domingo, 14 de fevereiro de 2021

Do trecho da exclusão ao Evangelho da inclusão e o fura-confinamento

 

 

As passagens do livro do Levítico (Lv 13,1-2.44-46) que encabeçam a Liturgia da Palavra da celebração deste 6.º domingo do Tempo Comum no Ano B bem podem denominar-se de páginas de exclusão – de pessoas marcadas pela doença resultante de pecado próprio ou de seus ascendentes – por motivos sanitários em prol do bem comum.

O Levítico, apresentado como um conjunto de discursos do Senhor a Moisés para explicar o que o Povo devia fazer para viver em comunhão com Deus, no âmbito da Aliança, trata, sobretudo, de questões cultuais (incumbência dos sacerdotes, membros da tribo de Levi), mas com implicações diretas na vida civil. São leis, preceitos e ritos de épocas e proveniências diversas, reelaborados pelos teólogos da escola sacerdotal para ensinar os israelitas a viver como Povo de Deus e a responder adequadamente ao amor e solicitude do Deus da Aliança, instilando na consciência dos fiéis a ideia-força de que a comunhão com o Deus vivo é a verdadeira vocação do homem.

As passagens em referência inserem-se na terceira parte do Livro (caps. 11-16), a “lei da pureza”, em que se tipificam os vários géneros de impureza impeditivos da aproximação do santuário e os ritos de purificação do homem. Tudo isto baseado em noções tabuístas de pureza e impureza que induziram a formulação de regras que protegem o homem da angústia e do risco do desconhecido, sendo que tudo o que seja excecional e misterioso destrói a harmonia e o equilíbrio e pode libertar forças incontroláveis que o homem não domina.

Assim, interditava-se aos israelitas o contacto com determinadas realidades, como o sangue, os cadáveres, certos tipos de alimentos, etc. Ora, se alguém contactava com tais realidades, ficava impuro, o que não constituía pecado, mas obrigava a limpar-se logo que possível. E, só depois de purificado, podia reaproximar-se do Deus santo e restabelecer comunhão com Ele.

O caso mais grave de impureza causado pela lepra, como atesta o trecho em referência, o qual estabelece o procedimento a adotar, caso alguém contraia a lepra, cujos sintomas se espelham num conjunto variado de afeções da pele (não apenas a doença hoje assim designada) que deformam a aparência do homem. Tais afeções abrangidas pela designação geral de lepra eram vistas como um estado insólito e anormal, manifestativo de forças misteriosas, inquietantes e ameaçadoras que ameaçam a harmonia e o equilíbrio da existência do homem. Por conseguinte, o leproso era segregado e afastado da convivência com as outras pessoas.

Esta medida, que devia partir da iniciativa do próprio (autoexclusão), tinha uma intenção higiénica, evitar o contágio, mas significava, por outro lado, a dificuldade da comunidade em lidar com o insólito. Porém, a exclusão dos leprosos tinha sobretudo motivações religiosas. Segundo a mentalidade do povo bíblico, Deus, como remunerador, dava a recompensa e o castigo conforme com o comportamento do homem. A doença era castigo de Deus para o pecado do homem; e uma doença tão repugnante como a lepra era tida como castigo terrível para um pecado especialmente grave. O leproso era, pois, um pecador, especialmente amaldiçoado por Deus, indigno de pertencer à comunidade, nunca podendo ser admitido às assembleias do culto.

Era o confinamento obrigatório e perpétuo, diferente do que hoje o mundo passa com a covid-19, já que este é transitório e desejavelmente em vias de ceder o passo ao desconfinamento.

Para os rabinos, o leproso era um morto em vida, visto que, separado de Deus e da comunidade do louvor de Deus, em tudo se assemelhava ao morto, que também estava separado de Deus e fora do louvor de Deus, a verdadeira nascente da vida (cf Sl 6,6; 88,6; Is 38,18). E o Livro de Job define a lepra como o “primogénito da morte” (Jb 18,13), de modo que a eventual cura da lepra suscitava o mesmo efeito de uma ressuscitação da morte.

