Na sequência do anúncio, feito pelo respetivo Comité Executivo, a
23 de dezembro de 2015, em Aquisgrano, Alemanha, de que o vencedor de 2016 do Prémio Carlos Magno seria o Papa
Francisco, procedeu-se hoje, dia 6 de maio, à cerimónia da entrega do galardão
ao Pontífice no Vaticano, na Sala Régia do Palácio Apostólico, pelas 12 horas (hora de Roma). A distinção foi entregue pelo
presidente municipal de Aachen (Alemanha), Marcel Philipp, e por Jurgen Linden, da Fundação Carlos Magno, na
presença dos presidentes da Comissão, do Parlamento e do Conselho Europeus,
respetivamente, Jean-Claude Juncker, Martin Schulz e Donald Tusk.
Antes, o Papa concedeu audiências privadas a Juncker, Schulz
e Tusk, bem como à chanceler alemã Angela Merkel, presentes no Vaticano para a
entrega do prémio, conferido anualmente a personalidade que se destaque no
trabalho realizado em prol da integração e da união na Europa.
Na verdade o Prémio
Carlos Magno foi estabelecido em 1949, após a II Guerra Mundial. E esta
distinção, considerada como uma das mais importantes na Europa, tinha sido
outorgada ao Papa São João Paulo II, em 2004. Entre os galardoados contam-se
também o ex-presidente francês, François Mitterand e o ex-chanceler
alemão, Helmut Koll, ex aequo em
1988, ou o ex-presidente dos Estados Unidos da América, Bill Clinton,
distinguido no ano 2000.
Em relação ao Papa argentino, o Presidente do Parlamento
Europeu declarou à Rádio Vaticano que Francisco, filho de imigrantes italianos
na Argentina, conhecera um “mundo diferente” dos europeus. Por isso, “abre-nos
os olhos e faz-nos refletir sobre o quanto devemos estar gratos e reconhecidos
por este mundo maravilhoso que é a Europa, na qual nos é consentido viver”.
Evocando o discurso papal no Parlamento Europeu, a 25 de novembro
de 2014, o júri elogiou a mensagem de “paz e compreensão” trazida por Bergoglio
e a postura de compaixão, tolerância, solidariedade e integridade que caraterizam
o seu pontificado. Além disso, encareceu a figura de Francisco como “voz da
consciência” e “autoridade moral extraordinária” para a Europa.
A Santa Sé, por sua vez, explicara que o Papa aceitou a
distinção a título “totalmente excecional”, como gesto simbólico para que “a
Europa trabalhe pela paz”.
***
Hoje, no seu discurso, depois de agradecer as palavras que lhe foram
dirigidas, Francisco foi claro em reiterar a sua “intenção de dedicar à Europa este prestigioso Prémio”, aduzindo
que “não estamos a comemorar qualquer gesto, mas queremos aproveitar o ensejo
para, juntos, almejarmos um novo e corajoso impulso a este amado Continente”.
Ou seja, aproveitou o momento para o encorajamento a que a Europa seja a Europa
que deveras anseia ser.
Depois,
destacou como pertença à alma da Europa “a criatividade, o engenho, a capacidade de se levantar e sair dos
seus limites”. Assim, após “anos de trágicos confrontos” cujo ápice foi a “guerra
mais terrível de que se tem memória”, surgiu um movimento inédito: a construção
duma nova Europa. Com efeito, “as cinzas dos escombros” não extinguiram a
esperança e a busca do outro que ardiam no coração dos Pais fundadores do
projeto europeu”. Os Estados uniram-se, “não por imposição, mas por livre
escolha do bem comum, renunciando para sempre a guerrear-se”. Porém,
depois de esta família de povos se
ter “louvavelmente ampliado”, sente-se agora que “aquela
atmosfera de novidade e aquele desejo ardente de construir a unidade aparecem
sempre mais amortecidos”. Não obstante, o Pontífice mostra-se convicto de que “a
resignação e o cansaço não pertencem à alma da Europa e que as próprias “dificuldades
podem revelar-se fortemente promotoras de unidade”.
E, tendo
recordado algumas das interrogações que lançara sobre o devir europeu no
discurso que fez ao seu Parlamento, não deixou agora de também interrogar a
Europa:
Que te sucedeu, Europa humanista, paladina dos direitos humanos, da
democracia e da liberdade? Que te sucedeu, Europa terra de poetas, filósofos,
artistas, músicos, escritores? Que te sucedeu, Europa mãe de povos e nações,
mãe de grandes homens e mulheres que souberam defender e dar a vida pela
dignidade dos seus irmãos?”
Evocando o
escritor Elie Wiesel, que sustentava a necessidade da realização duma transfusão
de memória”, assegurou que a memória não só nos permitirá “evitar cometer os
mesmos erros do passado”, mas também nos dará “acesso às conquistas que ajudaram
os nossos povos a ultrapassar com êxito as encruzilhadas históricas que iam
encontrando”. Assim, segundo o Pontífice, “a transfusão de memória liberta-nos
da tendência atual”, tentadora e fascinante, “de forjar à pressa, sobre areias
movediças, resultados imediatos” passíveis de “produzir ganhos políticos
fáceis, rápidos e efémeros, mas que não constroem a plenitude humana”.
