Não foi “misericórdia” a palavra do ano 2015 em Portugal!

A palavra do ano de 2015 em Portugal foi “refugiado”, dado o incremento de conflitos armados e a rápida desestruturação social nos países do Médio Oriente, particularmente na Síria, que originou uma fuga massiva de pessoas. São pessoas desenraizadas que, em busca de um futuro melhor na Europa, arriscam a vida em processos migratórios perigosos e muitas têm um final trágico. Em segundo lugar, ficou a palavra “terrorismo”, conexa com a primeira e espelhada em inúmeros atos registados ao longo do ano em diversos lugares do Globo, tendo a maior parte sido reivindicada pelo comummente designado por estado Islâmico.

A reação das pessoas orientada pelos governantes dos países atingidos, secundada pelo apoio solidário dos países “amigos”, foi a da estratégia da segurança e da criação ou favorecimento do clima de medo, de que resultaram atos de retaliação, alguns bem ineficazes. Quanto ao acolhimento dos refugiados, deve dizer-se que o real acolhimento com vista à integração e/ou ao retorno aos territórios de origem quando lá existirem condições de vida – dignidade, teto e trabalho – pouco sobressaiu em contraste com a criação de muros, reforço de vigilância fronteiriça, burocracia e ceticismo. 

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 O Papa Francisco cedo anunciou um Ano Santo Extraordinário, o Jubileu da Misericórdia. E procedeu a muitas intervenções sobre a temática da misericórdia e suscitou muitas outras, de que se destacam algumas. Publicou a bula Misericordiae Vultus de proclamação e orientações do Jubileu, criou o quadro dos missionários da misericórdia para o ano jubilar, abriu a Porta Santa na República Centro-Africana, nas Basílicas de São Pedro, de São João de Latrão e de Santa Maria Maior (mandou abri-la na de São Paulo Extramuros) e promoveu a réplica da abertura da Porta Santa em todas as dioceses do mundo. Colocou a JMJ (Jornada Mundial da Juventude) de Cracóvia sob o signo da misericórdia (também com abertura e transposição de uma Porta Santa) e sob a égide de Sanos João Paulo II e Faustina, as testemunhas qualificadas da misericórdia divina. Publicou a carta apostólica, ‘Motu proprio’, Mitis et misericors Iesus. E escreveu uma carta ao Presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização, com a qual se concede a indulgência por ocasião do Jubileu Extraordinário da Misericórdia.

Não se duvida da adesão dos cristãos ao programa jubilar, mas tem de se reconhecer que a grande opinião pública esteve com mais atenção ao terrorismo, à insegurança, às liberdades e mesmo às ações de benemerência e solidariedade do que ao sentido da misericórdia enquanto latejar do coração em sintonia com quem sofre ou em partilha solidária com quem sente alegria (porque a misericórdia não é apenas pena, compaixão, mas também acompanhamento nas alegrias e êxitos, embora seja mais necessária e visível nas situações de penúria).

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Neste contexto, confesso que gostei de ler hoje, dia 5 deste invernoso janeiro, um artigo de Ana Rotundo em zenit.org/ o mundo visto de Roma sobre Santa Teresa Benedita da Cruz, testemunha de Deus durante o Holocausto e modelo para os tempos semiamargos que estamos a viver. O texto versa “A misericórdia em Edith Stein”.

Edith Theresa Hedwing Stein é o nome de nascimento de Santa Teresa Benedita. Nasceu em Breslávia ou Breslau, a 12 de outubro de 1891 (grande festa judaica do Yom Kippur, o Dia da Reconciliação), e faleceu em Oświęcim, a 9 de agosto de 1942 (no campo de concentração de Auschwitz). O pai faleceu numa viagem de negócios quando ela tinha apenas dois anos.

Os seus progenitores, Siegfried e Augusta Courant Stein, comerciantes de nacionalidade alemã e de religião hebraica, educaram-na (e a mais dez rebentos) na fé que professavam. Todavia, no transcurso dos anos, ela tornou-se praticamente ateia, embora conservasse muito elevados os valores éticos, mantendo uma conduta moralmente irrepreensível.

