Muitas mulheres, com base na tradição cristã (católica, ortodoxa,
anglicana, luterano, calvinista e metodista), usam véu no culto público (algumas ligadas a essas tradições também o usem fora do templo). E alguns, como os cristãos
anabatistas, sustentam que as mulheres devem cobrir a cabeça o tempo todo. Certas
passagens bíblicas (como Gn 24,65; Nm 5,18; e Is 47,2) do AT (Antigo Testamento) indicam que as mulheres cobriam a
cabeça.
Porém, a prática feminina de cobrir a cabeça para orar e profetizar
inspira-se na interpretação literal da 1.ª Carta aos Coríntios (1Cor 11,2-16), a única passagem do NT (Novo Testamento) que refere a cabeça coberta de mulheres
e a cabeça descoberta de homens. Como sinal de obediência, modéstia, recato e
decência, o véu escuda-se na tradição oral, pois São Paulo (cf 1Cor 11,13-16) pretende que a mulher use cabelos compridos por modéstia. E, em carta
a Timóteo, diz:
“Do mesmo modo, as mulheres usem
trajes decentes, adornem-se com pudor e modéstia, sem tranças, ouro, pérolas ou
vestidos sumptuosos, mas como convém a mulheres que fazem profissão de piedade,
por meio de boas obras” (1Tm 2,9-10).
Os estudiosos sustentam que os vv. 4-7 da 1.ª Carta aos Coríntios se
referem a véu ou cobertura de pano, respeitando o v. 15 ao cabelo comprido da
mulher por modéstia. Embora cobrir a cabeça tenha sido prática de muitas cristãs
na era moderna, agora é prática minoritária em cristãs no Ocidente, ao invés de
outras partes do mundo (vg: Roménia, Rússia, Ucrânia, Etiópia,
Índia, Paquistão, Coreia do Sul…), em que se mantém. O estilo de tal cobertura varia consoante a região. E o
véu faz parte do hábito em ordens monásticas e congregações femininas
católicas.
Escritores dos primeiros séculos atestam que a cobertura da cabeça era,
regra geral, praticada pela mulher na Igreja primitiva. Assim, Clemente de
Alexandria (c. 150 – c. 215) escreve:
“A mulher e o homem devem ir à
igreja vestidos decentemente..., pois este é o desejo da Palavra, visto que é
conveniente para ela orar velado. (…)
Também foi ordenado que a cabeça fosse
velada e o rosto coberto, pois é coisa perversa que a beleza seja armadilha
para os homens. Nem é apropriado que a mulher deseje tornar-se visível usando
um véu roxo.”.
Tertuliano (150 – 220), referindo que a Igreja de Corinto praticava o uso do véu – isto apenas
150 anos após a 1.ª Carta de Paulo aos Coríntios, diz:
“Da mesma forma, os próprios
coríntios entenderam [Paulo]. Na verdade, atualmente os coríntios cobrem as suas
virgens com véu. O que os apóstolos ensinaram, os seus discípulos aprovam.”.
Hipólito de Roma (170-236), dando instruções para as reuniões da Igreja, diz:
“Todas as mulheres tenham as suas
cabeças cobertas com um pano opaco. (...) A história da Igreja primitiva dá
testemunho de que, em Roma, Antioquia e África, o costume [de usar o
véu] se tornou a norma [para a Igreja].”.
Orígenes
de Alexandria (c. 184 – c. 253) escreve:
“Há anjos no meio da nossa assembleia...
Temos aqui uma Igreja dupla, uma de homens, a outra de anjos... E, visto que há
anjos presentes... as mulheres, quando rezam, recebem a ordem de cobrir a
cabeça por causa daqueles anjos. Elas ajudam os santos e alegram-se na Igreja.”.
Na 2.ª metade do século III, mulheres a orar com a cabeça coberta com véu
ou lenço são mencionadas como prática da Igreja por São Vitorino no
comentário do Apocalipse.
Mais tarde, no século IV, São João Crisóstomo (347 – 407) declara:
“… o negócio de cobrir a cabeça foi
legislado pela natureza (vd 1Cor 11,14-15). Quando digo ‘natureza’, quero dizer
‘Deus’. Pois ele é quem criou a natureza. Observe, portanto, que grande dano
pode advir de derrubar esses limites! E não me diga que isso é um pequeno
pecado.”.
São Jerónimo (347 – 420) observa que as cristãs usam gorro e véu de oração
no Egito e na Síria:
“Não andem com a cabeça descoberta
em desafio à ordem do apóstolo, mas usem uma touca, um lenço ou um véu”.
