Celebra-se
hoje, 26 de maio e quinta-feira após a solenidade da Santíssima Trindade, a
solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo (conhecida geralmente pela expressão
latina “Corpus Christi” e, em
Portugal, pela expressão “Corpo de Deus”), pela qual se pretende aprofundar a
reflexão sobre o mistério sacramental da presença de Cristo sob as espécies do
pão e do vinho consagrados na celebração eucarística e intensificar a vivência
pessoal e comunitária desta fé simples e adulta. Com esta solenidade, a Igreja,
ainda imersa nas alegrais pascais e no fervor pentecostal, dá largas ao
entusiasmo do coração para celebrar, em atmosfera de louvor e exultação
espiritual, o sacramento misericordioso da presença amorosa e operante de Cristo
no meio dos homens – Cristo é Deus que habita
entre nós. É justo celebrá-Lo, comungá-Lo, adorá-Lo e dar público
testemunho Dele. A isto, vem a missa, o ato de adoração e a procissão.
A Igreja
católica, como as demais Igrejas cristãs (em datas e com detalhes diferentes), celebra o aniversário litúrgico da
instituição da Sagrada Eucaristia em quinta-feira santa, dado que foi na
véspera da sua Paixão (pridie
quam pateretur, vd Oração Eucarística I) que Jesus nos deixou o memorial do Seu Sacrifício redentor
e, levando ao extremo o Seu amor pela Humanidade (cf Jo 13,1), Se deu em corpo e sangue no pão e no
vinho repartidos pelos discípulos, lavou-lhes os pés e legou-lhes o mandamento
novo do Amor. Porém, a sombra da Cruz projeta-se de forma eminente nessa noite
em que Ele foi entregue nas mãos dos malfeitores e necessariamente na liturgia
eclesial do tempo, não sendo fácil a manifestação jubilosa por divino dom tão inefável.
Por isso, a
partir do século XIII, aparece esta festividade como resposta à necessidade
vivencial e cultual da Igreja na sua dimensão de esposa de Cristo. Trata-se,
pois, dum desdobramento da quinta-feira santa, para comemorar explicitamente a
presença de Cristo na Sua Igreja como Sacrifício Eucarístico de seu Corpo e
Sangue, memorial de sua Morte e Ressurreição: sacramento de piedade, sinal de
unidade, vínculo de caridade, sinaxe
ou convívio dos filhos, banquete pascal, em que Cristo nos é comunicado em
alimento, o espírito é repleto de graça e nos é dado o penhor da glória futura
(cf Sacrosanctum Concilium, n.º 47).
Na verdade,
em cada missa, após as palavras da narração da instituição da Eucaristia, o
sacerdote exclama: “Eis o mistério da fé”!
Com efeito, a Eucaristia celebra toda a fé cristã, todo o mistério de Cristo e
da Igreja – mistério inesgotável que é celebrado quotidianamente e em toda
parte, desde o nascer ao pôr-do-sol. O mesmo e único sacrifício de Cristo torna-se
presente, já não de modo cruento, mas como sacrifício memorial. E a Igreja
louva o Pai pelas maravilhas realizadas por Cristo, no Espírito Santo, rezando
nestes ou em semelhantes termos:
“Recordamos, ó Pai, neste momento, a paixão de Jesus, nosso Senhor, a Sua
ressurreição e ascensão; nós queremos oferecer-Vos este Pão que alimenta e dá
vida, este Vinho que nos salva e dá coragem” (Oração Eucarística V).
E a
Eucaristia celebrada estabelece a Comunhão com Cristo, que nos leva ao Pai, no
Espírito Santo, e com os irmãos, com os quais formamos um só corpo, o Corpo de
Cristo, a Igreja:
“Formamos um só corpo em Cristo Jesus, todos nós que comungamos o mesmo
Senhor” (do cantoral).
Sem olvidar
a conexão com o drama redentor da Paixão e Morte e do facto vitorioso da Sua
Ressurreição e Ascensão, esta solenidade constitui oportunidade privilegiada de
reflexão sobre as inesgotáveis riquezas da Eucaristia, de ação de graças a
Cristo pelo dom total de Si mesmo em Corpo e Sangue, como alimento e bebida (cf Jo,51-58), de público testemunho da sua presença na Hóstia (se no seu
corpo humano se esconde a divindade, no pão e no vinho se esconde a sua própria
humanidade – vd hino Adoro te devote) e de propósito de inserção de Cristo na vida do
mundo no quotidiano.