De maneira brilhante obteve o doutoramento em filosofia (foi a segunda mulher a defender uma tese de doutorado em Filosofia na Alemanha) e tornou-se assistente universitária do seu mestre, Edmund Husserl, o fundador do sistema filosófico da fenomenologia. Incansável e perspicaz investigadora da verdade, através do estudo e da frequência dos fermentos cristãos e, por fim, através da leitura da autobiografia de Santa Teresa de Ávila (intitulada Livro da Vida), encontrou Jesus Cristo que resplandecia no mistério da cruz e aderiu ao Evangelho com jubilosa resolução.

Recebeu assim, a 1 de janeiro 1922, o batismo e a 1.ª comunhão na Igreja católica (na igreja paroquial de S. Martin, de Bergzabern) com o nome de Teresa. E a sua vida mudou radicalmente. Os anos subsequentes foram despendidos no aprofundamento da doutrina cristã, no ensino, no apostolado e publicação de estudos científicos e numa intensa vida interior nutrida pela palavra de Deus e a oração.

Em 1933, coroou o desejo de se consagrar a Deus e entrou na Ordem das Carmelitas Descalças, tomando o nome de Teresa Benedita da Cruz, exprimindo assim, também com este nome, o ardente amor a Jesus crucificado e uma especial devoção a Santa Teresa de Ávila, a reformadora do Carmelo. Emitiu regularmente o voto de pobreza, obediência e castidade e, para realizar a sua consagração, caminhou com Deus na via da santidade.

Quando na Alemanha o nacional-socialismo exacerbou a paranoica perseguição contra os judeus, os superiores enviaram-na, por precaução, para o Carmelo de Echt, na Holanda. Impelida pela compaixão para com os irmãos judeus, não hesitou em oferecer-se a Deus como vítima, para suplicar a paz e a salvação para o seu povo, para a Igreja e para o mundo. A ocupação nazi da Holanda comportou o início do extermínio para os judeus daquele país. Os Bispos holandeses protestaram energicamente, a 26 de julho de 1942, com uma Carta pastoral e as autoridades, por vingança, incluíram no programa de extermínio os judeus de fé católica.

A 2 de agosto de 1942, Teresa Benedita foi aprisionada e internada no campo de concentração de Auschwitz e, juntamente com a irmã, foi morta na câmara de gás no dia 9 de agosto de 1942, assim morrendo, aos 51 anos de idade, como filha do seu povo martirizado e da Igreja católica. João Paulo II referiu-se a ela no dia da Beatificação, a 1 de Maio de 1987, em Colónia, nos termos seguintes: 

“Judia, filósofa, religiosa, mártir a Beata Edith Stein representa a síntese dramática das feridas do nosso século. E, ao mesmo tempo, proclama a esperança de que é a cruz de Jesus Salvador que ilumina a história”.

 O mesmo Papa a canonizou em 11 de outubro de 1998 como Santa Teresa Benedita da Cruz. E, a 1 de outubro de 1999, pela carta apostólica de motu proprio intitulado Spes aedificandi, proclamou Santa Teresa Benedita da Cruz, juntamente com as santas Brígida da Suécia e Catarina de Siena, copadroeira da Europa pelo particular contributo cristão que outorgou à Igreja Católica e, em especial, à sociedade europeia através do seu pensamento filosófico.

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Entretanto, Ana Rotundo confessa o seu gosto em recordar esta grande santa alemã, filósofa de profunda inteligência especulativa, “não apenas por ocasião da próxima jornada da memória” (27 de janeiro, em homenagem às vítimas do Holocausto), mas por encontrar na sua escola “a confiança na misericórdia que brilha, apesar da escuridão do mal e da violência que carateriza” tão dramaticamente “aquele século breve em que esta santa carmelita “viveu e morreu, em Auschwitz”. E anota que um dos seus modelos bíblicos favoritos “era a rainha Ester, que arriscou a vida para a salvação de seu povo”. A este propósito, a santa escreveu:

“Penso sempre na rainha Ester, que foi escolhida exatamente para interceder por seu povo diante do rei. Sou uma pequena Ester pobre, impotente, mas o Rei, que me escolheu, é infinitamente grande e misericordioso. Esta é uma grande consolação”.

