domingo, 21 de fevereiro de 2021

As tentações de Jesus em chave de leitura da condição humana

 

O curtíssimo trecho do Evangelho de Marcos (Mc 1,12-15) assumido para proclamação e meditação no 1.º domingo da Quaresma no Ano B consta de dois minúsculos fragmentos narrativos: um centrado no deserto, para onde o Espírito Santo impeliu Jesus; e outro, na Galileia para onde Jesus partiu e começou a pregar a Boa Nova.

Seria absurdo o Espírito levar Jesus à tentação. Levou-o ao deserto, porque o deserto era o lugar privilegiado do encontro com Deus, pois ali o povo de Israel experimentou o amor e a solicitude do Senhor, que ali lhe propôs uma Aliança bilateral. Ao mesmo tempo, é o lugar onde o tentador se aproxima do homem fragilizado para ensaiar sedutoramente o seu aprisionamento. Porém, se o povo escolhido cedeu à tentação, Jesus, inserido no deserto, sujeito à condição humana permeável à tentação, soube-lhe resistir: não pecou. Enfim, sujeito à condição frágil e pecadora do homem, não caiu no pecado, garantindo que o pecado seria erradicado do mundo.

O deserto para onde o Espírito impeliu o recém-batizado por João Batista, Aquele que acabou de ser proclamado o Filho dileto do Pai, é o lugar do encontro com Deus e do discernimento do seu desígnio e o lugar de purificação e prova, em confronto com a tentação de abandonar Deus e de seguir outros rumos, mas onde se pode criar a resiliência e sair da crise como fez Jesus.

Dom António Couto adverte que o deserto figurado no texto não se ajusta à noção dicionarista ou enciclopédica. Não é lugar geográfico, mas teológico, pois apresenta-se com muita água (Jo 3,23), cumprindo Isaías 35,6-7, 41,18 e 43,19-20, com árvores (canas) (cf Mt 11,7; Lc 7,24)relva verde (Mc 6,39), cumprindo Isaías 35,1.7 e 41,19. É lugar provisório e preambular, onde se está a céu aberto com Deus, onde troará a voz do seu mensageiro (Is 40,3), de João Batista (Mt 3,1-3), do Messias segundo uma tradição judaica recolhida em Mateus 24,26. O deserto é o lugar onde se pode começar a ver a obra nova de Deus, um caminho (Is 43,19). E, como lugar provisório, onde se está de passagem, e não definitivo para se habitar como pensavam os Essénios, aponta para o definitivo, a Terra Prometida, onde Deus fará habitar e descansar o povo. O deserto é, pois, metáfora da nossa vida, onde sabemos que estamos de passagem. E, não tendo pontos de referência nem marcos de sinalização, só podemos caminhar se tivermos um bom guia. E esse guia é o Filho de Deus que se deixa impelir pelo Espírito, querendo que nós assim procedamos deixando-nos conduzir pelo Espírito, que nos ensinará, guiará e fortalecerá.  

Jesus ficou ali “40 dias”. O número 40, recorrente no AT (Antigo Testamento), evoca a longa caminhada de Israel pelo deserto (40 anos), da terra da escravidão para a da liberdade, como pode referir-se à vida toda (a esperança média de vida, na época, rondava os 40 anos). Sendo assim, a estada de Jesus no deserto assume a caminhada do seu povo rumo à liberdade, que dá sentido à vida, e prenuncia que a vida “terrena” do Messias estará por um fio (faltam 3 anos).

Nesse tempo, Jesus foi tentado por Satanás. Satanás, o adversário que, no contexto do julgamento, apresentava a acusação (cf Sl 109,6), passou a ser a personagem que, integrando a corte celeste, acusava o homem diante de Deus (cf Jb 1,6-12; 2,1-6). Porem, na época de Jesus, era considerado um espírito mau, inimigo do homem, que procurava destruir o homem e frustrar o plano de Deus. Assim, tenta levar Jesus a esquecer o projeto divino e fazer escolhas mundanas, como milagres caprichosos e espetaculares, acumulação de riquezas e detenção de poder.