***
No Ano C, são
proclamadas as seguintes perícopas bíblicas: do Génesis (Gn 14,18-20), em que
Melquisedeque, rei de Salém, oferece pão e vinho; da 1.ª carta de São Paulo aos Coríntios (1Cor 11,23-26), o relato mais antigo da
instituição da Eucaristia; e do Evangelho de São Lucas (Lc 9,11b-17), um episódio da multiplicação dos
pães e dos peixes.
Melquisedeque sai ao encontro de Abraão e, ao invés do usual sacrifício
de cordeiros ou vitelos, trouxe pão e vinho, que ofereceu ao Deus Altíssimo como
sacrifício agradável a Ele e Nele abençoou Abraão, o qual lhe entregou a dízima
de tudo quanto produzia. Vê-se nesta oferta de pão e vinho a antecipação
figurada do pão e do vinho transmutados no Corpo e Sangue de Cristo, como fonte
de bênção e apelo a que os homens, o povo de Deus, reconheçam o Deus Altíssimo,
que Se torna próximo.
Sobre o texto de São Paulo, temos a meditação de hoje do Papa Francisco
na Basílica de São João de Latrão, a catedral do Bispo de Roma, centrada na
ordem de Cristo “Fazei
isto em memória de Mim” (1Cor 11,24.25), enunciada duas vezes pelo apóstolo, ao narrar à comunidade de Corinto
a instituição da Eucaristia. Aqui o pronome – “isto” – implica tomar o pão, dar
graças e parti-lo; tomar o cálice, dar graças e distribuí-lo. Jesus manda que
se repita o gesto
institutivo do memorial da sua Páscoa, pelo qual nos entregou o seu Corpo e o
Sangue. É este o gesto eucarístico que chegou até nós: é fazer a Eucaristia,
que tem Jesus como sujeito, mas atua pelas mãos do sacerdote ungidas do
Espírito Santo. E, fazendo a ponte para o texto do Evangelho de São Lucas, o
Papa relaciona a ordem “Fazei isto”
com uma outra ordem de Jesus “Dai-lhes, vós mesmos, de comer” (Lc 9,13) – algo que Ele, em obediência à vontade do Pai,
tinha já decidido, no seu íntimo, realizar. Com efeito, perante as multidões
cansadas e famintas, depois de terem ouvido Jesus falar sobre o reino de Deus e
O terem visto a curar aqueles que necessitavam, os Doze sugeriram que mandasse
embora a multidão para que procurasse pousada e alimento nas aldeias e casais das
redondezas. Porém, Jesus entendeu que pregar implica assumir a responsabilidade
e o cuidado para com aqueles que ou se deixaram mobilizar e fatigar com a
apresentação do Reino ou sentem, ao pé de nós, necessidade de alimento, pousada
e acolhimento. E ele compromete-se a dar a ajuda necessária. Por isso, não é
lícito despedir multidões famintas e, em consequência, o Mestre pregador e
taumaturgo lança o desafio, como sendo uma obrigação grave: “Dai-lhes, vós
mesmos, de comer”. E eles confessaram a sua insuficiência de meios: “Não temos senão cinco pães e dois peixes…”.
Jesus poderia
despicientemente tê-los mandado guardar aquela insignificância de provisões
perante a magnitude da multidão. Mas preferiu induzir a partilha. É por isso
que alguns negam que tenha havido aqui verdadeiro milagre (posição verdadeiramente temerária) ou subestimam a sua relevância; e
salientam que o verdadeiro milagre é o da partilha.
Não podendo
negar ou subestimar o milagre em si, importa refletir nas suas exigências.
Cristo não fez um prodígio para concitar o espetáculo, não prescindiu da
colaboração dos homens e da disponibilização dos seus magros recursos, bem como
da sua capacidade de espera paciente, mas o seu posicionamento é eucarístico:
tomou os pães e os peixes, elevou os olhos ao Céu e pronunciou sobre eles a
bênção, partiu e deu aos discípulos para distribuírem.