Nestes
termos, Francisco propõe que “precisamente agora, neste nosso mundo dilacerado
e ferido”, se volte “àquela solidariedade de facto, à mesma generosidade
concreta que se seguiu à II Guerra Mundial”. Para tanto apoia-se nas
afirmações de Robert Schuman:
“A Europa não se fará duma só vez, nem através duma construção de conjunto;
far-se-á através de realizações concretas que criem, antes de tudo, uma
solidariedade de facto. […] A paz mundial não poderá ser
salvaguardada sem esforços criativos à altura dos perigos que a ameaçam.”.
Sublinhando
que os projetos dos Pais fundadores da Europa “não estão superados”, mas nos
inspiram “hoje, mais do que nunca, a construir pontes e a derrubar muros”,
preconiza que “nós todos, igualmente animados pela preocupação do bem comum das
nossas pátrias europeias, da nossa Pátria Europa, recomecemos, sem medo, um trabalho construtivo que requer todos os
nossos esforços de paciente e longa cooperação”.
***
Com base na
mencionada “transfusão de memória”, ousa enunciar as três capacidades que, em
seu entender, concretizarão, “à luz um novo humanismo”, o premente “desafio de atualizar a ideia de Europa”: a capacidade de integrar, a capacidade de dialogar e a capacidade de gerar.
No atinente à capacidade de integrar, o Papa chama a atenção
para A ideia de Europa, de Erich
Przywara, que “desafia a pensar a cidade como um lugar de convivência entre
vários órgãos e níveis”. E apresenta como exemplo de ilustração desta ideia “o
inestimável património cultural de Roma”, afirmando “que a riqueza e o valor
dum povo se radicam precisamente no facto de saber articular todos estes níveis
numa sadia convivência”. Isto implica a necessária renúncia aos reducionismos e
a todas as tentativas uniformizadoras, que, “longe de gerar valor, condenam os
nossos povos a uma pobreza cruel: a da exclusão”. Ora, segundo o Bispo de Roma,
“a exclusão, longe de trazer grandeza, riqueza e beleza, provoca vilania,
penúria e brutalidade”.
Tendo “a
identidade europeia” sido e devendo continuar a ser “uma identidade dinâmica e
multicultural”, há de ter-se na devida consideração que “as raízes dos nossos
povos, as raízes da Europa” se foram “consolidando no decurso da sua história,
aprendendo a integrar em sínteses sempre novas as culturas mais diversas e sem
aparente ligação entre elas”.
Por
consequência, a atividade política tem entre mãos este trabalho fundamental e
inadiável”:
“Somos convidados a promover uma integração que encontra na solidariedade a
forma de fazer as coisas, a forma de construir a história; uma solidariedade
que nunca se pode confundir com a esmola, mas que há de ser entendida como
geração de oportunidades para que todos os habitantes das nossas cidades – e de
muitas outras cidades – possam desenvolver a sua vida com dignidade. O tempo
tem-nos ensinado que não é suficiente a mera inserção geográfica das pessoas; o
desafio é uma vigorosa integração cultural.”.
Por isso, é
imperioso “vencer a tentação de refugiar-se em paradigmas unilaterais e aventurar-se em colonizações ideológicas” e redescobrir “a amplitude da alma europeia, nascida do encontro de civilizações e
povos, mais vasta do que as fronteiras atuais da União e chamada a tornar-se
modelo de novas sínteses e de diálogo”, no pressuposto de Konrad Adenauer:
“O futuro do Ocidente não está ameaçado tanto pela tensão política, como
sobretudo pelo perigo da massificação, da uniformidade do pensamento e do
sentimento; em resumo, por todo o sistema de vida, pela fuga da
responsabilidade, tendo como única preocupação o próprio eu”.
Relativamente à capacidade de dialogar, diz o Papa que “somos convidados a promover uma
cultura do diálogo”, como forma de
encontro, “procurando por todos os meios abrir instâncias para o tornar
possível e permitir-nos reconstruir o tecido social”. Porém, esta “cultura do
diálogo”, que é condição de paz e de justiça, “implica uma autêntica
aprendizagem, uma ascese que nos ajude a reconhecer o outro como um
interlocutor válido, que nos permita ver o forasteiro, o migrante, a pessoa que
pertence a outra cultura como sujeito a ser ouvido, considerado e apreciado”.
A cultura do
diálogo, que, no dizer de Francisco, “deveria constar em todos os currículos
escolares como eixo transversal das disciplinas, ajudará a incutir nas gerações
jovens uma forma de resolver os conflitos diferente daquela a que os temos
habituado”. Urge – prossegue o Papa – “realizar alianças já não apenas
militares ou económicas, mas culturais, educacionais, filosóficas, religiosas;
alianças que ponham em evidência que frequentemente, por trás de muitos
conflitos, está em jogo o poder de grupos económicos; alianças, capazes de
defender o povo de ser manipulado para fins impróprios”. É preciso armar o povo
“com a cultura do diálogo e do encontro” – defende.