Com efeito, no deserto se refugiavam e preparavam os agitadores e os rebeldes com pretensões messiânicas. A convivência com as feras, registada por Marcos tanto pode evocar o tempo em que Adão vivia em paz completa com todos os animais, como pode sugerir a tentação da luta pela delimitação de espaço próprio com recurso à violência. Não obstante, ao invés de Adão, que cedeu à tentação usando mal a liberdade com que Deus o exornou, e do povo de Israel, que se revoltou clamando pela carne das panelas e cebolas podres que deixou no Egito e caiu na idolatria, o Nazareno fez da liberdade – provada e purificada – instrumento de resposta negativa à tentação e de adesão incondicional e definitiva ao desígnio do Pai. Por isso, os anjos O serviam, aliás como sevem na corte celestial e como serviam Adão no paraíso terreal. Isto significará que Jesus restabelecerá a harmonia primeva (Is 2,4; 11,6-9) que o primeiro homem rompeu com o pecado em que fez vingar a autossuficiência humana para desafiar Deus.

Com Jesus, chegou o tempo messiânico de paz sem fim, chegou o tempo de o mundo regressar a essa harmonia que era o plano inicial de Deus.

Marcos sugere que, ao longo de toda a sua existência (“40 dias”), Jesus se confrontou com dois caminhos de vida: viver na fidelidade ao projeto do Pai, fazendo da sua vida uma entrega de amor; ou frustrar o plano salvífico do Pai, enveredando por um caminho messiânico de poder, de violência, de autoridade, de despotismo, ao jeito dos grandes do mundo. E Jesus escolheu viver na obediência o Pai, surgindo desta opção um mundo que reproduz o plano de Deus.

No segundo fragmento narrativo, Marcos transporta-nos para a Galileia, onde Jesus aparece a concretizar o plano salvador do Pai que decidira concretizar.

Começa por anunciar que “chegou o tempo”, o “tempo” do “Reino de Deus”, expressão que nos leva a um dos grandes sonhos do Povo de Deus.

Dom António Couto, chama a atenção para a circunstância de isto suceder depois da entrega do Batista à prisão: “Depois de João ter sido entregue (paradothênai: infinitivo aoristo passivo de paradídômi) (Mc 1,14). Trata-se duma prolepse que já nos faz divisar o que vai suceder a Jesus, acerca de quem o verbo será usado 13 vezes.

Por outro lado, salienta a vinculação de Jesus ao anúncio, com “o uso do verbo anunciar (kêrýssô) para traduzir o afazer primeiro de Jesus” (Mc 1,14), o que sucedeu com o precursor e sucederá com os futuros arautos da Boa Nova.

Os profetas alimentavam a esperança do Povo anunciando a chegada dum tempo futuro em que o Senhor voltaria a reinar sobre Israel restabelecendo a situação ideal da época de David. Tal missão, em ótica profética, será confiada a um “ungido” (em hebraico, “messias”; em grego, “cristo”) que Deus enviaria ao Povo para estabelecer um tempo de paz, justiça, abundância, felicidade sem fim (vd Is 25,6-9) – isto é, o tempo do “reinado de Deus”.

Esta esperança está viva no coração de Israel quando Jesus surge a dizer: “cumpriu-se o tempo e está próximo o reino de Deus”. E Ele começa a construção do Reino pedindo aos conterrâneos a conversão (“metanoia”) e o acolhimento da Boa Nova (“evangelho”).

Na verdade, o primeiro dizer de Jesus vem articulado em duas declarações indissociáveis: “Foi cumprido (peplêrotai: perfeito passivo de plêróô) o tempo (ho kairós),/ e fez-se próximo (êggiken: perfeito de eggízô) o Reino de Deus (hê basileía toû theoû)(Mc 1,15). O acento cai sobre os dois perfeitos que abrem as declarações de Jesus, e revelam que o Evangelho é, antes de mais, o anúncio da iniciativa divina, Deus em ação, que abre ao homem novas perspetivas. O perfeito passivo (peplêrotai), que carateriza o kairós, mostra que Jesus não se refere a qualquer segmento de tempo cronológico, mas ao específico do cumprimento, posto expressamente sob a intervenção definitiva de Deus, pois só Deus pode agir sobre o tempo cronológico, tornando-o kairós, tempo de alegria e esperança. O anúncio precede o apelo: Jesus não começa com normas e exigências, mas assinala quanto Deus já fez e está a fazer em nosso favor, por sua gratuita iniciativa. E, como normal consequência, surgem na boca de Jesus dois imperativos: “Convertei-vos” (matanoeîte) e “acreditai (pisteúete) no Evangelho” (Mc 1,15), que traduzem o que incumbe aos homens fazer.

