Celebra-se
a 17 de janeiro de 2016 mais um Dia Mundial do Migrante e Refugiado. A este propósito, o Vaticano anunciou que “mais de cinco mil
migrantes” de 30 nacionalidades vão participar na oração do Angelus com o Papa e atravessar a Porta
Santa da Basílica de São Pedro.
Também, neste mesmo dia, a Basílica Vaticana recebe a Cruz de
Lampedusa, feita com madeira de barcos utilizados pelos migrantes e abençoada
pelo Papa a 9 de abril de 2014, dia a partir do qual a cruz tem viajado pela
Itália, levada por voluntários, unindo paróquias, mosteiros, cárceres e
hospitais”, de acordo com o respetivo “projeto” da Fundação Casa do Espírito e
das Artes.
Segundo o CPPMI (Conselho Pontifício para a Pastoral dos Migrantes e
Itinerantes), da Santa
Sé, a celebração inscreve-se no “contexto do Ano da Misericórdia” convocado por
Francisco (8 de dezembro
de 2015-30 de novembro de 2016) e resulta da convicção da existência real do “risco evidente” de que
este problema “seja esquecido”. Por isso, deseja-se relacionar “o fenómeno da
migração com a resposta dada pelo mundo e, em particular, pela Igreja”. E o cardeal
Antonio Mara Veglió, presidente do CPPMI, vai consagrar hóstias preparadas por
três presos da prisão de segurança máxima de Opera, em Milão, na Eucaristia das
13 horas locais (menos
uma hora em Lisboa), na
Basílica de São Pedro.
***
Entretanto, várias declarações de reflexão já foram emitidas
a propósito da efeméride que surgiu na Igreja Católica, com a carta circular “A dor e as preocupações”, de 6 de
dezembro de 1914, em que a Santa Sé pedia a instituição de um dia anual de
sensibilização para o fenómeno da migração e a promoção duma coleta em favor
das obras pastorais para os emigrantes italianos e para a preparação dos
missionários da emigração.
Assim, a Cáritas Europa lembra as mais de 3700 pessoas que
morreram no Mediterrâneo, incluindo 8 crianças, em 2015, recordando à Europa
que “o sofrimento dos migrantes poderia ter sido evitado se os líderes
comunitários tivessem chegado a acordo sobre canais mais seguros e legais para
a Europa”.
No XVI Encontro Nacional de
Animadores Sociopastorais das Migrações sob o tema “Misericórdia sem Fronteiras”, em Bragança (de 15 a 17 de janeiro), Silva Peneda,
ex-Presidente do Conselho de Concertação Social e assessor do Presidente da
Comissão Europeia, declarou que o aumento dos refugiados gera “novas fronteiras
na Europa”, contradizendo “a sua herança” e que a Europa não a cumpre em termos
de realização do ser humano em liberdade e assente na livre circulação de
pessoas, bens e mercadorias”. Sublinha que urge contrariar uma “visão
imediatista” que “leva a populismos fáceis, a xenofobismos”, por uma estratégia
a médio prazo” que envolva “todos” porque “só com a contribuição de todos” a
questão será resolvida. Por outro lado, vaticinou que, “nos próximos 40 a 50 anos, a Europa
vai precisar de muita força de trabalho e essa força de trabalho terá de vir do
Norte de África e do Médio Oriente”.
No mesmo encontro, o presidente da
Cáritas do Líbano, padre Paul Karam, afirmou que o conflito na Síria acontece
pela inoperância da comunidade internacional e que as ajudas para os refugiados
estão “à beira do colapso”. Mas “apesar de todos os problemas, não perdemos a
esperança”, sustentou, acrescentando que só a misericórdia de Deus pode
proteger da “crise infernal” em curso. E sustentou que dos 4 milhões de pessoas
que vivem no Líbano quase metade são refugiados de guerra, vindos do exterior,
sobretudo da Palestina, donde chegara mais de meio milhão. Mais: “Após a guerra
da síria, chegaram quase 2 milhões de refugiados, a maioria muçulmanos”; e o
Líbano é o país que proporcionalmente acolhe mais refugiados, do Iraque e
sobretudo da Síria, atualmente 232 por cada mil habitantes, a que se segue a
Jordânia, que acolhe 87 por cada mil habitantes.
