sexta-feira, 6 de maio de 2016

O Papa dedicou à Europa o Prémio Carlos Magno

Na sequência do anúncio, feito pelo respetivo Comité Executivo, a 23 de dezembro de 2015, em Aquisgrano, Alemanha, de que o vencedor de 2016 do Prémio Carlos Magno seria o Papa Francisco, procedeu-se hoje, dia 6 de maio, à cerimónia da entrega do galardão ao Pontífice no Vaticano, na Sala Régia do Palácio Apostólico, pelas 12 horas (hora de Roma). A distinção foi entregue pelo presidente municipal de Aachen (Alemanha), Marcel Philipp, e por Jurgen Linden, da Fundação Carlos Magno, na presença dos presidentes da Comissão, do Parlamento e do Conselho Europeus, respetivamente, Jean-Claude Juncker, Martin Schulz e Donald Tusk.
Antes, o Papa concedeu audiências privadas a Juncker, Schulz e Tusk, bem como à chanceler alemã Angela Merkel, presentes no Vaticano para a entrega do prémio, conferido anualmente a personalidade que se destaque no trabalho realizado em prol da integração e da união na Europa.
Na verdade o Prémio Carlos Magno foi estabelecido em 1949, após a II Guerra Mundial. E esta distinção, considerada como uma das mais importantes na Europa, tinha sido outorgada ao Papa São João Paulo II, em 2004. Entre os galardoados contam-se também o ex-presidente francês, François Mitterand  e o ex-chanceler alemão, Helmut Koll, ex aequo em 1988, ou o ex-presidente dos Estados Unidos da América, Bill Clinton, distinguido no ano 2000.
Em relação ao Papa argentino, o Presidente do Parlamento Europeu declarou à Rádio Vaticano que Francisco, filho de imigrantes italianos na Argentina, conhecera um “mundo diferente” dos europeus. Por isso, “abre-nos os olhos e faz-nos refletir sobre o quanto devemos estar gratos e reconhecidos por este mundo maravilhoso que é a Europa, na qual nos é consentido viver”.
Evocando o discurso papal no Parlamento Europeu, a 25 de novembro de 2014, o júri elogiou a mensagem de “paz e compreensão” trazida por Bergoglio e a postura de compaixão, tolerância, solidariedade e integridade que caraterizam o seu pontificado. Além disso, encareceu a figura de Francisco como “voz da consciência” e “autoridade moral extraordinária” para a Europa.
A Santa Sé, por sua vez, explicara que o Papa aceitou a distinção a título “totalmente excecional”, como gesto simbólico para que “a Europa trabalhe pela paz”.
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Hoje, no seu discurso, depois de agradecer as palavras que lhe foram dirigidas, Francisco foi claro em reiterar a sua “intenção de dedicar à Europa este prestigioso Prémio”, aduzindo que “não estamos a comemorar qualquer gesto, mas queremos aproveitar o ensejo para, juntos, almejarmos um novo e corajoso impulso a este amado Continente”. Ou seja, aproveitou o momento para o encorajamento a que a Europa seja a Europa que deveras anseia ser.
Depois, destacou como pertença à alma da Europa “a criatividade, o engenho, a capacidade de se levantar e sair dos seus limites”. Assim, após “anos de trágicos confrontos” cujo ápice foi a “guerra mais terrível de que se tem memória”, surgiu um movimento inédito: a construção duma nova Europa. Com efeito, “as cinzas dos escombros” não extinguiram a esperança e a busca do outro que ardiam no coração dos Pais fundadores do projeto europeu”. Os Estados uniram-se, “não por imposição, mas por livre escolha do bem comum, renunciando para sempre a guerrear-se”. Porém, depois de esta família de povos se ter “louvavelmente ampliado”, sente-se agora que “aquela atmosfera de novidade e aquele desejo ardente de construir a unidade aparecem sempre mais amortecidos”. Não obstante, o Pontífice mostra-se convicto de que “a resignação e o cansaço não pertencem à alma da Europa e que as próprias “dificuldades podem revelar-se fortemente promotoras de unidade”.
E, tendo recordado algumas das interrogações que lançara sobre o devir europeu no discurso que fez ao seu Parlamento, não deixou agora de também interrogar a Europa:
Que te sucedeu, Europa humanista, paladina dos direitos humanos, da democracia e da liberdade? Que te sucedeu, Europa terra de poetas, filósofos, artistas, músicos, escritores? Que te sucedeu, Europa mãe de povos e nações, mãe de grandes homens e mulheres que souberam defender e dar a vida pela dignidade dos seus irmãos?”
Evocando o escritor Elie Wiesel, que sustentava a necessidade da realização duma transfusão de memória”, assegurou que a memória não só nos permitirá “evitar cometer os mesmos erros do passado”, mas também nos dará “acesso às conquistas que ajudaram os nossos povos a ultrapassar com êxito as encruzilhadas históricas que iam encontrando”. Assim, segundo o Pontífice, “a transfusão de memória liberta-nos da tendência atual”, tentadora e fascinante, “de forjar à pressa, sobre areias movediças, resultados imediatos” passíveis de “produzir ganhos políticos fáceis, rápidos e efémeros, mas que não constroem a plenitude humana”.
