sábado, 7 de maio de 2016

Sobre a recusa de Vítor Constâncio de depor perante o Parlamento

Vítor Constâncio, vice-presidente do BCE (Banco Central Europeu), ex-governador do Banco de Portugal e antigo Ministro das Finanças (além de antigo secretário-geral do PS), foi referido num e-mail divulgado pelo PSD segundo o qual uma alta responsável do BCE – a própria presidente do conselho de supervisão do BCE, Danièle Nouy – confirmava ter havido contactos telefónicos do Ministro das Finanças português, Mário Centeno, e do próprio Vítor Constâncio, na véspera do anuncio da resolução do Banif, para que desbloqueasse a oferta do Santander junto da Comissão Europeia.
Questionado sobre o alegado facto em conferência de imprensa em Amesterdão, depois de uma reunião do Ecofin (ministros da Economia e Finanças dos Estados-membros), Vítor Constâncio declarou que não vai responder ao pedido de depoimento feito pela CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) ao Banif, uma vez que o BCE só responde perante o Parlamento Europeu e não presta contas a parlamentos nacionais. Por outro lado, assegurou que não recebera qualquer pedido da comissão prestar declarações sobre o Banif. Não obstante, dirigiu uma carta ao Parlamento, alegadamente por cortesia, aduzindo que pouco mais tinha a esclarecer, a não ser nada ter a ver com o caso e que nunca interveio na área da supervisão, área que não está no âmbito das suas atribuições no BCE.
Mas a verdade incontornável é que, no dia 20 de dezembro de 2015, um domingo, o Governo e o BdP (Banco de Portugal) anunciaram a resolução do Banif, através da qual parte da atividade bancária foi vendida ao Santander por 150 milhões de euros e os ativos tóxicos foram transferidos para a nova sociedade veículo, tendo o Estado – aliás os contribuintes – arcado com a responsabilidade de largos milhões de euros.
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Conhecidas as reações do português tornado eurocrata financeiro, o deputado do PSD Carlos Abreu Amorim considerou a atitude do vice-presidente do BCE como “lamentável e estranha” e sustentou que Constâncio “muito poderá ajudar” a CPI ao Banif. A este respeito, o deputado socialdemocrata disse à Lusa:
“O grupo parlamentar do PSD apela ao doutor Vítor Constâncio para colaborar com a comissão parlamentar de inquérito do Banif, porque temos a certeza de que muito nos poderá ajudar”.
É um apelo concreto do partido a que Vítor Constâncio reveja a sua posição de não responder perante o parlamento português e colaborar com a CPI ao Banif. E o socialdemocrata explicitou:
“Se se agarrar ao formalismo de que, como vice-presidente do BCE, não responde perante o Parlamento português, então, os cidadãos portugueses são obrigados a retirar a conclusão de que o doutor Vítor Constâncio tem alguma coisa a esconder e que, por isso, é que não quer colaborar com a descoberta da verdade”.
Mais: Carlos Abreu Amorim insinua, em nome do seu partido, uma alteração de postura do eurocrata financeiro, contraditória com o seu passado:
“O PSD julga que esta atitude do doutor Vítor Constâncio é lamentável e espera sinceramente que o doutor Vítor Constâncio venha a reconsiderar. O doutor Vítor Constâncio, já enquanto vice-presidente do Banco Central Europeu, colaborou por duas vezes com uma comissão parlamentar de inquérito no parlamento português: a primeira vez, na segunda comissão parlamentar de inquérito do BPN, presencialmente, e a segunda vez, com a comissão parlamentar de inquérito do BES, em que depôs por escrito”.
A atitude de Constâncio, além de lamentável é estranha, pois, segundo o parlamentar do PSD, o visado “tem aparecido sucessiva e constantemente em documentos e em depoimentos de pessoas que têm colaborado com a comissão parlamentar de inquérito e pode-se dizer que ele é hoje uma espécie de pano de fundo do caso Banif, [pelo que] a sua colaboração com o parlamento português era fundamental, era essencial”. Depois, criticando o formalismo em que se escora o vice-governador do BCE, acusou:
“O doutor Vítor Constâncio alegar que o parlamento português não tem jurisdição sobre o Banco Central Europeu parece-nos ser de um formalismo que, em primeiro lugar, colide com atitudes que o próprio Dr. Vítor Constâncio tomou no passado e, em segundo lugar, parece esquecer que nós não estamos a falar de uma personagem qualquer da política portuguesa, é um cidadão com especiais responsabilidades”.
E concluiu:
“Foi deputado, foi governante, foi governador do Banco de Portugal e, portanto, é alguém que tem especiais responsabilidades públicas na história política portuguesa e, por isso, tem o dever acrescido de colaborar com o parlamento português”.
Nestes raciocínios, Amorim é acompanhado pela generalidade dos deputados, que insistem na necessidade de Constâncio depor, sob pena de participação ao Ministério Público do crime de desobediência qualificada. E PS e BE criticam a política de independência do BCE.
Sobre a declaração de Constâncio de que não recebera qualquer convocatória para depor António Filipe, presidente da CPI, declarou:
“Tivemos alguma dificuldade em encontrar o endereço direto para o Dr. Vítor Constâncio. É verdade que ele ainda não tinha recebido essa comunicação. Vamos propor uma data para a realização da audição em videoconferência.”.
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O BCE assumiu decisões que ditaram inexoravelmente o fim do Banif. A 16 de dezembro, o Conselho de Governadores, presidido por Constâncio, na ausência de Mario Draghi, com a participação de Carlos Costa, decidiu pela limitação da liquidez do Banif junto do Euro-sistema e ameaçou com a suspensão do estatuto de contraparte do banco no BCE caso a resolução e a venda não se fizessem até ao dia 21. Também no dia 16, o Mercado Único de Supervisão, em cuja sessão participou o administrador do BdP António Varela, resolveu não atribuir licença de funcionamento para um “banco de transição” que protelasse a venda e permitisse condições de negócio mais vantajosas para o Estado. Isto foi o que realmente aconteceu, embora não oficialmente confirmado, mercê do dever de confidencialidade.