Paul Karam considera que tudo não
passa de “interesses políticos”, cabendo à Igreja o dever de “despertar” as consciências
de modo que a comunidade internacional promova o caminho da paz e assuma “a sua
responsabilidade para com os refugiados”.
Segundo
a economista Vera Rodrigues, professora na UTAD (Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro), o desafio das migrações
relaciona-se com a “dinâmica de crescimento dos países europeus”, porque sentirão
a “obrigação” de perceber a “importância dos fluxos migratórios”.
Na sua
ótica, pode olhar-se de “forma pragmática” para a questão dos refugiados,
fazendo convergir a “procura de paz”, que não encontram nos seus países, com a
necessidade da Europa.
Já a
Irmã Irene Guia, da Plataforma de Apoio
aos Refugiados, julga fundamental ir além “das conveniências” dos países de
destino, nomeadamente a força de trabalho necessária, e olhar para a situação a
partir “do que estão a sofrer, os refugiados”. Pelo que defende que “analisar o
problema a partir do olhar dos refugiados é o que vai começar a acelerar todos
os processos”.
E Dom António Couto, Bispo de Lamego, afirmou que o acolhimento dos refugiados tem de acontecer de forma
“quase instintiva”, a partir de uma “cultura da misericórdia”. Por outro lado,
reconhece que “temos de aprender a ser como um hebreu, que é um passageiro, que
anda de margem para margem”, pois “só quem anda de margem para margem, quem faz
essa experiência, quem vive assim é que está apto a acolher o outro”.
***
Por seu turno, Francisco
subscreveu, no dia 12
de setembro de 2015 – Memória do Santíssimo Nome de Maria – a
sua mensagem para este dia em torno de dois enunciados-chave: “os
emigrantes e refugiados interpelam-nos”; e “a resposta do Evangelho da
misericórdia”.
Na sequência
da Misericordiae Vultus, recorda que
somos chamados a fixar o olhar na misericórdia, “para nos tornarmos nós mesmos
sinal eficaz do agir do Pai”, pois, “o amor de Deus quer chegar a todos e a cada
um, transformando os que acolhem o abraço do Pai noutros tantos braços que se
abrem e abraçam para que todo o ser humano saiba que é amado como filho e se
sinta ‘em casa’ na única família humana”. Assim, “a ternura paterna de Deus”, extensível
solicitamente a todos, “mostra-se peculiarmente sensível às necessidades da
ovelha ferida, cansada ou enferma”.
Olhando para
o panorama mundial, o Papa Francisco considera a extensão crescente do fenómeno
migratório, suas caraterísticas e consequências:
“Neste nosso tempo, os fluxos migratórios aparecem em
contínuo aumento por toda a extensão do planeta: prófugos e pessoas em fuga da
sua pátria interpelam os indivíduos e as coletividades, desafiando o modo
tradicional de viver e, por vezes, transtornando o horizonte cultural e social
com os quais se confrontam. Com frequência sempre maior, as vítimas da
violência e da pobreza, abandonando as suas terras de origem, sofrem o ultraje
dos traficantes de pessoas humanas na viagem rumo ao sonho dum futuro melhor.
Se, entretanto, sobrevivem aos abusos e às adversidades, devem enfrentar
realidades onde se aninham suspeitas e medos.”
