As passagens do livro do Levítico (Lv 13,1-2.44-46) que encabeçam a Liturgia da Palavra da celebração deste 6.º domingo do
Tempo Comum no Ano B bem podem denominar-se de páginas de exclusão – de pessoas
marcadas pela doença resultante de pecado próprio ou de seus ascendentes – por
motivos sanitários em prol do bem comum.
O Levítico, apresentado como um conjunto de discursos do
Senhor a Moisés para explicar o que o Povo devia fazer para viver em comunhão
com Deus, no âmbito da Aliança, trata, sobretudo, de questões cultuais (incumbência dos sacerdotes, membros
da tribo de Levi), mas
com implicações diretas na vida civil. São leis, preceitos e ritos de épocas e
proveniências diversas, reelaborados pelos teólogos da escola sacerdotal para ensinar
os israelitas a viver como Povo de Deus e a responder adequadamente ao amor e
solicitude do Deus da Aliança, instilando na consciência dos fiéis a
ideia-força de que a comunhão com o Deus vivo é a verdadeira vocação do homem.
As passagens em referência inserem-se na terceira parte do
Livro (caps. 11-16), a “lei da pureza”, em que se tipificam os vários géneros de impureza impeditivos
da aproximação do santuário e os ritos de purificação do homem. Tudo isto
baseado em noções tabuístas de pureza e impureza que induziram a formulação de
regras que protegem o homem da angústia e do risco do desconhecido, sendo que
tudo o que seja excecional e misterioso destrói a harmonia e o equilíbrio e
pode libertar forças incontroláveis que o homem não domina.
Assim, interditava-se aos israelitas o contacto com
determinadas realidades, como o sangue, os cadáveres, certos tipos de
alimentos, etc. Ora, se alguém contactava com tais realidades, ficava impuro, o
que não constituía pecado, mas obrigava a limpar-se logo que possível. E, só
depois de purificado, podia reaproximar-se do Deus santo e restabelecer
comunhão com Ele.
O caso mais grave de impureza causado pela lepra, como atesta
o trecho em referência, o qual estabelece o procedimento a adotar, caso alguém
contraia a lepra, cujos sintomas se espelham num conjunto variado de afeções da
pele (não apenas a doença
hoje assim designada) que
deformam a aparência do homem. Tais afeções abrangidas pela designação geral de
lepra eram vistas como um estado insólito e anormal, manifestativo de forças
misteriosas, inquietantes e ameaçadoras que ameaçam a harmonia e o equilíbrio
da existência do homem. Por conseguinte, o leproso era segregado e afastado da
convivência com as outras pessoas.
Esta medida, que devia partir da iniciativa do próprio (autoexclusão), tinha uma intenção higiénica, evitar
o contágio, mas significava, por outro lado, a dificuldade da comunidade em
lidar com o insólito. Porém, a exclusão dos leprosos tinha sobretudo motivações
religiosas. Segundo a mentalidade do povo bíblico, Deus, como remunerador, dava
a recompensa e o castigo conforme com o comportamento do homem. A doença era castigo
de Deus para o pecado do homem; e uma doença tão repugnante como a lepra era tida
como castigo terrível para um pecado especialmente grave. O leproso era, pois,
um pecador, especialmente amaldiçoado por Deus, indigno de pertencer à
comunidade, nunca podendo ser admitido às assembleias do culto.
Era o confinamento obrigatório e perpétuo, diferente do que
hoje o mundo passa com a covid-19, já que este é transitório e desejavelmente
em vias de ceder o passo ao desconfinamento.
Para os
rabinos, o leproso era um morto em vida, visto que, separado de Deus e da
comunidade do louvor de Deus, em tudo se assemelhava ao morto, que também
estava separado de Deus e fora do louvor de Deus, a verdadeira nascente da vida
(cf Sl 6,6;
88,6; Is 38,18). E o Livro
de Job define a lepra como o “primogénito da morte” (Jb 18,13), de modo que a eventual cura da lepra suscitava o
mesmo efeito de uma ressuscitação da morte.
