segunda-feira, 23 de maio de 2016

Jesus supera as ciladas dos “teólogos iluminados”

Qualquer filósofo e qualquer teólogo sabem que a verdade está acima de qualquer interesse ou amizade. E, como diz o Papa Francisco, a verdade nunca se deve negociar.
Consta que alguns discípulos de Aristóteles, quando o ouviam ensinar em sentido diferente do que ensinava Platão, que havia sido até há pouco o mestre incontestado, respondia com a frase que se tornou sentenciosa: “Amicus Plato, sed magis amica veritas” (Platão é amigo, mas mais amiga é a verdade).
No atinente à mensagem de Cristo, em torno da qual gravita a reflexão teológica cristã, os testemunhos de Jesus sobe a relevância e indispensabilidade da verdade são frequentes.
Com efeito, só a verdade liberta (Jo 8,32). Porém, o conceito de “verdade” tem vindo a desafiar a humanidade pelos séculos fora. Filósofos da antiga Grécia debatiam a natureza da verdade e discutiam se ela era real e absoluta ou relativa e ilusória. As suas dúvidas refletem-se na questão de Pilatos levantada a Jesus, “Que é a verdade?” (Jo 18,38), a que Ele não deu resposta ali.
Hoje, surge recorrentemente idêntica pergunta em várias situações. É de vital importância que achemos a resposta a esta pergunta na área de religião. O que é a verdade? Podemos conhecer a verdade? Para ajudar-nos a responder a estas questões, teremos de centrar a nossa atenção num versículo do ensinamento de Jesus em São João: “E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8,32). 
Em primeiro lugar, deve referir-se que o próprio Cristo, o Verbo de Deus ou o filho Unigénito do Pai é cheio de graça e de verdade (cf Jo 1,14); Ele, a quem os judeus queriam matar, recebeu de Deus a verdade (cf Jo 8,40). Depois, Ele mesmo é a verdade como é a vida e o caminho (cf Jo 14,6); Ele é a Palavra do Pai e a Verdade é a Palavra do Pai (cf Jo 17,17). A verdade é mesmo a marca eminente da sua missão: “Para isto nasci, para isto vim ao mundo: para dar testemunho da verdade. E todo aquele que vive da Verdade escuta a minha voz.” (cf Jo 18,37).
Por outro lado, sabemos que a verdade está e se manifesta em Jesus: “Nele todas as promessas de Deus se tornaram ‘sim’ e é por isso que, graças a Ele, nós podemos dizer o ‘ámen’ para glória de Deus” (2Cor 1,20); “Dele [de Cristo] ouvistes falar e nele fostes instruídos conforme a verdade que está em Jesus” (Ef 4,20).
Cristo chama-se “fiel e verdadeiro” (Ap 19,11) e o seu testemunho é confirmado e completado pela ação do Espírito Santo, o Espírito de verdade, que nos guiará para a verdade completa (cf Jo 14,26; 16,13).
Já o Antigo Testamento nos dá indicações preciosas sobre a verdade: identificando-se com fidelidade, a verdade é aquilo em que nos podemos apoiar (cf Gn 24,49; Ex 18,21; Jr 14,14); o ser humano pode fundar a sua vida na verdade (cf Sl 26/25,3; Mt 7,24-27); Deus é verdadeiro porque é fiel (cf Dt 7,9; Sl 31/30,6; 89/88,2; 132/131,11); a sua palavra é a Verdade (cf 2Sm 7,28); a Lei divina é a Verdade (cf Ne 9,13; Sl 93/92,5; 119/118,86); Verdade é a Sabedoria (cf Pr 23,23; Ecl 12,10; Sir 4,28).