Se alguém exteriorizava sinais de pecado e indignidade, devia ser banido da comunidade santa pelas competentes autoridades, os sacerdotes, que, embora devessem, por função, ajudar a controlar o mal e a impedir o contágio, não aplicavam remédios nem davam outras indicações terapêuticas. A sua ação destinava-se a decidir da capacidade ou incapacidade de alguém para integrar a comunidade do Povo de Deus e ser admitido à presença do Deus santo. Quer dizer, diabolicamente, em nome de Deus e da santidade do seu Povo, criaram-se mecanismos de rejeição, exclusão e marginalização perpétuas. Só muito excecionalmente o látego divino deixava de se abater sobre o leproso e então também era o sacerdote que tinha de o declarar curado e admissível no grémio da sociedade e do culto divino.

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Os evangelhos, em contraste, mostram-nos vários casos de pacientes que ultrapassam as teias em que a sociedade, em nome da Lei, os emaranhou. E os leprosos não são exceção neste ousado desconfinamento, pois não é lícito zelar o bem comum à custa da escravização e descarte de alguém. E o Evangelho desta dominga (1,40-45) mostra-se um caso singular da revolucionária postura de Jesus contra a exclusão. 

Jesus cumpre a missão que o Pai lhe confiou: anunciar o Reino, que se torna realidade no mundo e na vida dos homens nas palavras e nos gestos de Jesus. Mais, como dizia Orígenes, Jesus é “o Reino de Deus em pessoa” (“autobasileía). Ele fez-se nosso próximo para sempre (cf Mc 1,15) e passa pelo nosso caminho, cruzando-se com as nossas dores e assumindo-as, curando a nossa pele chagada e o nosso coração esclerosado, como refere Dom António Couto, Bispo de Lamego, que adverte, não sem razão, que “este Evangelho não é só para ouvir”, mas também para ver atentamente, pois oferece-nos aos olhos, sobretudo aos olhos do coração, “o cenário dum leproso ajoelhado aos pés de Jesus”, que provoca a comoção visceral (ou o amor maternal) de Jesus, levando-o a estender a sua mão soberana sobre o leproso, como fez Deus em ação de condescendência e libertação no Êxodo, e a tocar no leproso sem receio de contágio.

A cena põe Jesus ante um leproso em sítio e lugar não nomeados. E Dom António Couto considera o episódio “comovente e surpreendente”, desarmante “para a pobre e aplanada esquadria do nosso olhar”, pois, contra as regras que impunham aos leprosos o isolamento e a distância de Deus, “a que se associava o facto de terem de andar com o rosto escondido por qualquer trapo de miséria, e ainda o grito de ‘impuro, impuro’, que deviam trazer sempre nos lábios” (Lv 13,45), para as pessoas “boas e saudáveis”, “ao verem um homem sem rosto e ao ouvirem o seu grito”, se pudessem afastar o mais possível, “pondo-se a seguro do impuro”.   

Penumbrando tudo isto, um leproso ousa aproximar-se de Jesus e colocar-se de joelhos diante dele, implorando a purificação. É, nos Evangelhos, o único doente que se coloca de joelhos ante Jesus, implorando a purificação. O gesto é o seu verdadeiro pedido, que as palavras que diz apenas iluminam, pois ele sabe que a sua purificação só pode ser um dom de Deus. Enfim, um doente marginalizado e excluído fura o confinamento imposto e vem ter com Jesus. Ter-lhe-ão chegado ecos do anúncio do Reino e a pregação de Jesus ter-lhe-á aberto uma nesga de esperança, ou o desespero e o desejo de sair da miséria e marginalidade vencem o medo de infringir a Lei e levam-no a aproximar-se do Mestre, sem respeitar o distanciamento social. E, uma vez diante de Jesus, é humilde, mas insistente (“parakalôn autòn kaì gonypetôn légônautôi”: “prostrou-se de joelhos e suplicou-lhe” – Mc 1,40), pois este encontro é uma oportunidade que não pode desperdiçar. Pretende ser curado e, sobretudo, ser purificado da enfermidade que o torna indigno de pertencer à comunidade de Deus e à comunidade dos homens. “Se quiseres podes purificar-me(Mc 1,40: “hóti eàn thélêsdúnasaí me katharísai”) – disse a Jesus. O verbo grego “katharídzô” aqui utilizado não devia traduzir-se só como curar, mas como purificar ou limpar. O leproso confia no poder de Jesus, sabendo que só Ele o pode ajudar a superar a situação de miséria, isolamento e indignidade a que o votaram.