Quanto à independência do BCE, o próprio presidente do Parlamento Europeu a defendeu ao ser questionado sobre a atitude de Constâncio no caso português, referindo que o BCE se criou à semelhança do Banco Central Alemão, que sempre primou pela independência estatutária. Por isso, não se pronunciava sobre casos concretos, mas compreendia a independência do BCE.

O BCE considera-se a si mesmo caso único e especial entre os bancos centrais da sua dimensão. Numa edição especial do seu boletim oficial, em novembro de 2002, onde se trata, de forma exaustiva, do problema da prestação de contas deste órgão da UE, que goza de um estatuto de independência muito peculiar, poderá ler-se:
“Ao invés dos bancos centrais em estados-nação ‘convencionais’, o BCE atua sob circunstâncias políticas, económicas e institucionais especiais: é um banco central supranacional”.
Apesar de garantir que a prestação de contas é “a pedra angular da sua legitimidade”, o BCE especifica as circunstâncias em que presta contas. É regra do BCE as suas decisões serem colegiais, não podendo nenhum dos membros ser responsabilizado individualmente. O BCE responde como um todo pela voz do presidente, uma vez que a regra da “prestação individual de contas dos membros do Conselho de Governadores e do Conselho Executivo seria inconsistente com a estrutura institucional e com a substância política.
Em teoria, o BCE presta contas, “antes e acima de tudo aos cidadãos europeus”. Todavia, na prática, vale o estipulado no art.º 113.º do Tratado. Assim, o BCE é obrigado a fazer o relatório anual de atividade, que entrega ao Parlamento, à Comissão e ao Conselho – europeus. Por outro lado, excede essa prestação de contas ao publicar mensalmente um boletim informativo. Porém, não publica minutas das reuniões dos seus principais órgãos decisórios nem torna público o sentido de voto dos seus membros. Afora isso, o presidente do BCE, com a participação voluntária de vice-governadores, é chamado, 4 vezes por ano, a responder obrigatoriamente ante os eurodeputados do Comité de Assuntos Económicos e Monetários. E, apesar de tal não estar previsto na lei, o BCE responde a perguntas por escrito dos deputados desse Comité.
Além destes mecanismos, só resta mesmo a ação  judicial, prevista nos artigos 230.º a 233.º do Tratado da UE. Comissão, Conselho ou qualquer Estado-membro podem agir judicialmente no Tribunal Europeu de Justiça contra o BCE, caso considerem ter havido “falta de competência, infração de requisitos processuais essenciais, infração do Tratado ou de qualquer disposição legal ou uso abusivo de poder”.