Entretanto, deve ter-se em conta que muitos não suportam a verdade (2Tm 4,4: “desviarão os ouvidos das verdade e divagarão ao sabor das fábulas) e que o conhecimento da verdade exige disposições prévias: deixar de “ser crianças, batidos pelas ondas e levados por qualquer vento de doutrina, ao sabor do jogo dos homens, que maliciosamente eleva ao erro”, mas antes, “testemunhando a verdade no amor, cresceremos no amor em tudo para aquele que é a cabeça, Cristo (Ef 4,15); manter a firmeza da fé, vigiando de rins cingidos com a verdade e revestindo-nos da couraça da justiça (cf 6,14); aceitar morrer e viver com Cristo, sem nunca o negar (cf 2Tm 2,10-12); e evitar todo o pecado e a subjugação às paixões, para não nos acontecer como acontece àqueles que estão sempre a aprender, mas são incapazes de algum dia chegarem à verdade (cf 2Tm 3,7).
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No entanto, a comunicação da verdade, de seus princípios fundacionais, sua lei e suas normas tem de levar em linha de conta a situação existencial do ser humano, as suas limitações, o seu contexto e a teia das suas relações. Há, tantas vezes, que estabelecer um percurso, saber esperar.
A este respeito, o Papa Francisco, comentando a perícopa do Evangelho de São Marcos sobre o matrimónio (Mc 10,1-12), a 20 de maio, na Missa em Santa Marta, definiu o episódio relatado como uma cilada que uns fariseus tinham preparado contra Jesus, ‘a cilada da casuística’ ou a ‘armadilha da casuística’, montada por um ‘pequeno grupo de teólogos iluminados’ convictos de que possuíam toda a ciência e a sabedoria do povo de Deus.
“Enquanto as multidões se agruparam à volta dele e Ele outra vez as ensinava, como era seu costume, aproximaram-se uns fariseus que Lhe perguntaram, para O experimentar, se era lícito ao marido divorciar-se da mulher. Respondeu-lhes Jesus interrogando-os sobre o que lhes ordenara Moisés. E eles replicaram: ‘Moisés mandou escrever um documento de repúdio e divorciar-se dela’. Então o Mestre retorquiu: ‘Devido à dureza do vosso coração é que ele vos deixou esse preceito. Mas, desde o princípio da criação, Deus fê-los homem e mulherPor isso, o homem deixará seu pai e sua mãe para se unir à sua mulhere serão os dois um só. Portanto, já não são dois, mas um só. Pois bem, o que Deus uniu não o separe o homem.’ De regresso a casa, de novo os discípulos o interrogaram acerca disto. Jesus disse: ‘Quem se divorciar da sua mulher e casar com outra comete adultério contra a primeira. E, se a mulher se divorciar do seu marido e casar com outro, comete adultério’.” (Mc 10,1-12).