Se alguém exteriorizava sinais de pecado e indignidade, devia
ser banido da comunidade santa pelas competentes autoridades, os sacerdotes,
que, embora devessem, por função, ajudar a controlar o mal e a impedir o
contágio, não aplicavam remédios nem davam outras indicações terapêuticas. A
sua ação destinava-se a decidir da capacidade ou incapacidade de alguém para
integrar a comunidade do Povo de Deus e ser admitido à presença do Deus santo.
Quer dizer, diabolicamente, em nome de Deus e da santidade do seu Povo, criaram-se
mecanismos de rejeição, exclusão e marginalização perpétuas. Só muito
excecionalmente o látego divino deixava de se abater sobre o leproso e então
também era o sacerdote que tinha de o declarar curado e admissível no grémio da
sociedade e do culto divino.
***
Os evangelhos, em contraste, mostram-nos vários casos de pacientes que
ultrapassam as teias em que a sociedade, em nome da Lei, os emaranhou. E os
leprosos não são exceção neste ousado desconfinamento, pois não é lícito zelar
o bem comum à custa da escravização e descarte de alguém. E o Evangelho desta
dominga (1,40-45) mostra-se um caso singular da revolucionária postura de Jesus contra a
exclusão.
Jesus cumpre a missão que o Pai lhe confiou: anunciar o
Reino, que se torna realidade no mundo e na vida dos homens nas palavras e nos
gestos de Jesus. Mais, como dizia Orígenes, Jesus é “o Reino de Deus em pessoa”
(“autobasileía”). Ele fez-se nosso próximo para sempre (cf Mc 1,15) e passa pelo nosso caminho,
cruzando-se com as nossas dores e assumindo-as, curando a nossa pele chagada e
o nosso coração esclerosado, como refere Dom António Couto, Bispo de Lamego, que
adverte, não sem razão, que “este Evangelho não é só para ouvir”, mas também para ver atentamente,
pois oferece-nos aos olhos, sobretudo aos olhos do coração, “o cenário dum
leproso ajoelhado aos pés de Jesus”, que provoca a comoção visceral (ou o amor maternal) de Jesus, levando-o a estender a sua
mão soberana sobre o leproso, como fez Deus em ação de condescendência e libertação
no Êxodo, e a tocar no leproso sem receio de contágio.
A cena põe Jesus ante um leproso em sítio e lugar não nomeados.
E Dom António Couto considera o episódio “comovente e surpreendente”,
desarmante “para a pobre e aplanada esquadria do nosso olhar”, pois, contra as
regras que impunham aos leprosos o isolamento e a distância de Deus, “a que se
associava o facto de terem de andar com o rosto escondido por qualquer trapo de
miséria, e ainda o grito de ‘impuro,
impuro’, que deviam trazer sempre nos lábios” (Lv 13,45), para as pessoas “boas e saudáveis”,
“ao verem um homem sem rosto e ao ouvirem o seu grito”, se pudessem afastar o
mais possível, “pondo-se a seguro do impuro”.
Penumbrando
tudo isto, um leproso ousa aproximar-se de Jesus e colocar-se de joelhos diante
dele, implorando a purificação. É, nos Evangelhos, o único doente que se coloca
de joelhos ante Jesus, implorando a purificação. O gesto é o seu verdadeiro
pedido, que as palavras que diz apenas iluminam, pois ele sabe que a sua
purificação só pode ser um dom de Deus. Enfim, um doente marginalizado e excluído fura o confinamento imposto e vem ter com Jesus. Ter-lhe-ão chegado ecos do anúncio do
Reino e a pregação de Jesus ter-lhe-á aberto uma nesga de esperança, ou o desespero
e o desejo de sair da miséria e marginalidade vencem o medo de infringir a Lei
e levam-no a aproximar-se do Mestre, sem respeitar o distanciamento social. E,
uma vez diante de Jesus, é humilde, mas insistente (“parakalôn autòn kaì gonypetôn légônautôi”: “prostrou-se de
joelhos e suplicou-lhe” – Mc 1,40),
pois este encontro é uma oportunidade que não pode desperdiçar. Pretende ser
curado e, sobretudo, ser purificado da enfermidade que o torna indigno de
pertencer à comunidade de Deus e à comunidade dos homens. “Se quiseres podes purificar-me” (Mc 1,40: “hóti eàn thélêsdúnasaí me katharísai”) – disse a Jesus. O verbo grego “katharídzô” aqui utilizado não devia
traduzir-se só como curar, mas como purificar ou limpar. O leproso confia no poder
de Jesus, sabendo que só Ele o pode ajudar a superar a situação de miséria,
isolamento e indignidade a que o votaram.
