Qualquer
filósofo e qualquer teólogo sabem que a verdade está acima de qualquer
interesse ou amizade. E, como diz o Papa Francisco, a verdade nunca se deve
negociar.
Consta
que alguns discípulos de Aristóteles, quando o ouviam ensinar em sentido
diferente do que ensinava Platão, que havia sido até há pouco o mestre
incontestado, respondia com a frase que se tornou sentenciosa: “Amicus Plato, sed magis amica veritas” (Platão
é amigo, mas mais amiga é a verdade).
No
atinente à mensagem de Cristo, em torno da qual gravita a reflexão teológica
cristã, os testemunhos de Jesus sobe a relevância e indispensabilidade da
verdade são frequentes.
Com efeito, só a verdade liberta (Jo 8,32). Porém, o conceito de “verdade”
tem vindo a desafiar a humanidade pelos séculos fora. Filósofos da antiga
Grécia debatiam a natureza da verdade e discutiam se ela era real e absoluta ou
relativa e ilusória. As suas dúvidas refletem-se na questão de Pilatos
levantada a Jesus, “Que é a
verdade?” (Jo 18,38), a que Ele não deu resposta ali.
Hoje, surge recorrentemente idêntica pergunta em várias situações. É de
vital importância que achemos a resposta a esta pergunta na área de religião. O
que é a verdade? Podemos conhecer a verdade? Para ajudar-nos a responder a
estas questões, teremos de centrar a nossa atenção num versículo do ensinamento
de Jesus em São João: “E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8,32).
Em
primeiro lugar, deve referir-se que o próprio Cristo, o Verbo de Deus ou o
filho Unigénito do Pai é cheio de graça e de verdade (cf
Jo 1,14); Ele, a quem
os judeus queriam matar, recebeu de Deus a verdade (cf
Jo 8,40). Depois,
Ele mesmo é a verdade como é a vida e o caminho (cf Jo 14,6); Ele é a Palavra do Pai e a
Verdade é a Palavra do Pai (cf Jo 17,17). A verdade é mesmo a marca eminente
da sua missão: “Para isto nasci, para
isto vim ao mundo: para dar testemunho da verdade. E todo aquele que vive da
Verdade escuta a minha voz.” (cf Jo 18,37).
Por
outro lado, sabemos que a verdade está e se manifesta em Jesus: “Nele todas as promessas de Deus se tornaram
‘sim’ e é por isso que, graças a Ele, nós podemos dizer o ‘ámen’ para glória de
Deus” (2Cor 1,20);
“Dele [de
Cristo] ouvistes falar e nele fostes instruídos conforme a
verdade que está em Jesus”
(Ef
4,20).
Cristo
chama-se “fiel e verdadeiro” (Ap 19,11) e o seu testemunho é confirmado
e completado pela ação do Espírito Santo, o Espírito de verdade, que nos guiará
para a verdade completa (cf Jo 14,26; 16,13).
Já
o Antigo Testamento nos dá indicações preciosas sobre a verdade: identificando-se
com fidelidade, a verdade é aquilo em que nos podemos apoiar (cf
Gn 24,49; Ex 18,21; Jr 14,14);
o ser humano pode fundar a sua vida na verdade (cf Sl 26/25,3; Mt 7,24-27); Deus é verdadeiro porque é
fiel (cf
Dt 7,9; Sl 31/30,6; 89/88,2; 132/131,11); a sua palavra é a Verdade (cf
2Sm 7,28); a Lei
divina é a Verdade (cf Ne 9,13; Sl 93/92,5; 119/118,86); Verdade é a Sabedoria (cf
Pr 23,23; Ecl 12,10; Sir 4,28).
