Na abertura
de 2016, o Presidente da República dirigiu ao país a sua mensagem de ano novo. Dado
que se trata da sua última intervenção de ano novo e, provavelmente, do seu
último discurso formal endereçado aos portugueses, exceto a alocução que é usual
fazer no termo do período de reflexão eleitoral (se é que a deseja fazer), creio que esta mensagem pode ser encarada como o
seu testamento político, embora Sua Excelência se tenha algumas vezes afirmado
como um não político se tenha demarcado dos outros políticos, que são tendenciosos,
inábeis, desconhecedores dos problemas do país e eivados de ideologias.
Ainda há pouco
tempo dizia que, ao falarmos do sistema financeiro, devíamos escolher e
ponderar muito bem as palavras a utilizar e declarava para memória futura que
hoje não é viável a governação à luz da ideologia, mas do pragmatismo, como se
as ideologias fossem más em si ou todas más ou se o pragmatismo não fosse
ditado por uma ideologia.
***
Mas o que eu
chamo testamento de Cavaco não se confina ao discurso de 1 de janeiro de 2016. Já
em 9 de março de 2015 (desde 2007 os roteiros têm sido publicados neste dia em que se assinala
o aniversário da sua tomada de posse como chefe de Estado), o Presidente traçava, no prefácio dos Roteiros
IX, o perfil do seu sucessor. Isto, sem falar das suas oportunas (mas não legítimas) sugestões de revisão constitucional.
Do
seu ponto de vista, o sucessor deve ter experiência em política externa e
capacidade para analisar os assuntos relevantes para o país,
sublinhando a necessidade de coordenação e concertação com o Governo, porque “a
voz de Portugal” deve ser a mesma. A este respeito, refere: “Assistiu-se, neste início do século
XXI, a um reforço do papel do Presidente no domínio da política externa de tal
forma que esta é hoje uma das suas principais funções”.
Com base em excertos do livro Os Poderes do Presidente da República, especialmente em matéria de
defesa e política externa, de Gomes Canotilho e Vital Moreira, publicado em
1991, Cavaco dedicou o prefácio do Roteiros
IX à diplomacia presidencial, sublinhando:
“Nos
tempos que correm, os interesses de Portugal no plano externo só podem ser
eficazmente defendidos por um Presidente da República que tenha alguma
experiência no domínio da política externa e uma formação, capacidade e
disponibilidade para analisar e acompanhar os dossiês relevantes para o país”.
Para o reforço do papel do Presidente no domínio da
política externa, Cavaco invoca vários fatores, como “a globalização dos
mercados e a intensificação da diplomacia económica”, bem como o facto de a
crise haver tornado “mais óbvia a importância estratégica do investimento
privado e das exportações para o crescimento da economia portuguesa e o combate
ao desemprego, obrigando a que se estendesse a presença de Portugal a outros
países”. No entanto, adverte que a diplomacia económica “é apenas uma das
múltiplas vertentes da política externa que o Presidente da República promove –
com a crise da dívida soberana da Zona Euro, o aprofundamento da União
Económica e Monetária e o programa de ajustamento a serem igualmente razões de
reforço da ação presidencial no plano externo”.
Além disso, recordou que, “face à situação de emergência
económica e financeira a que Portugal tinha chegado, houve que mobilizar toda a
nossa capacidade diplomática, incluindo a ação do Presidente da República, para
explicar, junto das mais variadas geografias, instituições internacionais e
líderes políticos, a execução do programa de assistência financeira, em ordem a
suscitar a confiança dos nossos parceiros e investidores, ganhar credibilidade
no plano externo e conseguir apoios para as posições portuguesas”. Ademais,
acrescentou que “o aumento da importância das Forças Armadas como instrumento
da política externa, nomeadamente através da participação em missões no
exterior, é outra das razões do crescimento do papel do Presidente da República
no domínio da política externa.
Porém, julga tornar-se imperativa “a coordenação e
concertação” do Presidente com o Governo de modo a ficar assegurada “a sintonia
de posições entre os dois órgãos de soberania na defesa dos interesses
nacionais”.
Depois, na era da globalização – em que as relações
pessoais entre os líderes políticos, “embora importantes, deixaram de ser por
si só suficientes” – por um lado, o Presidente tem de se capacitar no domínio “em
toda a sua complexidade” das “relações bilaterais com os países com que
interage”; por outro, deve conhecer os “aspetos essenciais da situação dos
países com que Portugal mantém relações privilegiadas”, ser capaz de “abordar
as grandes questões de política internacional da atualidade” e “estar informado
sobre o posicionamento dos seus interlocutores”.
Resta saber se lhe
compete definir um perfil de Presidente ou se a sua intervenção foi positiva.
***
Quanto à
comunicação de um de janeiro pp, agradece-se a forma muito calorosa e a
esperança no futuro com que desejou a todos os Portugueses um Bom Ano de 2016, um
Feliz Ano Novo.
É de frisar a
esperança que se sobrepõe ao tempo de incerteza de que é portador o novo ano.
Saúda-se “o
futuro sem saber o que este nos trará a nós, às nossas famílias, ao nosso País”
e o “sentimento de esperança” com que “encaramos sempre o Ano Novo”, “desejando
que ele seja melhor e mais próspero, quer no plano pessoal e familiar, quer no
plano profissional”.