Nestes termos, Francisco propõe que “precisamente agora, neste nosso mundo dilacerado e ferido”, se volte “àquela solidariedade de facto, à mesma generosidade concreta que se seguiu à II Guerra Mundial”. Para tanto apoia-se nas afirmações de Robert Schuman:
“A Europa não se fará duma só vez, nem através duma construção de conjunto; far-se-á através de realizações concretas que criem, antes de tudo, uma solidariedade de facto. […] A paz mundial não poderá ser salvaguardada sem esforços criativos à altura dos perigos que a ameaçam.”. 
Sublinhando que os projetos dos Pais fundadores da Europa “não estão superados”, mas nos inspiram “hoje, mais do que nunca, a construir pontes e a derrubar muros”, preconiza que “nós todos, igualmente animados pela preocupação do bem comum das nossas pátrias europeias, da nossa Pátria Europa, recomecemos, sem medo, um trabalho construtivo que requer todos os nossos esforços de paciente e longa cooperação”.
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Com base na mencionada “transfusão de memória”, ousa enunciar as três capacidades que, em seu entender, concretizarão, “à luz um novo humanismo”, o premente “desafio de atualizar a ideia de Europa”: a capacidade de integrar, a capacidade de dialogar e a capacidade de gerar.
No atinente à capacidade de integrar, o Papa chama a atenção para A ideia de Europa, de Erich Przywara, que “desafia a pensar a cidade como um lugar de convivência entre vários órgãos e níveis”. E apresenta como exemplo de ilustração desta ideia “o inestimável património cultural de Roma”, afirmando “que a riqueza e o valor dum povo se radicam precisamente no facto de saber articular todos estes níveis numa sadia convivência”. Isto implica a necessária renúncia aos reducionismos e a todas as tentativas uniformizadoras, que, “longe de gerar valor, condenam os nossos povos a uma pobreza cruel: a da exclusão”. Ora, segundo o Bispo de Roma, “a exclusão, longe de trazer grandeza, riqueza e beleza, provoca vilania, penúria e brutalidade”.
Tendo “a identidade europeia” sido e devendo continuar a ser “uma identidade dinâmica e multicultural”, há de ter-se na devida consideração que “as raízes dos nossos povos, as raízes da Europa” se foram “consolidando no decurso da sua história, aprendendo a integrar em sínteses sempre novas as culturas mais diversas e sem aparente ligação entre elas”.
Por consequência, a atividade política tem entre mãos este trabalho fundamental e inadiável”:
“Somos convidados a promover uma integração que encontra na solidariedade a forma de fazer as coisas, a forma de construir a história; uma solidariedade que nunca se pode confundir com a esmola, mas que há de ser entendida como geração de oportunidades para que todos os habitantes das nossas cidades – e de muitas outras cidades – possam desenvolver a sua vida com dignidade. O tempo tem-nos ensinado que não é suficiente a mera inserção geográfica das pessoas; o desafio é uma vigorosa integração cultural.”.
Por isso, é imperioso “vencer a tentação de refugiar-se em paradigmas unilaterais e aventurar-se em colonizações ideológicas” e redescobrir “a amplitude da alma europeia, nascida do encontro de civilizações e povos, mais vasta do que as fronteiras atuais da União e chamada a tornar-se modelo de novas sínteses e de diálogo”, no pressuposto de Konrad Adenauer:
“O futuro do Ocidente não está ameaçado tanto pela tensão política, como sobretudo pelo perigo da massificação, da uniformidade do pensamento e do sentimento; em resumo, por todo o sistema de vida, pela fuga da responsabilidade, tendo como única preocupação o próprio eu”.
Relativamente à capacidade de dialogar, diz o Papa que “somos convidados a promover uma cultura do diálogo”, como forma de encontro, “procurando por todos os meios abrir instâncias para o tornar possível e permitir-nos reconstruir o tecido social”. Porém, esta “cultura do diálogo”, que é condição de paz e de justiça, “implica uma autêntica aprendizagem, uma ascese que nos ajude a reconhecer o outro como um interlocutor válido, que nos permita ver o forasteiro, o migrante, a pessoa que pertence a outra cultura como sujeito a ser ouvido, considerado e apreciado”.
A cultura do diálogo, que, no dizer de Francisco, “deveria constar em todos os currículos escolares como eixo transversal das disciplinas, ajudará a incutir nas gerações jovens uma forma de resolver os conflitos diferente daquela a que os temos habituado”. Urge – prossegue o Papa – “realizar alianças já não apenas militares ou económicas, mas culturais, educacionais, filosóficas, religiosas; alianças que ponham em evidência que frequentemente, por trás de muitos conflitos, está em jogo o poder de grupos económicos; alianças, capazes de defender o povo de ser manipulado para fins impróprios”. É preciso armar o povo “com a cultura do diálogo e do encontro” – defende.