Entretanto,
deve ter-se em conta que muitos não suportam a verdade (2Tm
4,4: “desviarão os ouvidos das verdade e divagarão ao sabor das fábulas) e que o conhecimento da verdade
exige disposições prévias: deixar de “ser crianças, batidos pelas ondas e levados
por qualquer vento de doutrina, ao sabor do jogo dos homens, que maliciosamente
eleva ao erro”, mas antes, “testemunhando a verdade no amor, cresceremos no amor
em tudo para aquele que é a cabeça, Cristo (Ef 4,15); manter a firmeza da fé,
vigiando de rins cingidos com a verdade e revestindo-nos da couraça da justiça (cf
6,14); aceitar
morrer e viver com Cristo, sem nunca o negar (cf 2Tm 2,10-12); e evitar todo o pecado e a
subjugação às paixões, para não nos acontecer como acontece àqueles que estão
sempre a aprender, mas são incapazes de algum dia chegarem à verdade (cf
2Tm 3,7).
***
No entanto, a
comunicação da verdade, de seus princípios fundacionais, sua lei e suas normas
tem de levar em linha de conta a situação existencial do ser humano, as suas
limitações, o seu contexto e a teia das suas relações. Há, tantas vezes, que
estabelecer um percurso, saber esperar.
A este respeito,
o Papa Francisco, comentando a perícopa do Evangelho de São Marcos sobre o
matrimónio (Mc 10,1-12), a 20 de maio, na Missa em Santa
Marta, definiu o episódio relatado como uma cilada que uns fariseus tinham
preparado contra Jesus, ‘a cilada da casuística’ ou a ‘armadilha da casuística’,
montada por um ‘pequeno grupo de teólogos iluminados’ convictos de que possuíam
toda a ciência e a sabedoria do povo de Deus.
“Enquanto as multidões se agruparam
à volta dele e Ele outra vez as ensinava, como era seu costume, aproximaram-se
uns fariseus que Lhe perguntaram, para O experimentar, se era lícito ao marido
divorciar-se da mulher. Respondeu-lhes Jesus interrogando-os sobre o que lhes
ordenara Moisés. E eles replicaram: ‘Moisés
mandou escrever um documento de repúdio e divorciar-se dela’. Então o Mestre
retorquiu: ‘Devido à dureza do vosso coração é que ele vos deixou esse
preceito. Mas, desde o princípio da criação, Deus fê-los homem e mulher. Por
isso, o homem deixará seu pai e sua mãe para se unir à sua mulher, e
serão os dois um só. Portanto, já não são dois, mas um só. Pois bem, o
que Deus uniu não o separe o homem.’ De regresso a casa, de novo os discípulos
o interrogaram acerca disto. Jesus disse: ‘Quem se divorciar da sua mulher
e casar com outra comete adultério contra a primeira. E, se a mulher se
divorciar do seu marido e casar com outro, comete adultério’.” (Mc 10,1-12).
Diz o Papa
que se tratou de um risco do qual Jesus escapou indo ‘além’, indo até ‘à
plenitude do matrimónio’. E recorda que também o fizera com os saduceus, em
relação à mulher que, havendo tido sete maridos, de acordo com a lei do
levirato, na ressurreição não será esposa de nenhum, porque no céu não se tem
‘mulher nem marido’. As pessoas humanas viverão como anjos de Deus (vd Mc 12,18-27).
Naquele caso,
Cristo evidenciou, segundo Francisco, a ‘plenitude escatológica’ do matrimónio,
ao passo que, na resposta aos fariseus ‘vai à plenitude da harmonia da criação’:
‘Deus os criou homem e mulher, os dois serão uma só carne’.
No tempo de
Jesus, segundo a orientação da escola rabínica do Hillel, qualquer pretexto servia
de motivo bastante para que o homem pudesse entregar à esposa o libelo de divórcio
– o que não era permitido à mulher, uma situação de clara desigualdade. Porém,
a escola de Chamai, que também interpretava Moisés, exigia mais: só uma grave
imoralidade da esposa permitia ao marido a entrega do libelo de repúdio. Desta divergente
interpretação das disposições moisaicas resulta a pertinência da questão. No entanto,
Jesus não obnubila a verdade, não condescendendo com normas meramente
circunstanciais.
Assim, o Papa
Francisco enuncia a verdade do matrimónio uno e indissolúvel:
“Não são mais dois, mas uma só carne.