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É politicamente questionável a blindagem desta instância europeia, mas as regras dão azo à recusa de Constâncio. O BCE tem estatuto supranacional que lhe permite obstar ao escrutínio dos parlamentos nacionais, escrutínio remetido para os bancos centrais nacionais, que são os ramos do BCE em cada Estado-membro. Ora, é o BdP que responde ao Parlamento. Contudo, Carlos Costa alegou, algumas vezes, não poder responder aos deputados mercê da vinculação ao sigilo do BCE. Por isso, a ata (de 3 páginas) da reunião que decidiu a sorte do Banif chegou à CPI com 2 páginas e meia cobertas por tiras negras que a tornam ilegível. O governador garante que pediu, sem êxito, ao BCE para tornar pública a ata.
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Constâncio é, do meu ponto de vista, obrigado a responder à CPI, a abrigo do n.º 1 do art.º 16.º do Regime Jurídico dos Inquéritos Parlamentares, aprovado pela Lei n.º 5/93, de 1 de março, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 126/97, de 10 de dezembro, e pela Lei n.º 15/2007, de 3 de abril, que estipula:  
As comissões parlamentares de inquérito podem convocar qualquer cidadão para depor sobre factos relativos ao inquérito” (n.º 1); “gozam da prerrogativa de depor por escrito, se o preferirem, o Presidente da República, os ex-presidentes da República, o Presidente da Assembleia da República, os ex-presidentes da Assembleia da República, o Primeiro-Ministro e os ex-primeiros-ministros, que remetem à comissão, no prazo de 10 dias a contar da data da notificação dos factos sobre que deve recair o depoimento, declaração, sob compromisso de honra, relatando o que sabem sobre os factos indicados” (n.º 2).
Vítor Constâncio não deixou de ser cidadão português e a matéria decidida atinge os interesses de Portugal. Não basta dizer-se que pode ser chamado a depor no PE perante os eurodeputados portugueses – porque não o podem ouvir fora do âmbito do respetivo Comité. Não se crê, por outro lado, que o Comité de Assuntos Económicos e Monetários seja politicamente competente para apurar a responsabilidade dos factos em casos pendentes num Estado-Membro.
Como o n.º 1 do art.º 17.º do referido regime jurídico estabelece que “a falta de comparência ou a recusa de depoimento perante a comissão parlamentar de inquérito só se tem por justificada nos termos gerais da lei processual penal”, é de ter em conta o n.º 3 do mesmo artigo que diz:
“Não é admitida, em caso algum, a recusa de comparência de funcionários, de agentes do Estado e de outras entidades públicas, podendo, contudo, estes requerer a alteração da data da convocação, por imperiosa necessidade de serviço, contanto que assim não fique frustrada a realização do inquérito”.
Depois, há que dar seguimento ao determinado no do art.º 19.º:
“Fora dos casos previstos no artigo 17.º, a falta de comparência, a recusa de depoimento ou o não cumprimento de ordens legítimas de uma comissão parlamentar de inquérito no exercício das suas funções constituem crime de desobediência qualificada, para os efeitos previstos no Código Penal” (n.º 1); “verificado qualquer dos factos previstos no número anterior, o presidente da comissão, ouvida esta, comunicá-lo-á ao Presidente da Assembleia, com os elementos indispensáveis à instrução do processo, para efeito de participação à Procuradoria-Geral da República” (n.º 2).
Se os tribunais portugueses se declararem incompetentes ou se persistirem dúvidas, resta o recurso ao competente tribunal da UE. 
Obviamente, o formalismo da regra é ultrapassável com pedido de autorização ao Presidente do BCE. Depois, há que perguntar como não podem responder ao Parlamento e podem fazer as declarações que lhes apeteçam sobre tudo e todos, vindo até a perorar num Conselho de Estado?
E se as regras de independência são iníquas, mudem-nas!

2016.05.07 – Louro de Carvalho

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