“Converter-se” significa transformar a mentalidade, atitudes e comportamentos, reformular os valores que orientam a vida; é reequacionar a vida, de modo que Deus passe a estar no centro da existência do homem e ocupe sempre o primeiro lugar, não sendo possível que esse mundo novo se torne realidade sem que o homem renuncie ao egoísmo e autossuficiência e passe a escutar, de novo, Deus, que deixa as suas marcas e anseios no mundo dos homens.

“Crer” não se cinge a acatar um conjunto de verdades intelectuais; é, sobretudo, aderir à pessoa de Jesus, escutar a sua Palavra e acolhê-la no coração, fazendo dela o guia da própria vida.
“Conversão” e “adesão ao projeto de Jesus” são duas faces de mesma moeda: a construção do homem novo, com nova mentalidade, com novos valores; e postura vital inteiramente nova.

E as tentações e provações da fé, condição humana a que Jesus se sujeitou para nos ensinar a ultrapassá-las, constituem o teste quotidiano à nossa capacidade de resiliência e, purificando-nos, podem constituir a vitória da liberdade sobre a libertinagem.  

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A Nova Aliança do Reino de Deus que Jesus anuncia é prefigurada de muitos modos no AT. E o texto que esta dominga tem como 1.ª leitura (Gn 9,8-15) é um segmento do pós-dilúvio.

No quadro das tradições sobre as origens do mundo e dos homens que preenchem os 11 primeiros capítulos do Livro do Génesis, episódios carregados de lenda mesopotâmica que o hagiógrafo utiliza para dizer que na origem de tudo e na condução de tudo está a voz e a mão de Deus, emerge o episódio do dilúvio (Gn 6,1-9,17), um cataclismo de águas, que teria eliminado toda a humanidade, exceto Noé e a sua família.

O mais provável é que o dilúvio descrito no Génesis (quase copiado de textos mesopotâmicos) se refira a uma das inúmeras inundações do Tigre e do Eufrates. Não se tratou de um dilúvio universal, no sentido da universalidade como se entende hoje, mas em “toda a terra”, a que o olhar do homem mesopotâmico abrangia (mesopotâmia = entre rios: Tigre e Eufrates). Porém, com o tempo, a fantasia popular teria atribuído tais inundações a um “castigo universal” que atingiu o conjunto da humanidade. O autor bíblico, conhecedor dessas lendas antigas, usa-as como pano de fundo para fazer catequese e transmitir uma mensagem religiosa.

O catequista javista e o sacerdotal querem dizer ao Povo que o Senhor não fica de braços cruzados quando os homens se lançam por vias de corrupção e de pecado. E, porque Deus não castiga cegamente bons e maus, propõem a salvação do justo Noé e da sua família.

O trecho desta liturgia situa-nos na fase subsequente ao dilúvio, quando já havia deixado de chover e quando Noé e a família tinham desembarcado. Os sobreviventes erigiram um altar e ofereceram holocaustos sobre o altar. E Deus comprometeu-Se a não mais “castigar os seres vivos” de forma tão radical (cf Gn 8,13-22), abençoou Noé e a sua família (cf Gn 9,1-7) e fez uma Aliança com eles. O texto apresenta-nos os termos de uma Aliança oferecida por Deus à nova humanidade, representada por Noé e sua família, presente e futura, e a todos os seres criados, representados pelos animais que saíram da Arca. Nela, Deus compromete-Se a depor o seu “arco de guerra” e a garantir a perenidade da ordem cósmica. É uma Aliança diferente da Aliança com Abraão, da Aliança com Israel no Sinai e de qualquer outra Aliança com os homens. Nas outras Alianças, a pessoa ou Povo eram chamados a uma relação de comunhão com Deus e aceitavam ou não esse desafio; se o indivíduo ou o Povo em causa não aceitassem, não haveria relação e, portanto, não haveria Aliança. Aqui, a Aliança não implica nenhuma adesão da parte do homem, nem implica qualquer promessa. É um puro e incondicional dom de Deus, um fruto do seu amor e da sua misericórdia.