Depois, enuncia uma verdadeira pérola teológica e espiritual sobre a misericórdia:

“Nunca gostei de pensar que a misericórdia de Deus esteja confinada na Igreja visível. Deus é a verdade. Quem procura a verdade procura a Deus, sabendo ou não”.

Por isso, Ana Rotundo pensa – e bem – que “esta esperança na misericórdia divina presente em Edith Stein, embora pessoalmente vivesse grandes dificuldades e perseguições, é exemplo para o nosso tempo, onde o mal e a violência continuam a prosperar insidiosamente”. E atina no facto de a Misericordiae Vultus, a bula do Jubileu extraordinário da Misericórdia, convidar a “olhar para o futuro com esperança ... uma Porta da Misericórdia, onde qualquer pessoa que entre poderá experimentar o amor de Deus que consola, perdoa e dá esperança”. Por outro lado, responde com palavras de Edith Stein à questão como é que a misericórdia surge diante do mal: “A íntima essência do amor está no dom de si”. E, depois, faz a aproximação das palavras da santa aos “verbos de ação” sugeridos pelo Arcebispo de Catanzaro-Squillace, Dom Vincenzo Bertolone, para o Ano Jubilar: ​​“tomar a iniciativa sem medo”, “dar o primeiro passo”, “preceder no amor”, “ir ao encontro” e “buscar os distantes”.

E conclui que, “diante do ciclo de violência que parece tornar amargo o presente e obscuro o horizonte do nosso futuro, conhecer Santa Teresa Benedita (…), pode dar-nos luz para colher e oferecer mais fortemente os sinais da presença e da proximidade misericordiosa de Deus”.

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Merece especial atenção o seu percurso intelectual e de bom combate, pelo que se sintetiza:

Durante a adolescência, deixando a escola, passou uns meses em casa da sua irmã Else e família em Hamburgo, após o que retomou o estudo em 1908 e obteve, em 1911, o diploma do ensino secundário com distinção. Cursou a Universidade de Breslau (em alemão, história, psicologia e filosofia) e, interessada pelos estudos de Edmund Husserl, partiu para estudar com ele, em 1913, na Universidade de Gotinga, onde versou filosofia alemã e história, integrando o grupo de filosofia de Gotinga e vindo a graduar-se com distinção em janeiro de 1915.

Com a deflagração da I Grande Guerra trabalhou como enfermeira voluntária da Cruz Vermelha alemã no hospital militar de Mährisch-Weisskirchen, entregando-se ao cuidado dos soldados doentes e feridos de corpo e alma – trabalho por que mereceu uma medalha de honra.

Voltando a Breslau, em 1916, trabalhou como professora suplente na escola Viktoria, onde estudara e fez o doutoramento em Freiburg com a menção summa cum laude, com a tese Sobre o Problema da Empatia, publicada em 1917. E, entre 1916-1918, trabalhou como assistente de Husserl, em Freiburg, e ocupou-se em escritos diversos. Apesar das tentativas de obter um cargo em várias universidades, como as de Gotinga, Freiburg e Kiel, não foi aceite por ser mulher.

Depois da morte do grande amigo Adolf Reinach, em 1917, nas batalhas da Flandres, participou, durante o ano de 1918, no recém-fundado Partido Democrático Alemão, mas logo se desiludiu da política, apesar de, com a República de Weimar, em 1919, as mulheres passarem a ter o direito a voto e a igualdade.

Em 1921, após a conversão ao Catolicismo, dedicou-se à preparação das obras de Adolf Reinach para publicação, e a releitura da autobiografia de Teresa de Ávila fê-la identificar-se com esta santa apesar de na época não saber da origem judaica da mesma santa. Recebeu a confirmação (crisma) na capela privada do bispo de Speyer em 2 de fevereiro do mesmo ano e publicou os seus trabalhos no Anuário de filosofia e investigação filosófica, editado por Husserl.