A reação de Jesus é estranha segundo os padrões judaicos. Em
vez de se afastar do leproso e de o acusar de infringir a Lei, olha-o
“compadecido”, estende a mão e toca-lhe (Mc 1,41).
O verbo “compadecer-se” é aplicado, na literatura neotestamentária,
só a Deus e a Jesus. Usado em contextos de referência da ternura de Deus pelos
homens e aplicado aqui a Jesus, mostra que Ele é o Deus com o coração cheio de amor
pelos seus filhos, que Se compadece face à miséria e sofrimento dos homens. As
vísceras maternais de Jesus comovem-se (“splagchnízomai”)
ao ver o estado miserável
deste seu filho (Mc 1,41). Entende Dom António Couto que o
verbo grego indica o desarranjo interior nas vísceras (“splágchna”), e vísceras maternais (hebraico “rahamîm”). Por isso, Jesus não pode repelir um filho necessitado. Ao invés,
estende a mão sobre ele, gesto de condescendência e soberania divinas (Ex 3,20; 7,5; Sl 138,7), toca-lhe a pele chagada e entabula
comunicação com ele, falando para ele (Mc 1,41). Para Jesus, não há gente para acolher e gente para repelir. A todos
acolhe, sobretudo aos piores e aos que estão em pior estado. Tocando-lhe, Jesus
assume sobre si a lepra do pobre do homem. E assim o salva e nos salva. Jesus
não passa por nós à distância nem à tangente; desce ao nosso mundo, “assume e
paga a conta por inteiro”.
Com esta postura
de radical proximidade física, afetiva e salutar, Jesus diz-nos que nos devemos
abeirar de todas as pessoas, nomeadamente dos doentes, marginalizados e
descartados, sempre incluindo e nunca excluindo, com atitude próxima, familiar,
compassiva, e calorosa, no polo oposto de qualquer comportamento indiferente,
cético ou asséptico.
Na verdade, o amor de Deus tornado presente em Jesus manifesta-se
num gesto concreto para com o leproso: Jesus estende a mão e toca-o – um gesto
humano da bondade e solidariedade de Jesus para com o homem. Todavia, este gesto
tem um profundo significado teológico, pois é o gesto que acompanha, na
história do Êxodo, as ações libertadoras de Deus em favor do Povo (cf Ex 3,20; 6,8;8,1; 9,22; 10,12; 14,16.21.26-27;
etc.). O amor de Deus
manifesta-se como gesto libertador, que salva o leproso da escravidão em que a
doença o lançara. Ao mesmo tempo, ao tocar o leproso, Jesus infringe a Lei, o
que significa denúncia duma Lei que instituiu a marginalização e a exclusão.
Jesus, com a autoridade que Lhe vem de Deus, mostra que tal marginalização não
expressa a vontade de Deus. O gesto de tocar o leproso mostra que a distinção
entre puro e impuro não vem de Deus nem transmite a sua lógica, mas que Deus
não discrimina ninguém, ao invés, ama e oferece a liberdade a todos os seus
filhos e a todos Ele convida a integrar a família do Reino, a nova humanidade.
E as palavras de Jesus “Quero: fica limpo!”
(“thélô, katharístheti”: Mc 1,41) confirmam o seu gesto e mostram que, na lógica de Deus, o
leproso não é um marginal, mas um filho amado a quem Deus oferece a salvação e
a vida plena.
A purificação do leproso significa que o Reino chegou ao meio
dos homens a anunciar a irrupção do mundo novo de que Deus quer banir o
sofrimento e a exclusão; significa o desmantelamento da teologia que tinha o
leproso como um maldito – antes, a misericórdia e a ternura de Deus se derramam
sobre o leproso e lhe dizem o que o então Cardeal Montini, Arcebispo de Milão,
queria que os cristãos apregoassem: “Deus
ama-te e quer salvar-te” –; e significa que o Reino de Deus não pactua com qualquer
tipo de racismo: não há bons e maus, doentes e sãos, filhos e enjeitados,
incluídos e excluídos, mas pessoas com dignidade, que não podem ser privadas
dos seus direitos mais elementares, muito menos em nome de Deus.