Diz o Papa que se tratou de um risco do qual Jesus escapou indo ‘além’, indo até ‘à plenitude do matrimónio’. E recorda que também o fizera com os saduceus, em relação à mulher que, havendo tido sete maridos, de acordo com a lei do levirato, na ressurreição não será esposa de nenhum, porque no céu não se tem ‘mulher nem marido’. As pessoas humanas viverão como anjos de Deus (vd Mc 12,18-27).
Naquele caso, Cristo evidenciou, segundo Francisco, a ‘plenitude escatológica’ do matrimónio, ao passo que, na resposta aos fariseus ‘vai à plenitude da harmonia da criação’: ‘Deus os criou homem e mulher, os dois serão uma só carne’.
No tempo de Jesus, segundo a orientação da escola rabínica do Hillel, qualquer pretexto servia de motivo bastante para que o homem pudesse entregar à esposa o libelo de divórcio – o que não era permitido à mulher, uma situação de clara desigualdade. Porém, a escola de Chamai, que também interpretava Moisés, exigia mais: só uma grave imoralidade da esposa permitia ao marido a entrega do libelo de repúdio. Desta divergente interpretação das disposições moisaicas resulta a pertinência da questão. No entanto, Jesus não obnubila a verdade, não condescendendo com normas meramente circunstanciais.
Assim, o Papa Francisco enuncia a verdade do matrimónio uno e indissolúvel:
“Não são mais dois, mas uma só carne. Assim, ‘o homem não divida o que Deus uniu. Seja no caso do levirato, seja neste, Jesus responde do lado da verdade esmagadora, da verdade contundente – esta é a verdade! – da plenitude sempre! E Jesus nunca negoceia a verdade. E estes, este pequeno grupo de teólogos iluminados, negociavam sempre a verdade, reduzindo-a à casuística. Jesus não negoceia a verdade e esta é a verdade sobre o matrimónio, não existe outra”.
Porém, Francisco não deixa de olhar para o lado da compreensão que a misericórdia impõe, não se limitando a enunciar a verdade de Deus:
“Mas Jesus é tão misericordioso, tão grande, que jamais, jamais, fecha a porta aos pecadores. Por isso, não se limita a expressar a verdade de Deus, mas pergunta também aos fariseus o que Moisés estabeleceu na lei. E, quando os fariseus lhe repetem que contra o adultério é lícito escrever ‘um ato de repúdio’, Cristo replica que aquela norma foi escrita ‘para a dureza dos seus corações’. Quer dizer, Jesus distingue sempre entre a verdade e a fraqueza humana, sem rodeios”.
E, num contexto de cultura do provisório, face a um mundo de pecado, carregado de tanta informação e ação antimisericórdia, como refere o padre Morujão em entrevista ao semanário Ecclesia, de 20 de maio, o Papa lança na mesa da reflexão a solução:
“Neste mundo em que vivemos, com esta cultura do provisório, a realidade do pecado é muito forte, mas Jesus, recordando Moisés, diz-nos: ‘Se há dureza do coração, se há pecado, algo se pode fazer: o perdão, a compreensão, o acompanhamento, a integração, o discernimento destes casos… Mas a verdade não se pode vender nunca! E Jesus é capaz de dizer esta verdade tão grande e, ao mesmo tempo, ser tão compreensivo com os pecadores, com os fracos”.
Nestes termos, são duas coisas as que Jesus nos ensina: “a verdade e a compreensão” – o que os ‘teólogos iluminados’ não conseguem fazer porque estão fechados na cilada da ‘equação económico-matemática ‘pode?’ ou ‘não pode?’ e/ou não questão shakespeariana (ser ou não ser, eis a questão). Por isso, são incapazes de horizontes maiores e de amar a fraqueza humana. Agarram-se à sua verdade como lapas sem tentarem discernir se essa é a verdade de Deus e a verdade que Ele gizou para o homem concreto, já que o homem em abstrato não interessa, porque não existe.
Assim, se releva a paciência com que Jesus elucida o fariseu que o convidou para um banquete, mas julgava apressadamente a pecadora que, arrependida, lhe ungia aos pés, lhos lavava com as sua lágrimas e lhos enxugava com os seus cabelos. E o Papa acentua a delicadeza com que Jesus trata a adúltera quando está para ser lapidada, ‘Eu também não te condeno; vai e de agora em diante, não peque mais’.
Jesus distingue sempre entre verdade e debilidade humana e para tal existe “o perdão, a compreensão, o acompanhamento, a integração, o discernimento destes casos, mas a verdade nunca se vende!”.
Em suma, devemos ser compreensivos com os pecadores, mas nunca devemos negociar a verdade. Por isso, Francisco formula um voto:
“Que Jesus nos ensine a ter, com o coração, uma grande adesão à verdade e também com o coração, uma grande compreensão e acompanhamento a todos os nossos irmãos que estão com dificuldades. E este é um dom, isto o ensina o Espírito Santo, não estes doutores iluminados, que para nos ensinar, precisam reduzir a plenitude de Deus a uma equação casuística. Que o Senhor nos dê esta graça”. 
Por fim, atenda-se ao repto apostólico da epístola de São Tiago, dirigido a todos e a cada um:
“Meus irmãos, se algum de vós se extravia da verdade e alguém o converte, saiba que aquele que converte um pecador do seu erro salvará da morte a sua alma e obterá o perdão de muitos pecados”.

2016.05.22 – Louro de Carvalho

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