No tocante à capacidade de gerar, Francisco sustenta que “ninguém se pode limitar a ser espectador, nem mero observador, mas que “todos, desde o menor ao maior, são parte ativa na
construção duma sociedade integrada e reconciliada”. Neste contexto, têm papel
preponderante os jovens, que “não são apenas o futuro dos nossos povos, mas o
presente”, pois, “são aqueles que já hoje estão a forjar, com os seus sonhos,
com a sua vida, o espírito europeu”.
Porém, este
enunciado postula algumas interrogações pertinentes que Francisco formula:
“Como podemos fazer os nossos jovens participantes desta construção, quando
os privamos de emprego, de trabalhos dignos que lhes permitam desenvolver-se
com as suas mãos, a sua inteligência e as suas energias? Como pretendemos
reconhecer-lhes o valor de protagonistas, quando não param de crescer as taxas
de desemprego e subemprego de milhões de jovens europeus? Como evitar a perda
dos nossos jovens, que acabam por sair para outros lugares à procura de ideais
e sentido de pertença, porque aqui, na sua terra, não lhes sabemos oferecer
oportunidades nem valores?”.
A resposta a
estas interrogações requer, em nome da justiça distributiva, “a busca de novos
modelos económicos, mais inclusivos e equitativos, orientados não para o
serviço de poucos, mas para benefício do povo e da sociedade” – o que postula “a
passagem duma economia líquida a uma economia social”, ou
seja, “passar duma economia que tenha em vista o rendimento e o lucro com
base na especulação e empréstimo com juros para uma economia social que invista
nas pessoas criando postos de trabalho e qualificação”. E, em nome desta
economia social, que proscreve em definitivo a corrupção, Francisco
sentencia:
“Se queremos um futuro de paz para as nossas sociedades, só o poderemos
alcançar apostando na verdadeira inclusão: a
inclusão que dá o trabalho digno, livre, criativo, participativo e solidário. Esta passagem (duma economia líquida a uma economia
social) não só criará novas perspetivas e concretas oportunidades de integração
e inclusão, mas dar-nos-á novamente a capacidade de sonhar aquele humanismo,
cujo berço e fonte é a Europa.”.
***
Por fim, vem
a apresentação do contributo da Igreja “para o renascimento duma Europa cansada,
mas ainda rica de energias e potencialidades” e do movimento ecuménico, fator de
unidade.
A tarefa da
Igreja decorre da sua missão. E anunciar o Evangelho traduz-se “sobretudo em
sair ao encontro das feridas do homem, levando a presença forte e simples de
Jesus, a sua misericórdia consoladora e encorajante”. Deus só pode realizar o
seu desejo de habitar entre nós “através de homens e mulheres que, como os
grandes evangelizadores do Continente, sejam tocados por Ele e vivam o
Evangelho sem outras ambições”. Isto é, “só uma Igreja rica de testemunhas
poderá de novo dar a água pura do Evangelho às raízes da Europa”.
E outro verdadeiro
fator de revitalização da Europa pode advir do “caminho dos cristãos rumo à
plena unidade” de doutrina e projeto como “um grande sinal dos tempos, ditado
pela exigência de responder urgentemente ao apelo do Senhor para que todos sejam um só” (Jo 17,21).
E o Papa
argentino, como filho confesso da Europa em que revê “as suas raízes de vida e
de fé”, sonha um novo humanismo europeu” e uma Europa:
Jovem, capaz de ainda ser mãe, “que
tenha vida, porque respeita a vida e dá esperanças de vida”;
“Que cuida da criança, socorre como um
irmão o pobre e quem chega à procura de acolhimento porque já não tem nada e
pede abrigo”;
Que escuta e valoriza os doentes e
idosos, para não serem reduzidos ao descarte porque improdutivos;
Onde ser migrante não seja delito,
mas apelo a maior compromisso com a dignidade de todo o ser humano;
“Onde os jovens respirem o ar puro
da honestidade, amem a beleza da cultura e duma vida simples, não poluída pelas
solicitações sem fim do consumismo”;
“Onde casar e ter filhos seja uma
responsabilidade e uma alegria grande, não um problema criado pela falta de trabalho
suficientemente estável”;
“Das famílias, com políticas
realmente eficazes, centradas mais nos rostos do que nos números, mais no nascimento
dos filhos do que no aumento dos bens;
“Que promova e tutele os direitos de
cada um, sem esquecer os deveres para com todos”;
“De que não se possa dizer que o seu
compromisso com os direitos humanos constituiu a sua última utopia”.
***
Um bom e
apelante discurso programático de regeneração da Europa. Assim o aceitem os
decisores e os eurocidadãos, abdicando de todas as formas de injustiça,
egoísmo, privilégio, exploração e descarte; e promovendo o diálogo, a paz, a
integração, a justiça e a solidariedade.
2016.05.06 – Louro de Carvalho
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