quarta-feira, 4 de maio de 2016

Afinal querem mais Estado na sociedade!

O Governo prometeu, no início do seu exercício, proceder à revisão dos contratos de associação celebrados com as escolas privadas. Em conformidade com tal propósito, a partir do próximo ano letivo, o Ministério da Educação deixará de financiar novas turmas em colégios privados em zonas onde exista escola pública. Além disso, a tutela aplicará a regra da limitação geográfica, prevista na lei, e os alunos do básico e secundário só se podem matricular nas escolas da sua freguesia.  Estas regras apanharam de surpresa os 86 colégios com contrato de associação – turmas financiadas com dinheiro público – que acusam a tutela de “má-fé” e de “violar a lei”.  
Como consequência, afirma-se que mais de metade daqueles colégios (57%) correm o risco de encerrar em setembro mercê da alteração das regras nas matrículas dos alunos e do financiamento de turmas dos 7.º e 10.º anos de escolaridade.  Segundo a AEEP (Associação dos Estabelecimentos de Ensino Particular e Cooperativo), com o fecho de portas destas escolas 4.222 professores e pessoal não docente irão para o desemprego, representando uma indemnização total na ordem dos 55 milhões de euros; e 17.213 alunos de 656 turmas dos 7.º e 10.º anos perderão a propina paga pelo Estado para a frequência do colégio.
Rodrigo Queiroz e Melo, presidente da AEEP, fala de números que alegadamente representam “o descalabro do setor” pondo em causa “milhares de percursos educativos e postos de trabalho” e afetando colégios, que o dirigente associativo considera o “maior empregador e dinamizador da economia local”. Por isso, anunciou já ter solicitado audiência urgente ao Presidente da República, que se mostrou compreensivo, ao Primeiro-Ministro, ao Presidente do Parlamento, aos grupos parlamentares e ao Provedor de Justiça.
As negociações com o Ministério da Educação sobre estas regras ainda estão a decorrer, mas a intenção da tutela em travar os novos contratos e associação foi anunciada na semana passada pela secretária de Estado Adjunta e da Educação, Alexandra Leitão, sustentada em dados concretos de escolas públicas a definhar mercê da concorrência disputada localmente por escola privada.
Confrontada com os dados da AEEP, a tutela diz que “as reuniões de gestão da rede escolar” estão em decurso, pelo que “ainda não são conhecidas todas as necessidades a suprir no próximo ano letivo”. Não obstante, adiantou que “serão financiadas apenas em colégios que cumpram um papel de complementaridade face à oferta de estabelecimentos públicos de ensino”.
Além do impacto previsto pela aplicação destas medidas, os defensores da posição dos colégios apresentam uma interpretação diferente da lei face à do Governo e fazem uma interpretação preciosista da Constituição.
O presidente do FLE (Fórum Liberdade de Educação) invoca para a sustentação da liberdade de escolha de escola com financiamento absoluto público do ensino, seja em que tipo de estabelecimento for, a liberdade constitucional de aprender e de ensinar (vd CRP, art.º 43.º/1). Ora, do meu ponto de vista, esta liberdade não está intrinsecamente conexa com o financiamento da escola, mas com o grau de autonomia que os docentes e os discentes conseguem no sentido da produção, organização e avaliação das aprendizagens. E aí muito teríamos de falar quer na escola pública quer na escola privada, não é, senhor Ministro e senhores diretores?
Depois, Fernando Adão da Fonseca põe o pé no estribo do n.º 2 do mesmo art.º 43.º, que refere que “o Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas”. E aqui dá-me para questionar, como o fazem na minha terra, sobre o que é que o traseiro tem a ver com as calças. Com efeito, nunca vi os professores do ensino público ou do privado (nem os diretores de escola pública e privada) contestar a orientação curricular e programática da escola e das diversas disciplinas.
Toda a escola pública e privada tem o seu projeto educativo, mas não se palpam diferenças substanciais, já que todos estão sujeitos aos programas de ensino traçados pelo Ministério da Educação. E não me digam que não há orientações ideológicas ora mais socializantes ora mais liberais! Parece que a liberdade se resume à possibilidade de os pais escolherem a escola que bem entenderem e ao dever de o contribuinte pagar.
Também se invoca a constitucionalmente estipulada garantia do direito de criação de escolas particulares e cooperativas (vd art.º 43.º/4), acrescentando-se-lhe unilateralmente o dever de o Estado arcar com os seus custos, independentemente da situação de aguda crise nacional e internacional. Esquece-se com facilidade o estabelecido no art.º 75.º da CRP em relação à ação obrigatória do Estado em criar “uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população” e em reconhecer e fiscalizar “o ensino particular e cooperativo, nos termos da lei”.
Assim, compreende-se que, onde não houver oferta pública de ensino, o Estado tenha a obrigação de financiar o ensino obrigatório, agora de 12 anos de escolaridade. O resto não é obrigação do Estado. E muito admira que tantos mentores e tantas mentoras da opinião pública que passam o tempo a clamar por menos Estado na sociedade agora passem a clamar por mais Estado, esquecendo que o Estado tem a obrigação de fiscalizar o ensino privado ainda que o não pague. Está em causa sobretudo o controlo da eficácia e da qualidade (como o deve fazer em relação a qualquer empresa privada) e a observância do respeito da liberdade de aprender e ensinar.