Depois,
denuncia a falta de legislação e de estabelecimento de “normativas claras e
praticáveis que regulem a receção e prevejam itinerários de integração a breve
e a longo prazo, atendendo aos direitos e deveres de todos”. Por isso, “o
Evangelho da misericórdia” tem de sacudir cada vez mais as consciências,
impedindo que “nos habituemos ao sofrimento do outro”, e indicar os “caminhos
de resposta que se radicam nas virtudes teologais da fé, da esperança e da caridade,
concretizando-se nas obras de misericórdia espiritual e corporal”.
E, atentando
na realidade estrutural que os fluxos migratórios já constituem, preconiza a “superação
da fase de emergência” para a criação de “programas que tenham em conta as
causas das migrações, das mudanças que se produzem e das consequências que
imprimem novos rostos às sociedades e aos povos”, pois:
“Todos os dias as histórias dramáticas de milhões de
homens e mulheres interpelam a comunidade internacional, testemunha de
inaceitáveis crises humanitárias que surgem em muitas regiões do mundo. A
indiferença e o silêncio abrem a estrada à cumplicidade, quando assistimos como
espectadores às mortes por sufocamento, privações, violências e naufrágios. De
grandes ou pequenas dimensões, sempre tragédias são; mesmo quando se perde uma
única vida humana.”
Em nome da
fraternidade universal, postula a necessária e equitativa distribuição de bens,
a começar pelos que mais precisam:
“Os emigrantes são nossos irmãos e irmãs que procuram
uma vida melhor longe da pobreza, da fome, da exploração e da injusta
distribuição dos recursos do planeta, que deveriam ser divididos
equitativamente entre todos. Porventura não é desejo de cada um melhorar as
próprias condições de vida e obter um honesto e legítimo bem-estar que possa
partilhar com os seus entes queridos?”
Sobre a
questão da identidade dos migrantes e da identidade de quem os acolhe, tece os
seguintes considerandos:
“De facto, quem emigra é forçado a modificar certos
aspetos que definem a sua pessoa e, mesmo sem querer, obriga a mudar também
quem o acolhe. Como viver estas mudanças de modo que não se tornem obstáculo ao
verdadeiro desenvolvimento, mas sejam ocasião para um autêntico crescimento
humano, social e espiritual, respeitando e promovendo aqueles valores que
tornam o homem cada vez mais homem no justo relacionamento com Deus, com os
outros e com a criação?”
Dado que “a
presença dos emigrantes e dos refugiados interpela seriamente as diferentes
sociedades que os acolhem”, elas devem enfrentar estes factos novos que “podem
aparecer imprudentes se não forem adequadamente motivados, geridos e regulados”.
Por isso, interroga:
“Como fazer para que a integração se torne um
enriquecimento mútuo, abra percursos positivos para as comunidades e previna o
risco da discriminação, do racismo, do nacionalismo extremo ou da xenofobia?”
O Pontífice verifica
uma dualidade de postura. Por um lado, de acordo com a revelação bíblica, que
encoraja a receção do estrangeiro, na convicção de que assim se abrem “as
portas a Deus” e, “no rosto do outro”, se manifestam “os traços de Jesus Cristo”,
há “muitas instituições, associações, movimentos, grupos comprometidos,
organismos diocesanos, nacionais e internacionais” que “experimentam o encanto
e a alegria da festa do encontro, do intercâmbio e da solidariedade”. Por outro,
“não cessam de multiplicar-se também os debates sobre as condições e os limites
que se devem pôr à receção, não só nas políticas dos Estados, mas também nalgumas
comunidades paroquiais que veem ameaçada a tranquilidade tradicional”.
Como contraponto
a esta dualidade e perante a interpelação do migrante e refugiado, o Papa, na esteira
de Jesus, entende que “a resposta do Evangelho é a misericórdia” e que, “na
raiz do Evangelho da misericórdia, o encontro e a receção do outro entrelaçam-se
com o encontro e a receção de Deus”, de modo que “acolher o outro é acolher a
Deus em pessoa”.
