domingo, 21 de fevereiro de 2021

Da prática bimilenar e sacramental de cristãs/ãos cobrirem a cabeça

 

Muitas mulheres, com base na tradição cristã (católica, ortodoxa, anglicana, luterano, calvinista e metodista), usam véu no culto público (algumas ligadas a essas tradições também o usem fora do templo). E alguns, como os cristãos anabatistas, sustentam que as mulheres devem cobrir a cabeça o tempo todo. Certas passagens bíblicas (como Gn 24,65; Nm 5,18; e Is 47,2) do AT (Antigo Testamento) indicam que as mulheres cobriam a cabeça.

Porém, a prática feminina de cobrir a cabeça para orar e profetizar inspira-se na interpretação literal da 1.ª Carta aos Coríntios (1Cor 11,2-16), a única passagem do NT (Novo Testamento) que refere a cabeça coberta de mulheres e a cabeça descoberta de homens. Como sinal de obediência, modéstia, recato e decência, o véu escuda-se na tradição oral, pois São Paulo (cf 1Cor 11,13-16) pretende que a mulher use cabelos compridos por modéstia. E, em carta a Timóteo, diz:

Do mesmo modo, as mulheres usem trajes decentes, adornem-se com pudor e modéstia, sem tranças, ouro, pérolas ou vestidos sumptuosos, mas como convém a mulheres que fazem profissão de piedade, por meio de boas obras” (1Tm 2,9-10).

Os estudiosos sustentam que os vv. 4-7 da 1.ª Carta aos Coríntios se referem a véu ou cobertura de pano, respeitando o v. 15 ao cabelo comprido da mulher por modéstia. Embora cobrir a cabeça tenha sido prática de muitas cristãs na era moderna, agora é prática minoritária em cristãs no Ocidente, ao invés de outras partes do mundo (vg: Roménia, Rússia, Ucrânia, Etiópia, Índia, Paquistão, Coreia do Sul…), em que se mantém. O estilo de tal cobertura varia consoante a região. E o véu faz parte do hábito em ordens monásticas e congregações femininas católicas.

Escritores dos primeiros séculos atestam que a cobertura da cabeça era, regra geral, praticada pela mulher na Igreja primitiva. Assim, Clemente de Alexandria (c. 150 – c. 215) escreve:

A mulher e o homem devem ir à igreja vestidos decentemente..., pois este é o desejo da Palavra, visto que é conveniente para ela orar velado. (…) Também foi ordenado que a cabeça fosse velada e o rosto coberto, pois é coisa perversa que a beleza seja armadilha para os homens. Nem é apropriado que a mulher deseje tornar-se visível usando um véu roxo.”.

Tertuliano (150 – 220), referindo que a Igreja de Corinto praticava o uso do véu – isto apenas 150 anos após a 1.ª Carta de Paulo aos Coríntios, diz:

Da mesma forma, os próprios coríntios entenderam [Paulo]. Na verdade, atualmente os coríntios cobrem as suas virgens com véu. O que os apóstolos ensinaram, os seus discípulos aprovam.”.

Hipólito de Roma (170-236), dando instruções para as reuniões da Igreja, diz:

Todas as mulheres tenham as suas cabeças cobertas com um pano opaco. (...) A história da Igreja primitiva dá testemunho de que, em Roma, Antioquia e África, o costume [de usar o véu] se tornou a norma [para a Igreja].”.

Orígenes de Alexandria (c. 184 – c. 253) escreve:

Há anjos no meio da nossa assembleia... Temos aqui uma Igreja dupla, uma de homens, a outra de anjos... E, visto que há anjos presentes... as mulheres, quando rezam, recebem a ordem de cobrir a cabeça por causa daqueles anjos. Elas ajudam os santos e alegram-se na Igreja.”.

Na 2.ª metade do século III, mulheres a orar com a cabeça coberta com véu ou lenço são mencionadas como prática da Igreja por São Vitorino no comentário do Apocalipse.

Mais tarde, no século IV, São João Crisóstomo (347 – 407) declara:

“… o negócio de cobrir a cabeça foi legislado pela natureza (vd 1Cor 11,14-15). Quando digo ‘natureza’, quero dizer ‘Deus’. Pois ele é quem criou a natureza. Observe, portanto, que grande dano pode advir de derrubar esses limites! E não me diga que isso é um pequeno pecado.”.

São Jerónimo (347 – 420) observa que as cristãs usam gorro e véu de oração​​ no Egito e na Síria:

Não andem com a cabeça descoberta em desafio à ordem do apóstolo, mas usem uma touca, um lenço ou um véu”.

Santo Agostinho de Hipona (354 – 430) escreve sobre a cobertura da cabeça:

Não convém, mesmo nas mulheres casadas, descobrir os cabelos, visto que o apóstolo ordena às mulheres que mantenham a cabeça coberta”.

Além da conotação religiosa, o véu tem um fim utilitário de proteção e o de distinção social.

A arte cristã primitiva confirma que as mulheres usavam a cabeça coberta. E, até pelo menos ao século XVIII, a cobertura na cabeça, tanto em público como na frequência da igreja, era costumeira para mulheres cristãs nas culturas mediterrânea, europeia, do Oriente Médio e da África. Mulher que não usasse cabeça coberta era interpretada como prostituta ou adúltera. Na Europa, a lei estipulava que mulheres casadas descobrirem o cabelo em público era evidência de castigo por sua infidelidade.