Santo Agostinho de Hipona (354 – 430) escreve sobre a cobertura da cabeça:
“Não convém, mesmo nas mulheres
casadas, descobrir os cabelos, visto que o apóstolo ordena às mulheres que
mantenham a cabeça coberta”.
Além da conotação religiosa, o véu tem um fim utilitário de proteção e o de
distinção social.
A arte cristã primitiva confirma que as mulheres usavam a cabeça coberta.
E, até pelo menos ao século XVIII, a cobertura na cabeça, tanto em público como
na frequência da igreja, era costumeira para mulheres cristãs nas culturas
mediterrânea, europeia, do Oriente Médio e da África. Mulher que não usasse
cabeça coberta era interpretada como prostituta ou adúltera. Na Europa, a lei
estipulava que mulheres casadas descobrirem o cabelo em público era evidência
de castigo por sua infidelidade.
Igrejas Católicas Orientais e Ortodoxas Orientais (vg: a Igreja Ortodoxa Russa) exigem que a mulher cubra a cabeça na igreja. Na Albânia, a mulher
cristã usa véu branco, embora os olhos sejam visíveis; e, nos edifícios da sua igreja
ortodoxa, as mulheres são separadas dos homens por divisórias de treliça
durante o serviço religioso. As mulheres pertencentes à comunidade dos Velhos
Crentes usam tapa-cabeças opacas; e as casadas usam gorro de tricô, o povoinik.
Noutros casos, a escolha pode ser individual ou variar dentro do país ou
jurisdição. Entre as ortodoxas orientais na Grécia, a prática de cobrir a
cabeça na igreja diminuiu gradualmente no século XX. Nos EUA, o costume varia consoante a denominação e
congregação. As católicas na Coreia do Sul ainda usam a cabeça
coberta.
O clero ortodoxo oriental cobre a cabeça, às vezes, com véus no caso de
monges ou celibatários, que são colocados e removidos em certos pontos dos
serviços. Nas igrejas dos EUA, são usados com menos frequência. As monjas
ortodoxas orientais usam uma cobertura na cabeça chamada apostólnik, usada o
tempo todo, que é a única parte do hábito monástico que as distingue dos monges
ortodoxos orientais do sexo masculino. Na Europa Ocidental e na América do
Norte, no início do século XX, mulheres de algumas denominações cristãs (anglicanas, batistas, católicas, luteranos, metodistas, presbiterianas) cobriam a cabeça durante os serviços
religiosos.
Historicamente, as mulheres eram obrigadas a usar véu ao receber a
Eucaristia após os Concílios de Autun e Angers. E, em 585, o Sínodo de Auxerre (França) declarou que as mulheres deviam usar cobertura na cabeça na Missa. O
Sínodo de Roma, em 743,
fez uma declaração
canónica, mais tarde adotada pelo Papa Nicolau I em 866, para os serviços
religiosos:
“Uma mulher orando na igreja sem a cabeça
coberta traz vergonha sobre a sua cabeça, de acordo com a palavra do apóstolo”.
Santo Tomás de Aquino (1225-1274) distinguiu:
“O homem, que existe sob Deus, não
deve ter uma cobertura para mostrar que está imediatamente sujeito a Deus, mas
a mulher deve usar uma cobertura para mostrar que além de Deus ela está
naturalmente sujeita a outro”.
O CIC (Codex Iuris Canonici), de 1917, exigia que as mulheres
cobrissem a cabeças na igreja:
“As mulheres, entretanto, devem ter a
cabeça coberta e estar vestidas com recato, especialmente quando se aproximam
da mesa do Senhor”: (Mulieres autem, capite cooperto et modest vestitae,
maxime cum ad mensam Domincam accedunt, Codex
Iuris Canonici, 1917, can. 1262).
A cobertura da cabeça para mulheres foi unanimemente mantida pela Igreja
católica latina até à entrada em vigor do Codex
Iuris Canonici (CIC) de 1983. O véu não foi abordado na revisão de 1983 do
CIC, que declarou o CIC de 1917 revogado. Segundo o novo CIC, a lei anterior só tem peso interpretativo
nas normas repetidas no CIC de 1983,
tendo sido todas as outras revogadas e não havendo previsão de normas que não
sejam repetidas no CIC de 1983:
“A lei posterior ab-roga ou derroga
a anterior, se expressamente o declara, se lhe é diretamente contrária, ou se
reordena inteiramente toda a matéria da lei anterior; a lei universal, porém,
de nenhum modo derroga o direito particular ou especial, salvo determinação
expressa em contrário no direito” (CIC,
1983, can. 20). “O costume é o melhor
intérprete da lei” (Ibid., can. 27). “Salva
a prescrição do can. 5, o costume contra ou à margem da lei é revogado por um
costume ou lei contrários; mas, se não fizer expressa menção deles, uma lei não
revoga costumes centenários ou imemoriais, nem a lei universal, costumes
particulares” (Ibid., can. 28).
