Comummente
pensa-se e diz-se que há duas Igrejas de confissão católica na República
Popular da China, ou seja, uma Igreja Católica dividida entre o conjunto dos
fiéis à comunhão com o Bispo de Roma (Igreja atuante também em Taiwan,
República de facto remetida para a Formosa e outras ilhas menores) e o conjunto dos fiéis sujeitos ao controlo
governamental – sendo que ambos os conjuntos se encontram enquadrados
hierarquicamente.
Segundo a
informação corrente, o primeiro grupo constituiria a Igreja verdadeiramente
católica, apostólica e romana, rotulada de “Igreja Clandestina”, ao passo que
que o segundo grupo seria a “Igreja Oficial” ou “Igreja Patriótica”, controlada
pelo poder político e, por conseguinte, desligada da comunhão com Roma raiando
uma postura de traição ou de dissidência.
Ora as
coisas não são assim, como o explica o sacerdote jesuíta Pe. Joseph Shih, SJ em
artigo para a revista “La Civiltà
Cattolica”, cuja síntese foi publicada hoje, dia 19 de maio, no Zenit – o mundo visto e Roma.
Nesse
artigo, o sacerdote declara que a
Igreja católica na China não é aquilo que somos levados a conhecer pelos meios
de comunicação estrangeiros: não é, de modo algum, uma Igreja dividida em
“Igreja oficial” e “Igreja Clandestina”, mas é uma só Igreja.
Recordo
que, a seguir à Revolução Francesa, o novel poder político exigiu que todos os
clérigos subscrevessem a Constituição Civil do clero. Muitos sacerdotes,
movidos pelo que sentiam ser a orientação superior da Igreja Católica, não
acataram a determinação do poder político e arcaram com o ónus da perseguição
sofrida e infligida de forma bárbara. Obviamente, os observadores rotularam de
fracos, oportunistas ou mesmo traidores os clérigos civilistas (e
alguns o terão sido).
Em
Portugal, por ocasião da implantação da República, em 1910, num ambiente de
generalizada perseguição ao clero e à religião católica, enquanto muitos
sacerdotes e bispos, no pressuposto de que republicanismo e catolicismo eram
incompatíveis, combateram a República e sofreram a perseguição. Porém, um grupo
relativamente pequeno aceitou o regime republicano e foi tido como pertencendo
ao grupo dos padres republicanos – os denominados como traidores e
incompatibilizados com Roma.
Ora
as coisas não podem ser vistas assim num sistema maniqueísta em que estão, de
um lado os bons, e, do outro, os maus, oportunistas ou fracos.
Embora
tanto no período pós-revolucionário, em França, como no tempo da I República,
em Portugal, alguns clérigos civilistas tenham abandonado as funções
eclesiásticas, aparentemente vendidos ao novo regime político, tal não
significa automaticamente que, a princípio, não estivessem bem intencionados. É
uma questão de sobrevivência e a Igreja foi aprendendo que tinha de viver em
qualquer regime político, uma vez que os cristãos não são do mundo, mas estão
no mundo; e o automartírio não se justifica. Depois, muitas vezes, os regimes e
sistemas políticos surgem usualmente em reação a excessos e insuficiências dos
antecedentes, acabando ironicamente por vir a cometer excessos similares ou a
sofrer de insuficiências semelhantes.
No
caso português, hoje é fácil perceber as vantagens existenciais da separação
entre as Igrejas e o Estado, pelo que significa de independência das instituições
e autonomia das realidades terrestres, ou as vantagens administrativas e
organizativas da instituição e consolidação do registo civil (no
âmbito do nascimento e filiação, casamento e óbito), no atinente ao conhecimento e
poder regulador do Estado sobre os cidadãos todos, principalmente os que usem
da liberdade de não pertencer a Igreja alguma ou de não confessar qualquer
religião. Tais vantagens não anulam a compreensão para com os resistentes
àquele ordenamento político, jurídico e administrativo, já que tal resultou da
ideologia positivista, da sanha jacobina e da postura antirreligiosa militante,
designadamente anticatólica e anticlerical – o que não é plausível.
***
Voltando ao
caso da Igreja Católica na República da China, o referido jesuíta esclarece, no
seu artigo, que o poder político chinês exige efetivamente que a Igreja
Católica seja “independente” de Roma e “dependente” do Estado – assim como faz
com todas as grandes denominações religiosas no país – pelo que procedeu à
criação de organismos governamentais para a controlar.
Segundo o
padre Shih, os chineses, quanto à “independência” instada pelo governo, separam-na
em independência política e económica, mas não incluem a religiosa. Por outras
palavras, o sacerdote frisa, no seu artigo, que a Igreja católica na China não
está dividida, mas é uma só. A parte da Igreja que se submete à Associação patriótica e à conferência
episcopal, controladas pelo Estado, permanece, apesar de tudo, espiritual e
doutrinalmente fiel à Igreja Católica e ao Papa; a outra parte que não aceita
os órgãos oficiais de controlo estatal, tida como “Igreja Clandestina” é
conhecida (embora não
reconhecida) pelo governo,
que a deixa trabalhar, contanto que não faça muito ruído, mas não a considera
uma instituição oficial de religião.
É óbvio que
ambas as posturas organizativas de Igreja na China passaram de facto por reais dificuldades decorrentes
de dois fatores: o antiteísmo (mais limitante e agressivo que o ateísmo militante) que enforma a ideologia de que
emana o regime, que evolui para a economia de mercado, mas mantém o nervo duro
do pensamento político de sistema centralizado e celular; e a incompatibilidade
entre o cristianismo ativo, próprio da Igreja militante e o cerceamento das
liberdades e do exercício dos direitos humanos, típico do regime de pensamento
e partido único.
