático da encarnação, mas atentar naquela vertente
que nos conforta e nos estimula:
“Mas, a quantos O receberam, aos que n’ Ele creem, deu-lhes
o poder de se tornarem filhos de Deus. Estes não nasceram de laços de
sangue, nem de um impulso da carne, nem da vontade de um homem,
mas de Deus.” (Jo 1,12-13).
De facto, quem recebe Jesus
recebe d’ Ele a vida eterna, integra o Povo da Nova Aliança, que peregrina
pelos caminhos da terra sob o esplendor da verdadeira luz.
***
Francisco, ao
recordar que esta perícopa do Evangelho já fora proclamada no dia de Natal na
missa do Dia (a 4.ª, na
sequência da missa vespertina, da missa da meia-noite e da missa da aurora), justifica a razão de ser de ela
ser apresentada uma segunda vez:
“É o convite da santa Mãe Igreja ao
acolhimento desta Palavra de Salvação, este mistério de luz. Se efetivamente o
acolhermos, se acolhermos Jesus, cresceremos no conhecimento e no amor do
Senhor e aprenderemos a ser misericordiosos como Ele. “.
Não perde o
Pontífice a oportunidade de falar ao povo da misericórdia e de lançar o repto à
vivência da espiritualidade do Ano da Misericórdia:
“Especialmente neste Ano Santo da Misericórdia,
façamos com que o Evangelho se torne cada
vez mais carne também na nossa vida. Abeirar-se do Evangelho, meditá-lo e encarná-lo
na vida de cada dia é o melhor modo de conhecer Jesus e de O levar aos outros.
Esta é a vocação e a alegria de todo e cada um dos batizados – mostrar e dar
Jesus aos outros. Para isso, é necessário conhecê-Lo e tê-Lo dentro de nós como
Senhor da nossa vida.”.
Depois,
garante que “Ele nos defende do mal, do diabo, que está postado em frente à
nossa porta, frente ao nosso coração e pretende entrar”.
Para lhe
fazer frente, os cristãos devem confiar-se a Maria, a Mãe, e voltar-se para a
contemplação do mistério da manjedoura do presépio em que Jesus Menino está
patente, revestido de serenidade e inspirando simplicidade e adoração.
Será na lição
do presépio que se aprenderá o dinamismo da construção da paz e da sua
aceitação, do desejo permanente da paz e da educação para a paz.
***
Também, neste
primeiro domingo do ano novo, o Papa “renovou a todos augúrios de paz e bem no
Senhor” e solicitou que, “nos momentos de alegria e nos de tristeza, nos confiemos
a Ele, que é a nossa misericórdia e a nossa esperança”. E, recordando o lema do
Dia Mundial da Paz de 2016, “Vence a indiferença e conquista a paz”,
acredita que o poderemos pôr em prática com a graça de Deus e recomenda a
leitura diária de um passo do Evangelho para melhor conhecer Jesus, escancarar
o nosso coração a Cristo e fazê-lo mais conhecido pelos outros.
***
Na verdade, o
mistério do Natal de Cristo patenteia a constante presença de Deus na história
da humanidade. Além disso, Deus não pretende salvar os homens à distância, mas acompanhando-os
na sua caminhada diária, nos seus tempos e espaços. Se, n’ Ele vivemos e nos movemos,
também Ele se move connosco e em nós.
O prólogo do
Evangelho de São João é réplica do hino de júbilo a Deus formulado por São
Paulo na epístola aos Efésios pelo maravilhoso plano salvífico de Deus centrado
em Cristo – ou seja, tudo o que o Pai fez por nós através de Cristo e que se
realiza no Espírito Santo. Desde toda a eternidade o Senhor nos escolheu e predestinou
para a filiação divina, para o amor e para a santidade. Eis o texto paulino (Ef 1,3-14):
Bendito seja
o Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que do alto do Céu nos abençoou com
toda a espécie de bênçãos espirituais em Cristo. Foi assim que Ele nos escolheu
em Cristo antes da fundação do mundo para sermos santos e irrepreensíveis na
sua presença, no amor.
Predestinou-nos
para sermos adotados como seus filhos por meio de Jesus Cristo, de acordo com o
beneplácito da sua vontade, para que seja prestado louvor à glória da sua
graça, que gratuitamente derramou sobre nós, no seu Filho bem amado.
É em Cristo,
pelo seu sangue, que temos a redenção, o perdão dos pecados, em virtude da
riqueza da sua graça, que Ele abundantemente derramou sobre nós, com toda a
sabedoria e inteligência.
Manifestou-nos
o mistério da sua vontade e o plano generoso que tinha estabelecido, para
conduzir os tempos à sua plenitude: submeter tudo a Cristo reunindo nele o que
há no céu e na terra.
Foi também
em Cristo que fomos escolhidos como sua herança, predestinados de acordo com o
desígnio daquele que tudo opera, de acordo com a decisão da sua vontade, para
que nos entreguemos ao louvor da sua glória, nós, que previamente pusemos a
nossa esperança em Cristo.
Foi nele,
ainda, que vós ouvistes a palavra da verdade, o Evangelho que vos salva. Foi
nele ainda que acreditastes e fostes marcados com o selo do Espírito Santo
prometido, o qual é garantia da nossa herança, para que dela tomemos posse, na
redenção, para louvor da sua glória.
***
Na verdade, como
refere João, nós damos testemunho desta vida e deste plano salvífico:
“O Verbo fez-se homem e veio habitar connosco. E nós contemplámos
a sua glória, a glória que possui como Filho Unigénito do Pai, cheio
de graça e de verdade.” (Jo1,14).
2016.01.04 – Louro de Carvalho
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