Da calcorreada
que fez pelo “país inteiro” ao longo de “dez anos”, e do contacto com as
comunidades da Diáspora, percebe-se bem que esses portugueses são “o nosso
grande motivo de esperança num tempo de incerteza”. Porém, duvida-se da
eficácia da iniciativa dos Roteiros. É certo que teve o privilégio de conhecer
Portugal de perto, mantendo o diálogo de proximidade com o País real, com os
seus problemas e dificuldades, mas também com os seus anseios e as suas
realizações.
E que é feito do conhecimento que teve do pais na vintena
de anos (1985-1995) em que foi Primeiro-Ministro? Aí teve oportunidade de o conhecer e
tomar decisões. E como foram elas?
Diz-nos que,
logo em maio de 2006, lançou um roteiro “dedicado à inclusão social”, salientando que “mais do que os aspetos
dramáticos que alimentam o pessimismo e o desânimo”, procurara “valorizar os
bons exemplos, enaltecer o trabalho admirável de pessoas e de instituições que
promovem o combate à exclusão social, à violência doméstica, ao desemprego e à
pobreza, à discriminação das pessoas com deficiência”.
Mas é de perguntar que mais-valia trouxe a sua
atividade a estas causas?
Confessa que
desenvolveu “iniciativas nos mais variados domínios de atividade”, como a
Ciência, a Juventude, o Património Histórico-Cultural, as Comunidades Locais
Inovadoras, a Economia Dinâmica, as Florestas, a Pesca”; que conheceu de perto “os
portugueses que hoje estão a construir Portugal”. É justo que tenha expressado
o seu “mais profundo agradecimento”. Porém,
ter-se-á esquecido de que fora no seu consulado que a agricultura, as pescas, as
indústrias, as empresas, a marinha se depauperaram em nome da transformação do
país num território de serviços em consonância com o “dictat” europeu, ficando
nós a perder em tudo.
Aprecia-se “este
imenso Portugal que se afirma no presente e se projeta no futuro de uma forma
extraordinária” constituído por jovens cientistas e investigadores de
excelência, empreendedores económicos, sociais e culturais, dirigentes
associativos, instituições de solidariedade e voluntários, artistas e criativos
talentosos”.
E que nos diz da recente emigração em barda e do emagrecimento
do apoio público à ciência?
Aceita-se que
a “sociedade civil demonstrou, em tempos muito difíceis, a sua vitalidade, o
seu dinamismo, a sua ambição de viver num país melhor e mais justo” e que há em
todos os portugueses (“empresários,
gestores e trabalhadores, jovens agricultores, autarcas e professores”) “um traço de união, um denominador
comum”: todos, sem exceção, “são testemunho de um profundo amor a Portugal”. Saúda-se,
pois, o augúrio de que “é com essa ambição patriótica que iremos construir em
conjunto um país melhor e mais solidário, com mais justiça social”.
Venha daí esse país!
Os portugueses
que fazem Portugal “nem sempre são conhecidos nem valorizados como merecem; não
exigem o impossível nem pedem muito ao seu País”; pedem apenas “que o Estado
crie condições para que possam desenvolver o seu trabalho e que os poderes
públicos não estabeleçam entraves à sua atividade, desde a criação de emprego e
riqueza até à defesa do património e do ambiente, passando pela inovação social
e tecnológica”. Este (diz
Cavaco) “é o Portugal do
presente, que encontramos bem vivo de norte a sul, no litoral e no interior,
nas regiões insulares, nas comunidades da Diáspora” – “que muitos agentes
políticos desconhecem, que a comunicação social tantas vezes ignora”.
Era dispensável este distanciamento dos outros políticos,
como se este político fosse modelar!
Também gostamos
do Portugal que “tem por adquiridos os princípios da liberdade e da democracia”
e dos portugueses “que estão a fazer Portugal querem viver numa terra de paz,
de solidariedade e de progresso”. Mas o Presidente
limita-se a reconhecer a fundamentalidade do combate às “desigualdades” e às “situações
de pobreza e exclusão social”, “que afetam ainda um grande número de
cidadãos: os idosos mais carenciados, os desempregados ou empregados precários,
os jovens qualificados que não encontram no seu país o reconhecimento”
merecido.
Depois, aprecia-se
a lembrança da emigração portuguesa na História e a integração de retornados há
40 anos – para enunciar o dever que temos de acolhimento aos refugiados atuais.
Já será de duvidosa legitimidade de impor
como condição de integração todos os nossos princípios, a não ser os fundamentais
da democracia e liberdade, da tolerância e a dignidade da pessoa humana.
Entendo que “temos
de renovar o contrato de confiança entre todos os Portugueses”, o que configura
“a maior razão para acreditarmos num futuro melhor para nós e para os nossos
filhos”. Mas não aceito que tenhamos “o
dever de defender” acriticamente “o modelo político, económico e social que, ao
longo de décadas, nos trouxe paz, desenvolvimento e justiça”.
Que justiça, que
desenvolvimento, que paz? A da sobrecarga da classe média para ver o dinheiro
sumir-se em BPN, BPP, BES, BANIF, Montepio… PPP, swaps ou a da impunidade dos
grandes criminosos e do castigo severo do pequeno transgressor?
2016.01.02 –
Louro de Carvalho
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