Assim, ‘o homem não divida o que Deus uniu. Seja no caso do levirato, seja
neste, Jesus responde do lado da verdade esmagadora, da verdade contundente –
esta é a verdade! – da plenitude sempre! E Jesus nunca negoceia a verdade. E
estes, este pequeno grupo de teólogos iluminados, negociavam sempre a verdade,
reduzindo-a à casuística. Jesus não negoceia a verdade e esta é a verdade sobre
o matrimónio, não existe outra”.
Porém, Francisco
não deixa de olhar para o lado da compreensão que a misericórdia impõe, não se limitando
a enunciar a verdade de Deus:
“Mas Jesus é tão misericordioso, tão
grande, que jamais, jamais, fecha a porta aos pecadores. Por isso, não se
limita a expressar a verdade de Deus, mas pergunta também aos fariseus o que
Moisés estabeleceu na lei. E, quando os fariseus lhe repetem que contra o
adultério é lícito escrever ‘um ato de repúdio’, Cristo replica que aquela
norma foi escrita ‘para a dureza dos seus corações’. Quer dizer, Jesus
distingue sempre entre a verdade e a fraqueza humana, sem rodeios”.
E, num
contexto de cultura do provisório, face a um mundo de pecado, carregado de
tanta informação e ação antimisericórdia, como refere o padre Morujão em
entrevista ao semanário Ecclesia, de
20 de maio, o Papa lança na mesa da reflexão a solução:
“Neste mundo em que vivemos, com esta
cultura do provisório, a realidade do pecado é muito forte, mas Jesus,
recordando Moisés, diz-nos: ‘Se há dureza do coração, se há pecado, algo se
pode fazer: o perdão, a compreensão, o acompanhamento, a integração, o
discernimento destes casos… Mas a verdade não se pode vender nunca! E Jesus é
capaz de dizer esta verdade tão grande e, ao mesmo tempo, ser tão compreensivo
com os pecadores, com os fracos”.
Nestes termos,
são duas coisas as que Jesus nos ensina: “a verdade e a compreensão” – o que os
‘teólogos iluminados’ não conseguem fazer porque estão fechados na cilada da
‘equação económico-matemática ‘pode?’ ou
‘não pode?’ e/ou não questão shakespeariana (ser ou não ser, eis a questão). Por isso, são incapazes de
horizontes maiores e de amar a fraqueza humana. Agarram-se à sua verdade como
lapas sem tentarem discernir se essa é a verdade de Deus e a verdade que Ele
gizou para o homem concreto, já que o homem em abstrato não interessa, porque
não existe.
Assim, se releva
a paciência com que Jesus elucida o fariseu que o convidou para um banquete,
mas julgava apressadamente a pecadora que, arrependida, lhe ungia aos pés, lhos
lavava com as sua lágrimas e lhos enxugava com os seus cabelos. E o Papa acentua
a delicadeza com que Jesus trata a adúltera quando está para ser lapidada, ‘Eu
também não te condeno; vai e de agora em diante, não peque mais’.
Jesus distingue sempre entre verdade e debilidade humana e
para tal existe “o perdão, a compreensão, o acompanhamento, a integração, o
discernimento destes casos, mas a verdade nunca se vende!”.
Em suma, devemos ser compreensivos com os pecadores, mas nunca devemos
negociar a verdade. Por isso, Francisco formula um voto:
“Que Jesus nos ensine a ter, com o
coração, uma grande adesão à verdade e também com o coração, uma grande
compreensão e acompanhamento a todos os nossos irmãos que estão com
dificuldades. E este é um dom, isto o ensina o Espírito Santo, não estes
doutores iluminados, que para nos ensinar, precisam reduzir a plenitude de Deus
a uma equação casuística. Que o Senhor nos dê esta graça”.
Por fim, atenda-se
ao repto apostólico da epístola de São Tiago, dirigido a todos e a cada um:
“Meus irmãos, se algum de vós se extravia da verdade e
alguém o converte, saiba que aquele que converte um pecador do seu erro
salvará da morte a sua alma e obterá o perdão de muitos pecados”.
2016.05.22 – Louro de Carvalho
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