Ora, o padre
Shih assegura:
“Apesar do severo controlo que as
autoridades exercem sobre a Igreja, os dois – Igreja e Governo – permanecem
duas entidades bem distintas na China e não se confundem. Por isso, não me
parece certo o facto de que, quando acontece algo negativo na Igreja, se acuse
rapidamente o Governo chinês.”.
É certo que os
sacerdotes da “Igreja Patriótica” são
frequentemente convocados para as ações de formação que não são propriamente “lavagens
de cérebro”, mas “interpretações socialistas da doutrina cristã”. E, não sendo
uma situação normal, muito menos plausível, acontece que, de acordo com o
esclarecimento do jesuíta, os sacerdotes vão a esses encontros sabendo – por
formação própria – que não compartilham de tais ensinamentos; fazem-no pro bono pacis, ou seja, para manterem
espaço de atuação o mais livre e eficaz possível.
O colunista
de “La Civiltà Cattolica” dá como
exemplo do acima exposto o caso dos sacerdotes de Shangai, que acataram a
convocação do Governo indo sem receio aos cursos de formação, porque têm da
‘formação’ um conceito e uma finalidade diferentes do conceito e finalidade do
Governo. Para o Governo, a formação é um meio de instrução dos sacerdotes sobre
a praxe da sua política religiosa, pretendendo a desejada conformação da Igreja
cristã na China à sociedade socialista. Em conformidade com essa ideia, a Igreja
deve mudar, a ponto de modificar a própria interpretação dos dogmas. Não
obstante, para os sacerdotes, a formação “é obrigação a que não podem faltar,
mas uma obrigação de que eles não compartilham o objetivo e nem os conteúdos”.
Porém, o
sacerdote não deixa de assumir uma posição tão crítica como compreensiva:
“É verdade que a situação da Igreja
católica na China não é ideal e que nem todas as decisões da Santa Sé receberam
o consenso dos fiéis na China. Mas quem fala da Igreja na China deve considerar
as circunstâncias reais nas quais ela vive, e erraria se a criticasse falando
só dos defeitos. Deve-se deplorar principalmente quem dá a entender que a
Igreja na China não seja leal, induzindo os fiéis a perderem a confiança na
própria Igreja.”.
Como se pode
ver, o jesuíta faz um juízo crítico sobre a situação relacional entre o Estado
e a Igreja, mas não um juízo moral culpabilizante sobre a Igreja na China, os
seus fiéis e os seus sacerdotes. Para as pessoas de Igreja olha com as
categorias da compreensão, do respeito e da aceitação, censurando os que
facilmente rotulam os outros.
***
Os
meios de comunicação internacional têm dificuldade em testemunhar como os
chineses católicos viveram o último dia do Pentecostes. É o mesmo Zenit – o
mundo visto e Roma que nos dá
conta de preciosas curiosidades sobre a celebração desta solenidade do Espírito
Santo.
Segundo
informação da agência Fides, 62 fiéis
entregaram, na solenidade litúrgica de Pentecostes, uma cópia transcrita à mão do
evangelho de São Mateus ao Bispo Dom Paolo Meng Ning You, ordinário da
arquidiocese de Tai Yuan na província de Shan Xi, na China. Trata-se dum gesto
que revela o propósito espiritual de meditar, assim, na Palavra de Deus.
Também, na paróquia
de Xi Chang, na província de Jiang Xi, se fez uma longa procissão pelas ruas em
que os fiéis empunhavam cartazes gigantes em que estavam escritos os sete dons
do Espírito Santo – sapiência, entendimento, conselho, fortaleza, ciência,
piedade e temor de Deus – e que foi coroada com a solene celebração da
Eucaristia com o envio missionário, como acontecera com os Apóstolos no
Evangelho e nos primórdios do cristianismo.
Por seu
turno, os fiéis da paróquia de São João de Yi Zhuang, da Arquidiocese de
Pequim, partilharam um momento de ágape (um banquete coletivo) depois da missa; e onze fiéis, guiados pelo pároco, rumaram
à catedral onde receberam o sacramento da Confirmação ou Crisma.
Também a
comunidade local da paróquia de Wu La Te Hou Qi, na Mongólia, se reuniu para
celebrar a Vigília da Solenidade de
Pentecostes. Durante a homilia, o sacerdote encorajou todos os presentes a
terem como sinal da misericórdia e da comunhão com o Espírito Santo a ida
frequente à igreja, rezar mais e visitar os idosos e doentes.
E, em muitas
paróquias das províncias de Shan Dong, Hebei, Shaan Xi, durante a Eucaristia
foi administrado o Sacramento da Confirmação aos seus jovens e a muitos adultos.
***
Falamos da
China, de maioria não católica e de regime de partido único, onde a Igreja ou
as Igrejas sofrem de constantes restrições. É caso para nos interrogarmos sobre
a vivência cristã neste país da lusofonia, de maioria que se diz católica num
regime de liberdades e de direitos.
Também se
colocará aqui o dilema de interpretar a doutrina cristã segundo as categorias
socialistas ou segundo as categorias do Evangelho? Ou a questão aqui não será,
antes, não tirar todas as consequências pessoais, profissionais, sociais e
políticas dos preceitos evangélicos, sobretudo no atinente à misericórdia e aos
pobres?
2016.05.19 – Louro de
Carvalho
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