A reação de Jesus é estranha segundo os padrões judaicos. Em vez de se afastar do leproso e de o acusar de infringir a Lei, olha-o “compadecido”, estende a mão e toca-lhe (Mc 1,41).

O verbo “compadecer-se” é aplicado, na literatura neotestamentária, só a Deus e a Jesus. Usado em contextos de referência da ternura de Deus pelos homens e aplicado aqui a Jesus, mostra que Ele é o Deus com o coração cheio de amor pelos seus filhos, que Se compadece face à miséria e sofrimento dos homens. As vísceras maternais de Jesus comovem-se (“splagchnízomai) ao ver o estado miserável deste seu filho (Mc 1,41). Entende Dom António Couto que o verbo grego indica o desarranjo interior nas vísceras (“splágchna), e vísceras maternais (hebraico “rahamîm). Por isso, Jesus não pode repelir um filho necessitado. Ao invés, estende a mão sobre ele, gesto de condescendência e soberania divinas (Ex 3,20; 7,5; Sl 138,7), toca-lhe a pele chagada e entabula comunicação com ele, falando para ele (Mc 1,41). Para Jesus, não há gente para acolher e gente para repelir. A todos acolhe, sobretudo aos piores e aos que estão em pior estado. Tocando-lhe, Jesus assume sobre si a lepra do pobre do homem. E assim o salva e nos salva. Jesus não passa por nós à distância nem à tangente; desce ao nosso mundo, “assume e paga a conta por inteiro”.  

Com esta postura de radical proximidade física, afetiva e salutar, Jesus diz-nos que nos devemos abeirar de todas as pessoas, nomeadamente dos doentes, marginalizados e descartados, sempre incluindo e nunca excluindo, com atitude próxima, familiar, compassiva, e calorosa, no polo oposto de qualquer comportamento indiferente, cético ou asséptico.

Na verdade, o amor de Deus tornado presente em Jesus manifesta-se num gesto concreto para com o leproso: Jesus estende a mão e toca-o – um gesto humano da bondade e solidariedade de Jesus para com o homem. Todavia, este gesto tem um profundo significado teológico, pois é o gesto que acompanha, na história do Êxodo, as ações libertadoras de Deus em favor do Povo (cf Ex 3,20; 6,8;8,1; 9,22; 10,12; 14,16.21.26-27; etc.). O amor de Deus manifesta-se como gesto libertador, que salva o leproso da escravidão em que a doença o lançara. Ao mesmo tempo, ao tocar o leproso, Jesus infringe a Lei, o que significa denúncia duma Lei que instituiu a marginalização e a exclusão. Jesus, com a autoridade que Lhe vem de Deus, mostra que tal marginalização não expressa a vontade de Deus. O gesto de tocar o leproso mostra que a distinção entre puro e impuro não vem de Deus nem transmite a sua lógica, mas que Deus não discrimina ninguém, ao invés, ama e oferece a liberdade a todos os seus filhos e a todos Ele convida a integrar a família do Reino, a nova humanidade. E as palavras de Jesus “Quero: fica limpo!(“thélô, katharístheti”: Mc 1,41) confirmam o seu gesto e mostram que, na lógica de Deus, o leproso não é um marginal, mas um filho amado a quem Deus oferece a salvação e a vida plena.