Lutero incentiva as esposas a usar véu na
adoração pública. As Rubricas Gerais da Conferência Sinódica Luterana
Evangélica da América do Norte, contidas na “Liturgia Luterana”, declaram na secção
“Capacete para Mulheres”:
“É um costume louvável, baseado em
uma injunção das Escrituras (1Cor 11,3-15), para que as mulheres usem uma
cobertura adequada para a cabeça na Igreja, especialmente no momento do serviço
divino”.
Calvino, fundador das Igrejas Reformadas, e Knox, fundador da Igreja
Presbiteriana, convocam as mulheres a cobrir a cabeça na adoração
pública. E John Wesley, fundador do Metodismo, sustenta que a mulher,
“sobretudo na assembleia religiosa”, deve “manter o véu”.
Em nações como a Europa Oriental e o subcontinente indiano, quase todas as
cristãs cobrem a cabeça nos serviços religiosos. No Reino Unido, é comum
as mulheres cobrirem a cabeça nos serviços religiosos formais, como casamentos
na igreja. Na adoração, no mundo ocidental, muitas mulheres passaram a usar
gorro, lenço, mantilha e chapéu, que têm também função utilitária, estética e
social. Entretanto, na América do Norte e em lugares da Europa Ocidental, essas
práticas começaram a declinar, com algumas exceções, incluindo cristãos que
usam roupas simples, como quacres conservadores e muitos anabatistas (incluindo menonitas, huteritas, irmãos batistas alemães antigos, cristãos
apostólicos e amish). As mulheres da Morávia usam uma cobertura de renda chamada haube na cabeça,
especialmente quando servem como dieners.
Católicos tradicionalistas e cristãos que praticam a doutrina da santidade
exterior cobrem a cabeça: além da Igreja Luterana Laestadiana, os Irmãos de
Plymouth e as igrejas Presbiterianas Escocesas e Irlandesas e Reformadas
Holandesas mais conservadoras. Mulheres crentes das Igrejas de Cristo e as Igrejas
pentecostais, como a Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo da Fé Apostólica, a
Missão Pentecostal, a Congregação Cristã e a Igreja dos Crentes impõem o véu às
mulheres. Mulher Testemunha de Jeová só lidera a oração e o ensino quando homem
batizado não está disponível, e fá-lo cobrindo a cabeça. Freiras das tradições
católica romana, luterana e anglicana usam o véu como parte do seu hábito
religioso.
***
O Apóstolo introduz a mencionada passagem da 1.ª Carta aos Coríntios elogiando
os cristãos por se lembrarem dos “ensinos” (“tradições” ou
“ordenanças”) que lhes havia transmitido. Explica o uso cristão de cobertura ou não da
cabeça pelos motivos de chefia, glória, anjos, comprimentos naturais de cabelo
e a prática das igrejas. O que diz sobre esses temas induziu diferenças na
interpretação dos comentaristas da Bíblia e nas assembleias cristãs. São Paulo
fala da obrigação do véu e a sua argumentação relaciona a cobertura da cabeça
da mulher com a glória, pois, a natureza ensina que, para o homem, é vergonhoso
deixar o cabelo crescer, ao passo que, para a mulher, é honroso ter os cabelos
compridos (cf vv. 14-15), mostrando que não se trata só de algo cultural, mas natural. É próprio do
feminino a elegância, a busca da expressão da beleza interior pelo cuidado com
a aparência. Assim, é tipicamente feminino o cuidado com os cabelos.
Diante disso, a mulher cobrir a cabeça no momento dar glória a Deus é
esconder a sua própria reverenciando Aquele que merece toda a glória. Usar o
véu em atenção aos anjos significa que está com eles a participar num culto de
adoração a Deus. Todas as criaturas, homens, mulheres e anjos, se prostram
diante de Deus para adorá-Lo e, nesse momento, todas devem esconder a sua
glória e dar glória a Deus. Cobrindo a cabeça, a mulher realiza isso de forma
ritual. Por isso, quando cobre a cabeça na igreja, simboliza a sua dignidade e
humildade ante Deus. O véu cobre o que o Senhor chama de “glória da mulher”: o cabelo.