Entre 1923-1931, trabalhou como professora no liceu feminino e no instituto para formação de professoras das irmãs dominicanas de Santa Madalena, em Speyer. Fez várias traduções e outros trabalhos, além de conferências em simpósios e congressos pedagógicos em Praga, Viena, Salzbourg, Bâle, Paris, Munster e Bendorf. Entretanto, em 1925, traduziu para alemão o Diário e As Cartas do cardeal John Henry Newman e publicou no Anuário o seu estudo Uma investigação sobre o Estado, entre outros.

Em 1928, participou em conferências sobre a questão feminina e sobre a educação católica na Alemanha e países vizinhos e traduziu para alemão do De Veritate, de Tomás de Aquino. E, em 1929, publicou no Anuário seu estudo comparativo entre Aquino e Husserl.

Em 1930 fez conferências em Nuremberg, Salzburg, Speyer, Bendorf, Heildelberg sobre a questão feminina. E, em 1931, tentou novamente, sem sucesso, uma cátedra universitária, continuando a realizar conferências por diversos lugares e publicando o 1.º volume da sua tradução das Quaestiones Disputatae de Veritate, de Tomás de Aquino. Porém, em 1932, conseguiu posição como docente no Instituto Alemão de Pedagogia Científica, em Münster, mas continuou a proferir diversas conferências pela Alemanha e Suíça. Participou no Congresso Internacional Tomista de Juvisy e publicou o 2.º volume da sua tradução de Tomás de Aquino, Questiones Disputatae de Veritate.

Com a chegada de Hitler e do partido Nacional-socialista ao poder, em abril 1933, foi publicada a lei que proibia a presença de judeus em cargos públicos. Por isso, foi demitida da docência e impedida de realizar conferências. Decidiu-se então pelo ingresso no Carmelo de Colónia em 14 de outubro, tomando o hábito com o nome de Teresa Benedita da Cruz. Teve permissão da sua superiora para continuar o seu estudo Ser Finito e Ser Eterno e publicou vários textos, inclusive o estudo sobre Teresa d’Ávila. No dia 21 de abril de 1935, domingo de Páscoa, fez seus votos religiosos temporários e, em abril de 1938, emitiu os votos perpétuos.

Entretanto, após a morte da mãe, a sua irmã Rosa também se converteu ao Catolicismo (1936).

Morreu também Husserl e ela publicou artigos sobre a História do Carmelo. Mas, com a violência da Noite dos Cristais, em 1938, mandaram-na secretamente para a Holanda, onde se instalou no Carmelo de Echt, encontrando-se com a sua irmã Rosa. Lá fez o seu testamento.

Invadida a Polónia pela Alemanha, eclodiu a II Grande Guerra e alguns familiares de Edith emigraram para os Estados Unidos e para a Colômbia. Edith escreveu um trabalho sobre Dionísio Aeropagita e começou a escrever A Ciência da Cruz, sua obra mais importante e que lhe mereceu a qualificação de teóloga.

Em 1940, os nazistas ocuparam a Holanda e, em 1941, os seus irmãos Frida e Paul, bem como a esposa e a filha deste foram deportados para o campo de concentração de Theresienstadt, onde morreram em 1942. Em abril de 1942, a Gestapo (polícia nazista) registou Rosa e Edith como judias. O Carmelo e Edith procuraram o visto para ambas saírem da Holanda e entrarem na Suíça, mas os papéis chegaram depois do aprisionamento.

Como represália à pública leitura da carta pastoral dos bispos católicos em todas as igrejas católicas holandesas, condenando a deportação dos judeus, foram presos, em 2 de agosto, todos os católicos de ascendência judaica, entre eles Rosa e Edith Stein. Ambas foram transferidas para o campo de trânsito de Amersfoort e, depois, para o campo de Westerbork. A 7 de agosto, foram de comboio para o oeste e chegam a Auschwitz a 9 de Agosto, onde ambas morrem na câmara de gás.

Três dias antes da morte, dissera: “Aconteça o que acontecer, estou preparada. Jesus está aqui connosco”. (vd Zenit, Wiquipédia, D. Kertzer/ O Papa e Mussolini e Vatican.Va).

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Belo exemplo de resistência, contemplação, ação e misericórdia! Urge que o acolha este povo que tem sido sujeito aos maiores sacrifícios e hospeda uma enormíssima franja de pobreza.

2016.01.05 – Louro de Carvalho