Dizem-nos que as escolas são todas públicas, desde que prestem o serviço público de educação. E, para os utentes não interessa saber quem é o dono das escolas, mas o tipo de serviço que prestam. E comparam com os transportes “públicos” – privados ou do Estado – dizendo que o importante é a qualidade do transporte e não o tipo de dono. Mas esquecem que esse serviço público é pago. Por outro lado, embora elas também prestem algum serviço público, ninguém afirma em seu perfeito juízo que a SIC ou a TVI são estações públicas. Todos sabem que são de entidades privadas, ainda que beneficiárias de licença estatal para o exercício da atividade.
Quanto à interpretação da lei, deve ter-se em conta o estipulado no estatuto do ensino particular e cooperativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 152/2013, de 4 de novembro. O seu art.º 17.º estabelece que “o Estado concede às escolas que celebrem contratos de associação um apoio financeiro, que consiste na atribuição de uma verba, nos termos a fixar por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da educação” (n.º 1) e que “o Estado assegura a manutenção do contrato até à conclusão do ciclo de ensino pelas turmas ou alunos por ele abrangidas”.
Com a nova posição da tutela, mantém-se a liberdade de escolha e mantém-se o financiamento pelo respetivo ciclo de estudos, o qual, uma vez iniciado com financiamento, chegará a seu termo com financiamento. E, se o contrato pontual do Estado com uma escola ou com a AEEP foi mais generoso e além da lei, pode, como qualquer contrato inter pares, ser denunciado em qualquer momento por uma das partes.
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As escolas privadas estribam-se na alegação da plurianualidade dos contratos em vigor, que entendem não poder ser quebrada. Assim, os colégios com contratos de associação defendem que o contrato é firmado com a escola e que durante três anos podem abrir turmas dos 7.º e 10.º anos (em início dos 3.º ciclo e secundário). O Ministério da Educação tem entendimento diverso. Para a tutela os contratos estabelecidos “não são plurianuais, não havendo, por isso, direito a constituir novas turmas em início de ciclo”. Nestes termos, os contratos são aplicados às turmas e acompanham o ciclo escolar do aluno, do 7.º ao 9.º ano e do 10.º ao 12.º ano, ficando de fora as turmas que agora iniciam o ciclo escolar, a não ser que novas negociações viessem a concluir de outra forma – o que parece vir a acontecer para os casos e que não haja oferta pública no território de área de influência da respetiva escola privada.
Os colégios, como lhes convêm mais favores do Estado e como correspondem ao desejo de muitos pais de que os filhos tenham uma preparação orientada para o ingresso no curso superior de primeira escolha – dê por onde der – dizem estarmos perante “uma violação grosseira e errada” dos contratos, declarando que não vão aceitar que o “Estado viole os seus compromissos e a palavra dada”. Por isso, tanto a AEEP como a MEPEC (Associação Movimento de Escolas com Ensino Público Contratualizado) apelam às escolas que equacionem o recurso aos tribunais para contestarem o novo despacho de matrículas e frequências escolares.
Estes contratos de associação foram estabelecidos nos anos 80 para suprimento das necessidades educativas em regiões do País onde a rede pública não chegava ou era deficitária, sendo que as turmas abrangidas por este regime são totalmente financiadas pelo Estado e não implicam qualquer pagamento das famílias. Recentemente, os governos têm sido mais generosos: hoje há 1.751 turmas, frequentadas por mais de 45 mil alunos, do 7.º ao 12.º ano e financiadas com contrato de associação. Cada turma recebe 80.500 euros anuais.  
Rodrigo Queiroz e Melo afirmou, a 3 de maio, à Rádio Renascença que o Governo fez “tábua rasa” dos contratos que tinha assinado com as escolas particulares e que a associação tem sentido maior resistência nas negociações devido à influência e à presença de uma “ideologia de extrema-esquerda” no Governo. E ousa acusar a existência na maioria parlamentar da “noção de que uma escola uniforme controlada laboralmente tem um peso que uma intervenção política de uma escola livre e controlada pelas comunidades não tem”. Por conseguinte, considera que está em causa neste debate “uma visão de um serviço educativo ao serviço de uma ideologia política e não ao serviço dos alunos”.
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É óbvio que o problema sempre foi de ideologia (à esquerda ou à direita). Será que Marcelo vai intrometer-se na disputa, como quer o presidente da AEEP, deixando ermar as escolas públicas?
Será que as escolas privadas são o apanágio a eficácia e da qualidade, só porque o controlo do estado sobre elas é exíguo? Será por aqui que passará o consenso nacional tanto do agrado de Cavaco e de Marcelo?

2016.05.04 – Louro de Carvalho

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