Uma vez purificado o leproso, Jesus impõe que não diga nada a
ninguém (Mc 1,44), imposição que, segundo Marcos (cf Mc 1,34; 5,43; 7,36; etc.), aparece várias vezes, resultante do
facto de Jesus não querer gerar equívocos ou podendo ser aceite por motivos
errados. Segundo Mt 11,5, a cura dos leprosos é obra do Messias, pelo que o gesto
define Jesus define como o Messias esperado. Contudo, num país em febre
messiânica, Jesus quer evitar um título ambíguo por estar ligado à perspetiva
nacionalista e a sonho de luta política contra o ocupante, pois tem plena consciência
de que o seu messianismo não passa pelo trono político, mas pela cruz. É o
Messias, mas não deixa de ser o servo, que vem ao encontro dos homens para lhes
transmitir o desígnio do Pai e os libertar da opressão. A sua via é a do sofrimento
e da morte; o seu trono é a cruz, expressão máxima de uma vida feita amor e
entrega.
Ao homem purificado, Jesus manda que se mostre ao príncipe
dos sacerdotes (Mc 1,44), porque só podia ser legalmente reintegrado
na comunidade religiosa depois de a cura ser homologada pelo sacerdote em
funções. Não obstante, Jesus acrescenta: “para
lhes servir de testemunho” (“eis martýrion autoîs”: Mc
1,44). Dado que esta
cura só podia ser operada por Deus, era um sinal messiânico, pelo que devia
servir aos líderes do Povo para concluírem que o Messias tinha chegado e que o Reino
já estava presente. O leproso purificado era, então, uma testemunha da presença
de Deus no meio do Povo e um sinal da chegada dos novos tempos. Apesar da
evidência, os líderes judaicos estavam entrincheirados nas suas certezas,
preconceitos e privilégios e recusaram-se a acolher a novidade de Deus, a
novidade do Reino.
O trecho conclui referindo que o leproso purificado “começou
a apregoar e a divulgar o que acontecera”, pois, quem experimenta o poder
integrador e salvador de Jesus necessariamente se converte em profeta e
testemunha do amor e da bondade de Deus. Na verdade, o brado de Jesus “Quero: fica limpo!” (Mc 1,41) gerou um homem novo, de rosto
destapado, descoberto por Deus, para ser visto e admirado, saído das mãos puras
de Deus e da Palavra criadora (Gn cap. 1; Jo 15,3); e do calado grito “impuro,
impuro!” nasceu o grito novo do anúncio (“kêrýkeuma”) do Evangelho (Mc 1,45), sendo o leproso o terceiro anunciador
(“kêryx”). O primeiro foi João Batista (Mc 1,4.7); o segundo foi Jesus (Mc 1,14.38.39); e seguir-se-ão outros (Mc 3,14; 5,20; 6,12; 7,36; 16,15.20), sendo agora a nossa vez, pois também
a mão estendida, soberana e carinhosa de Deus nos tocou, purificou e levantou,
não para não dizermos nada a ninguém, mas para nos enviar em missão com a
notícia feliz da vida do mundo que há de vir.
***
Por fim, é de acolher a provocação de Paulo, na lição de hoje
aos Coríntios (1Cor
10,31-11,1) de tudo fazer
para glória de Deus e procurar que todos sejam salvos, sendo imitadores (“mimêtaí”) do apóstolo como ele o é de Cristo (“kathôs
kagô Khristoû”). Importa,
mesmo, que sejamos em tudo seguidores e mimos (“mymoi”) de Cristo, ou seja fazendo tudo como
Ele faz e O vimos fazer.
Pelo bem comum, mas sem descartar ninguém. Se isso acontecer, temos de nos armar em fura-confinamentos como o leproso. Todos têm lugar na economia de Cristo!
2021.02.
14 – Louro de Carvalho
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