O sinal desta Aliança é o arco-íris. Em hebraico, a palavra “qeshet” designa o arco-íris e o arco de guerra. Evocando tal duplicidade, o teólogo sacerdotal sugere que o Senhor pendurou na parede do horizonte o seu arco de guerra para mostrar ao homem a sua intenção pacífica. O arco-íris – arco-da-velha (aliança) – sinal belo que toca céu e terra, é o arco do Senhor, pelo qual a bondade de Deus, abraçando o mundo e os homens, oferece a paz a toda a criação.

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O texto da 1.ª Carta de Pedro tomado como 2.ª leitura (1Pe 3,18-22) releva que Jesus Cristo veio ao mundo e partilhou as nossas dores e limitações para concretizar o desígnio de salvação do Pai em prol dos homens. Aquele que é justo e bom aceitou morrer para levar todos os homens à vida verdadeira. A sua morte não foi um fracasso, pois a sua vida não terminou no sepulcro, mas, vivificado pelo Espírito, alcançou de novo a vida e a glória (1Pe 3,18) e “foi pregar aos espíritos que estavam na prisão da morte e tinham sido rebeldes” (1Pe 3,19-20). A afirmação refere-se provavelmente à verdade proclamada no credo cristão de que o Ressuscitado desceu “à mansão dos mortos” para libertar todos aqueles que eram prisioneiros da morte. A morte e a ressurreição de Cristo têm uma dimensão salvadora que atinge toda a humanidade, mesmo a humanidade pecadora que conheceu o dilúvio, no tempo de Noé, que anteviu a redenção.

No dilúvio, o pecado foi afogado e da água ressurgiu a nova humanidade. A água do dilúvio é, para os crentes, figura do Batismo, pelo qual os crentes aderem a Cristo e à salvação que Ele veio oferecer. Na água do Batismo, os crentes nascem para a vida do bem, da justiça e da verdade (1Pe 3,21). Portanto, se Cristo propiciou, mesmo aos injustos, a salvação, também os cristãos devem dar a vida e fazer o bem, mesmo quando são perseguidos e sofrem. Comprometidos com Cristo pelo Batismo, nasceram para a vida nova, que devem testemunhar diante de todos, mesmo diante dos maus e dos perseguidores.

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A Quaresma prepara especialmente para a Ressur­reição do Senhor. Porém, todos os tempos e todos os domingos do Ano Litúrgico (portanto, também a Quaresma e seus domingos) – estão depois e por causa da Ressurreição. E à luz do Ressusci­tado com o Espírito Santo (Batismo consumado: Lc 12,49‑50) que a Igreja – e cada um de nós – pode celebrar a fé, proceder à correta leitura das Escri­turas e encetar a caminhada quaresmal. Assim, todos os batizados são chamados a refazer com Cristo bati­zado no Espírito o seu programa batismal, cujo conteúdo e itinerário se conhece: do Batismo no Jordão, pela Trans­figuração/Confirmação no Tabor, até à Cruz e à Glória da Ressurreição (Batismo consumado), escutando e anunciando sempre e cada vez mais intensamente o Evangelho e fazendo sempre e cada vez mais intensamente as obras do Reino (At 10,37-43).

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Com efeito, se as tentações fazem parte da condição humana, também pertence à condição humana a capacidade de regeneração. Cristo, sem cair em tentação, ensinou a sair dela. Submeteu-se ao Batismo de João e ofereceu-nos o seu Batismo de Cruz e Ressurreição.

2021.02.21 – Louro de Carvalho

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