No tocante à capacidade de gerar, Francisco sustenta que “ninguém se pode limitar a ser espectador, nem mero observador, mas que “todos, desde o menor ao maior, são parte ativa na construção duma sociedade integrada e reconciliada”. Neste contexto, têm papel preponderante os jovens, que “não são apenas o futuro dos nossos povos, mas o presente”, pois, “são aqueles que já hoje estão a forjar, com os seus sonhos, com a sua vida, o espírito europeu”.
Porém, este enunciado postula algumas interrogações pertinentes que Francisco formula:
“Como podemos fazer os nossos jovens participantes desta construção, quando os privamos de emprego, de trabalhos dignos que lhes permitam desenvolver-se com as suas mãos, a sua inteligência e as suas energias? Como pretendemos reconhecer-lhes o valor de protagonistas, quando não param de crescer as taxas de desemprego e subemprego de milhões de jovens europeus? Como evitar a perda dos nossos jovens, que acabam por sair para outros lugares à procura de ideais e sentido de pertença, porque aqui, na sua terra, não lhes sabemos oferecer oportunidades nem valores?”.
A resposta a estas interrogações requer, em nome da justiça distributiva, “a busca de novos modelos económicos, mais inclusivos e equitativos, orientados não para o serviço de poucos, mas para benefício do povo e da sociedade” – o que postula “a passagem duma economia líquida a uma economia social”, ou seja, “passar duma economia que tenha em vista o rendimento e o lucro com base na especulação e empréstimo com juros para uma economia social que invista nas pessoas criando postos de trabalho e qualificação”. E, em nome desta economia social, que proscreve em definitivo a corrupção, Francisco sentencia: 
“Se queremos um futuro de paz para as nossas sociedades, só o poderemos alcançar apostando na verdadeira inclusão: a inclusão que dá o trabalho digno, livre, criativo, participativo e solidário. Esta passagem (duma economia líquida a uma economia social) não só criará novas perspetivas e concretas oportunidades de integração e inclusão, mas dar-nos-á novamente a capacidade de sonhar aquele humanismo, cujo berço e fonte é a Europa.”.
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Por fim, vem a apresentação do contributo da Igreja “para o renascimento duma Europa cansada, mas ainda rica de energias e potencialidades” e do movimento ecuménico, fator de unidade.
A tarefa da Igreja decorre da sua missão. E anunciar o Evangelho traduz-se “sobretudo em sair ao encontro das feridas do homem, levando a presença forte e simples de Jesus, a sua misericórdia consoladora e encorajante”. Deus só pode realizar o seu desejo de habitar entre nós “através de homens e mulheres que, como os grandes evangelizadores do Continente, sejam tocados por Ele e vivam o Evangelho sem outras ambições”. Isto é, “só uma Igreja rica de testemunhas poderá de novo dar a água pura do Evangelho às raízes da Europa”.
E outro verdadeiro fator de revitalização da Europa pode advir do “caminho dos cristãos rumo à plena unidade” de doutrina e projeto como “um grande sinal dos tempos, ditado pela exigência de responder urgentemente ao apelo do Senhor para que todos sejam um só” (Jo 17,21).
E o Papa argentino, como filho confesso da Europa em que revê “as suas raízes de vida e de fé”, sonha um novo humanismo europeu” e uma Europa:
Jovem, capaz de ainda ser mãe, “que tenha vida, porque respeita a vida e dá esperanças de vida”;
“Que cuida da criança, socorre como um irmão o pobre e quem chega à procura de acolhimento porque já não tem nada e pede abrigo”;
Que escuta e valoriza os doentes e idosos, para não serem reduzidos ao descarte porque improdutivos;
Onde ser migrante não seja delito, mas apelo a maior compromisso com a dignidade de todo o ser humano;
“Onde os jovens respirem o ar puro da honestidade, amem a beleza da cultura e duma vida simples, não poluída pelas solicitações sem fim do consumismo”;
“Onde casar e ter filhos seja uma responsabilidade e uma alegria grande, não um problema criado pela falta de trabalho suficientemente estável”;
“Das famílias, com políticas realmente eficazes, centradas mais nos rostos do que nos números, mais no nascimento dos filhos do que no aumento dos bens;
“Que promova e tutele os direitos de cada um, sem esquecer os deveres para com todos”;
“De que não se possa dizer que o seu compromisso com os direitos humanos constituiu a sua última utopia”.

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Um bom e apelante discurso programático de regeneração da Europa. Assim o aceitem os decisores e os eurocidadãos, abdicando de todas as formas de injustiça, egoísmo, privilégio, exploração e descarte; e promovendo o diálogo, a paz, a integração, a justiça e a solidariedade.

2016.05.06 – Louro de Carvalho

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