A purificação do leproso significa que o Reino chegou ao meio dos homens a anunciar a irrupção do mundo novo de que Deus quer banir o sofrimento e a exclusão; significa o desmantelamento da teologia que tinha o leproso como um maldito – antes, a misericórdia e a ternura de Deus se derramam sobre o leproso e lhe dizem o que o então Cardeal Montini, Arcebispo de Milão, queria que os cristãos apregoassem: “Deus ama-te e quer salvar-te” –; e significa que o Reino de Deus não pactua com qualquer tipo de racismo: não há bons e maus, doentes e sãos, filhos e enjeitados, incluídos e excluídos, mas pessoas com dignidade, que não podem ser privadas dos seus direitos mais elementares, muito menos em nome de Deus.

Uma vez purificado o leproso, Jesus impõe que não diga nada a ninguém (Mc 1,44), imposição que, segundo Marcos (cf Mc 1,34; 5,43; 7,36; etc.), aparece várias vezes, resultante do facto de Jesus não querer gerar equívocos ou podendo ser aceite por motivos errados. Segundo Mt 11,5, a cura dos leprosos é obra do Messias, pelo que o gesto define Jesus define como o Messias esperado. Contudo, num país em febre messiânica, Jesus quer evitar um título ambíguo por estar ligado à perspetiva nacionalista e a sonho de luta política contra o ocupante, pois tem plena consciência de que o seu messianismo não passa pelo trono político, mas pela cruz. É o Messias, mas não deixa de ser o servo, que vem ao encontro dos homens para lhes transmitir o desígnio do Pai e os libertar da opressão. A sua via é a do sofrimento e da morte; o seu trono é a cruz, expressão máxima de uma vida feita amor e entrega.

Ao homem purificado, Jesus manda que se mostre ao príncipe dos sacerdotes (Mc 1,44), porque só podia ser legalmente reintegrado na comunidade religiosa depois de a cura ser homologada pelo sacerdote em funções. Não obstante, Jesus acrescenta: “para lhes servir de testemunho(“eis martýrion autoîs”: Mc 1,44). Dado que esta cura só podia ser operada por Deus, era um sinal messiânico, pelo que devia servir aos líderes do Povo para concluírem que o Messias tinha chegado e que o Reino já estava presente. O leproso purificado era, então, uma testemunha da presença de Deus no meio do Povo e um sinal da chegada dos novos tempos. Apesar da evidência, os líderes judaicos estavam entrincheirados nas suas certezas, preconceitos e privilégios e recusaram-se a acolher a novidade de Deus, a novidade do Reino.

O trecho conclui referindo que o leproso purificado “começou a apregoar e a divulgar o que acontecera”, pois, quem experimenta o poder integrador e salvador de Jesus necessariamente se converte em profeta e testemunha do amor e da bondade de Deus. Na verdade, o brado de Jesus “Quero: fica limpo!(Mc 1,41) gerou um homem novo, de rosto destapado, descoberto por Deus, para ser visto e admirado, saído das mãos puras de Deus e da Palavra criadora (Gn cap. 1; Jo 15,3); e do calado grito “impuro, impuro!” nasceu o grito novo do anúncio (“kêrýkeuma) do Evangelho (Mc 1,45), sendo o leproso o terceiro anunciador (“kêryx”). O primeiro foi João Batista (Mc 1,4.7); o segundo foi Jesus (Mc 1,14.38.39); e seguir-se-ão outros (Mc 3,14; 5,20; 6,12; 7,36; 16,15.20), sendo agora a nossa vez, pois também a mão estendida, soberana e carinhosa de Deus nos tocou, purificou e levantou, não para não dizermos nada a ninguém, mas para nos enviar em missão com a notícia feliz da vida do mundo que há de vir.

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Por fim, é de acolher a provocação de Paulo, na lição de hoje aos Coríntios (1Cor 10,31-11,1) de tudo fazer para glória de Deus e procurar que todos sejam salvos, sendo imitadores (“mimêtaí) do apóstolo como ele o é de Cristo (“kathôs kagô Khristoû”). Importa, mesmo, que sejamos em tudo seguidores e mimos (“mymoi”) de Cristo, ou seja fazendo tudo como Ele faz e O vimos fazer.

Pelo bem comum, mas sem descartar ninguém. Se isso acontecer, temos de nos armar em fura-confinamentos como o leproso. Todos têm lugar na economia de Cristo!

2021.02. 14 – Louro de Carvalho

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