Por um lado,
a misericórdia como “dom de Deus Pai revelado no Filho” vem a suscitar “sentimentos
de jubilosa gratidão pela esperança que nos abriu o mistério da redenção no sangue
de Cristo; por outro, “alimenta e robustece a solidariedade para com o próximo,
enquanto exigência de resposta ao amor gratuito de Deus, que foi derramado nos nossos corações pelo
Espírito Santo” (Rm 5,5). De facto, “cada um de nós é responsável pelo seu vizinho:
somos guardiões dos nossos irmãos e irmãs, onde quer que vivam”. Daqui devem
resultar, como “ingredientes essenciais para se promover a cultura do encontro”,
“o cultivo de bons contactos pessoais e a capacidade de superar preconceitos e
medos”, pois, “a hospitalidade vive do dar e receber”.
Em conformidade
com o exposto, Francisco pretende que se olhe “para os emigrantes”, mais do que
“na sua condição de regularidade ou irregularidade”, como “pessoas que,
tuteladas na sua dignidade, podem contribuir para o bem-estar e o progresso de
todos”, assumindo de forma responsável “deveres com quem os acolhe”,
respeitando “o património material e espiritual do país que os hospeda,
obedecendo às leis e contribuindo para os seus encargos”. Porém, “não se podem
reduzir as migrações à dimensão política e normativa, às implicações económicas
e à mera coexistência de culturas diferentes no mesmo território”, mas deve
ter-se em conta “a defesa e promoção da pessoa humana, da cultura do encontro
dos povos e da unidade”.
Por isso, o Pontífice
esclarece a posição inequívoca da Igreja:
“A Igreja coloca-se ao lado de todos aqueles que se
esforçam por defender o direito de cada pessoa a viver com dignidade, exercendo
antes de mais nada o direito a não emigrar a fim de contribuir para o desenvolvimento
do país de origem”.
E define como
condições práticas de concretização deste dinamismo programático: a ajuda aos
países donde partem os emigrantes e prófugos; a prática da solidariedade,
cooperação, interdependência internacional e distribuição equitativa dos bens
da terra (insiste); o esconjuração, se possível já na origem, das fugas dos
prófugos e dos êxodos impostos pela pobreza, violência e perseguições; e a informação
correta da opinião pública, “até para prevenir medos injustificados e
especulações sobre a pele dos emigrantes”.
Ademais, é
preciso sentir, com consequência práticas, a interpelação das “novas formas de
escravidão geridas por organizações criminosas que vendem e compram homens,
mulheres e crianças como trabalhadores forçados na construção civil, na
agricultura, na pesca ou noutros âmbitos de mercado”; da obrigação de
alistamento de crianças nas milícias que as transformam em meninos-soldados; da
situação das vítimas do tráfico de órgãos, da mendicidade forçada e da
exploração sexual. São – diz o Papa – “crimes aberrantes” de que “fogem os
prófugos do nosso tempo, que interpelam a Igreja e a comunidade humana, para
que também eles possam ver, na mão estendida de quem os acolhe, o rosto do
Senhor, o Pai das misericórdias e o Deus
de toda a consolação” (2Cor 1,3).
Por fim,
Francisco pede aos migrantes e refugiados que não deixem que lhes roubem “a
esperança e a alegria de viver que brotam da experiência da misericórdia de
Deus, que se manifesta nas pessoas” que encontramos ao longo dos nossos
caminhos, e confia-os à Virgem Maria, Mãe dos emigrantes e dos refugiados, e a
São José, que viveram a amargura da emigração no Egito – ao mesmo tempo que entrega
a esta poderosa intercessão de Maria e José os que dedicam energias, tempo e
recursos ao cuidado pastoral e social das migrações.
***
É com justiça
que o ex-Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) declarou recentemente ver no Papa Francisco um “aliado precioso na defesa dos refugiados e das
vítimas de perseguição”.
2016.01.16 –
Louro de Carvalho
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