Na realidade,
diz o Papa, “é Jesus que abençoa e parte os pães até saciar toda aquela
multidão, mas os cinco pães e os dois peixes são oferecidos pelos discípulos. E
era isto o que Jesus queria: que eles, em vez de mandarem embora a multidão,
pusessem à disposição o pouco que tinham”. E Francisco salienta um outro gesto:
“Os pedaços de pão, partidos pelas
mãos santas e veneráveis do Senhor, passam para as pobres mãos dos discípulos,
que os distribuem às pessoas. Também isto é fazer
com Jesus, é dar de comer juntamente
com Ele. Evidentemente este milagre não pretende apenas saciar a fome de um
dia, mas é sinal daquilo que Cristo tem em mente realizar pela salvação de toda
a humanidade, dando a sua carne e o seu sangue (cf Jo 6,48-58). E, no entanto, é preciso
passar sempre através destes dois pequenos gestos: oferecer os poucos pães e
peixes que temos; e receber o pão partido das mãos de Jesus e distribuí-lo a
todos.”.
Depois, o
Papa volta ao texto Paulino para glosar o sentido do verbo “partir”. Partir
integra e explica o significado da frase “Fazei
isto em memória de Mim”. O próprio Jesus Se repartiu e reparte por nós. E “pede
que façamos dom de nós mesmos, que nos repartamos pelos outros”. Foi, realça
Francisco, este partir o pão que se
tornou ícone, sinal de reconhecimento de Cristo e dos cristãos. Os discípulos
de Emaús só O reconheceram ao partir o pão (cf Lc 24,35) e uma das marcas da primeira comunidade de Jerusalém
era a assiduidade à fração do pão (cf At 2,42). É a Eucaristia que se torna, desde
o início, o centro e a forma da vida da Igreja.
É na partilha
e na entrega dos irmãos, em aliança com a bênção, que se manifesta a abundância
de Deus e todos se saciam. E é na guarda parcimoniosa das sobras e de maior
disponibilidade que se perpetua a manifestação desta liberal abundância de Deus
e dos seus dons. Ao fazer-nos pensar “em todos os santos e santas – famosos ou
anónimos – que se repartiram a si
mesmos, que repartiram a própria vida, para dar
de comer aos irmãos”, o Papa recorda as consequências da celebração
eucarística na vida dos cristãos. Por isso, ele, ao invés de dar indicações
expressas, aponta expressivamente exemplos da atualidade:
“Quantas mães, quantos pais,
juntamente com o pão quotidiano cortado sobre a mesa de casa, repartiram o seu
coração para fazer crescer os filhos, e fazê-los crescer bem! Quantos cristãos,
como cidadãos responsáveis, repartiram a própria vida para defender a dignidade
de todos, especialmente dos mais pobres, marginalizados e discriminados!”.
E assegura
que é precisamente na Eucaristia – “na força do amor do Senhor ressuscitado,
que também hoje parte o pão para nós e repete “Fazei isto em memória de Mim” – que encontram a força para tanta
entrega e partilha. Por isso, também pretende que as procissões eucarísticas sejam
também “resposta a esta ordem de Jesus”, constituindo gestos “para fazer
memória d’Ele”, gestos “para dar de comer à multidão de hoje”, gestos “para
repartir a nossa fé e a nossa vida como sinal do amor de Cristo por esta cidade
[Roma] e pelo mundo inteiro”.
***
O exemplo
vem de Roma: após a Missa, na Basílica de S. João de Latrão, realiza-se a procissão
até a Basílica de Santa Maria Maior, num trajeto de cerca de 1,5 km ao longo da
Via Merulana, no centro da capital italiana. A procissão lembra a caminhada do
povo de Deus, povo peregrino, em busca da Terra Prometida. No Antigo
Testamento, o povo foi alimentado com o maná no deserto. Hoje, ele é alimentado
com o próprio Corpo de Cristo no deserto da vida.
“A procissão
de quinta-feira santa acompanhou Jesus na sua solidão rumo à “Via Crucis” e, na de Corpus
Christi, acompanhamos o Ressuscitado no seu caminho pelo mundo inteiro”, disse
Bento XVI na sua primeira celbração, como Papa, do Corpus
Christi, em 2005.
2016.05.26 – Louro de Carvalho
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