Cobrir o cabelo é gesto da mulher para mostrar a Deus que reconhece que a sua
beleza é menor que a d’ Ele e que a glória d’Ele está muito acima da sua, bem
como para mostrar a sua vontade de se manter velada a fim de que só Deus seja
glorificado e de O adorar no oratório interior do seu coração, a sua alma.
O véu confere à mulher um sentido de dignidade e beleza. Identifica-a com a
maior criação de Deus, a Virgem Maria, Mãe de Deus. Na Liturgia, cobre-se
delicadamente a dignidade dos seus diversos elementos: o véu frontal cobre o
Sacrário, um véu cobre o cálice e o cibório, a toalha branca cobre o altar, a
casula cobre o sacerdote que oferece o Sacrifício da Missa. Assim o véu cobre a
mulher, chamada a ser, pela Sagrada Comunhão, como a Virgem Maria, Sacrário
vivo do Corpo de Deus. A mulher contém em si, atributos (honra, fama e beleza) que saíram de Deus e nela estão como canal da graça para o homem, pois Ele
assim quis ao criar o ser humano. A este respeito, escrevia o Cónego Constant
Tonnellier:
“A Beleza Suprema não podia senão
criar a beleza. No cosmos tudo era equilíbrio e reflexo da Beleza criadora. Que
olhares podiam descobrir o Belo? Os do homem e da mulher, criados a imagem de
Deus, a quem Deus insuflou seu hálito de vida, capazes de se maravilharem um
diante do outro, num face a face que conduz ao olhar criador que faz o outro
existir. Eis a obra primordial de Deus, o seu primeiro olhar de amor: o homem
elevado na beleza de Deus e, pelo homem, todas as criaturas, feitas para ele, e
ele a ter parte comum com esse universo. Uma criação manando de mil graças.”.
***
Afora, alguns protocolos civis e eclesiásticos, não é obrigatório o uso
feminino do véu. Com efeito, a interpretação das disposições paulinas não pode
ser desligada do contexto cultural, não podendo a ideia de secundarização e
submissão (embora diferentes de sujeição) femininas ofuscar a ideia de igual
dignidade fundamental preconizada pelo Apóstolo. Nem as ideias de recato,
beleza e dignidade se vinculam ao véu, gorro, boné, bivaque, barrete, boina ou
chapéu. Importa, antes, o culto em espírito e verdade.
Em todo o caso, é bom que não se percam as motivações que presidiram à
prescrição da cobertura da cabeça. Por conseguinte, tal como o cardeal, o
bispo, o abade e o presbítero usam o barrete em situação coral, o bispo e outros
prelados usam o solidéu (judeus e muçulmanos usam objeto
parecido), exceto diante do
Santíssimo Sacramento, e o bispo usa a mitra em certos momentos da ação
litúrgica, também a mulher, recebida a devida bênção sacerdotal, pode usar o
véu ou o gorro como sacramental. Na verdade, como refere o Catecismo da Igreja
Católica (n.º 1667), a Igreja instituiu os sacramentais como são sinais sagrados pelos quais,
à imitação dos sacramentos, são significados efeitos espirituais que dispõem os
fiéis a receber o efeito principal dos sacramentos e a santificar as diversas
circunstâncias da vida.
Os sacramentos, instituídos por Cristo, conferem a graça santificante que
apaga o pecado ou aumentam a graça que já se possui; os sacramentais, criados
pela Igreja não conferem a graça em si, mas são vias que conduzem a ela. Assim,
como crucifixo, água benta, medalha, terços, escapulário, imagem do Senhor, da
Virgem e de santos são sacramentais, o véu também o será.
Não há regra sobre a cor, mas recomenda-se o branco (ou outra cor clara) para moças solteiras e preto (ou outra cor escura) para senhoras casadas ou viúvas. Não é
contraindicado véu colorido, mas há de imperar bom senso evitando cor berrante,
que chame demasiado a atenção.
Por fim, é de recordar que Paulo fez as susoditas advertências porque as
assembleias coríntias estavam a funcionar mal (causando “mais prejuízo
que proveito”). Fazendo o banquete de festança, esqueciam que tomavam o Corpo do Senhor e
comiam e bebiam a própria condenação. Ora, segundo São Boaventura a Missa é a
obra em que Deus coloca sob os nossos olhos todo o amor que nos tem, a síntese
dos benefícios que Ele nos faz. Portanto, toda e atenção no essencial e
que os acessórios constituam uma via de melhor acesso ao essencial e de seu
testemunho!
2021.02.21 – Louro de Carvalho
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