Igrejas Católicas Orientais e Ortodoxas Orientais (vg: a Igreja Ortodoxa Russa) exigem que a mulher cubra a cabeça na igreja. Na Albânia, a mulher cristã usa véu branco, embora os olhos sejam visíveis; e, nos edifícios da sua igreja ortodoxa, as mulheres são separadas dos homens por divisórias de treliça durante o serviço religioso. As mulheres pertencentes à comunidade dos Velhos Crentes usam tapa-cabeças opacas; e as casadas usam gorro de tricô, o povoinik. Noutros casos, a escolha pode ser individual ou variar dentro do país ou jurisdição. Entre as ortodoxas orientais na Grécia, a prática de cobrir a cabeça na igreja diminuiu gradualmente no século XX. Nos EUA, o costume varia consoante a denominação e congregação. As católicas na Coreia do Sul ainda usam a cabeça coberta.

O clero ortodoxo oriental cobre a cabeça, às vezes, com véus no caso de monges ou celibatários, que são colocados e removidos em certos pontos dos serviços. Nas igrejas dos EUA, são usados ​​com menos frequência. As monjas ortodoxas orientais usam uma cobertura na cabeça chamada apostólnik, usada o tempo todo, que é a única parte do hábito monástico que as distingue dos monges ortodoxos orientais do sexo masculino. Na Europa Ocidental e na América do Norte, no início do século XX, mulheres de algumas denominações cristãs (anglicanas, batistas, católicas, luteranos, metodistas, presbiterianas) cobriam a cabeça durante os serviços religiosos.

Historicamente, as mulheres eram obrigadas a usar véu ao receber a Eucaristia após os Concílios de Autun e Angers. E, em 585, o Sínodo de Auxerre (França) declarou que as mulheres deviam usar cobertura na cabeça na Missa. O Sínodo de Roma, em 743, fez uma declaração canónica, mais tarde adotada pelo Papa Nicolau I em 866, para os serviços religiosos:

Uma mulher orando na igreja sem a cabeça coberta traz vergonha sobre a sua cabeça, de acordo com a palavra do apóstolo”.

Santo Tomás de Aquino (1225-1274) distinguiu:

O homem, que existe sob Deus, não deve ter uma cobertura para mostrar que está imediatamente sujeito a Deus, mas a mulher deve usar uma cobertura para mostrar que além de Deus ela está naturalmente sujeita a outro”.

O CIC (Codex Iuris Canonici), de 1917, exigia que as mulheres cobrissem a cabeças na igreja:

As mulheres, entretanto, devem ter a cabeça coberta e estar vestidas com recato, especialmente quando se aproximam da mesa do Senhor”: (Mulieres autem, capite cooperto et modest vestitae, maxime cum ad mensam Domincam accedunt, Codex Iuris Canonici, 1917, can. 1262).

A cobertura da cabeça para mulheres foi unanimemente mantida pela Igreja católica latina até à entrada em vigor do Codex Iuris Canonici (CIC) de 1983. O véu não foi abordado na revisão de 1983 do CIC, que declarou o CIC de 1917 revogado. Segundo o novo CIC, a lei anterior só tem peso interpretativo nas normas repetidas no CIC de 1983, tendo sido todas as outras revogadas e não havendo previsão de normas que não sejam repetidas no CIC de 1983:

A lei posterior ab-roga ou derroga a anterior, se expressamente o declara, se lhe é diretamente contrária, ou se reordena inteiramente toda a matéria da lei anterior; a lei universal, porém, de nenhum modo derroga o direito particular ou especial, salvo determinação expressa em contrário no direito” (CIC, 1983, can. 20). “O costume é o melhor intérprete da lei” (Ibid., can. 27). “Salva a prescrição do can. 5, o costume contra ou à margem da lei é revogado por um costume ou lei contrários; mas, se não fizer expressa menção deles, uma lei não revoga costumes centenários ou imemoriais, nem a lei universal, costumes particulares” (Ibid., can. 28).

Lutero incentiva as esposas a usar véu na adoração pública. As Rubricas Gerais da Conferência Sinódica Luterana Evangélica da América do Norte, contidas na “Liturgia Luterana”, declaram na secção “Capacete para Mulheres”:

É um costume louvável, baseado em uma injunção das Escrituras (1Cor 11,3-15), para que as mulheres usem uma cobertura adequada para a cabeça na Igreja, especialmente no momento do serviço divino”.

Calvino, fundador das Igrejas Reformadas, e  Knox, fundador da Igreja Presbiteriana, convocam as mulheres a cobrir a cabeça na adoração pública. E John Wesley, fundador do Metodismo, sustenta que a mulher, “sobretudo na assembleia religiosa”, deve “manter o véu”.

Em nações como a Europa Oriental e o subcontinente indiano, quase todas as cristãs cobrem a cabeça nos serviços religiosos. No Reino Unido, é comum as mulheres cobrirem a cabeça nos serviços religiosos formais, como casamentos na igreja. Na adoração, no mundo ocidental, muitas mulheres passaram a usar gorro, lenço, mantilha e chapéu, que têm também função utilitária, estética e social. Entretanto, na América do Norte e em lugares da Europa Ocidental, essas práticas começaram a declinar, com algumas exceções, incluindo cristãos que usam roupas simples, como quacres conservadores e muitos anabatistas (incluindo menonitas, huteritas, irmãos batistas alemães antigos, cristãos apostólicos e amish). As mulheres da Morávia usam uma cobertura de renda chamada haube na cabeça, especialmente quando servem como dieners.

Católicos tradicionalistas e cristãos que praticam a doutrina da santidade exterior cobrem a cabeça: além da Igreja Luterana Laestadiana, os Irmãos de Plymouth e as igrejas Presbiterianas Escocesas e Irlandesas e Reformadas Holandesas mais conservadoras. Mulheres crentes das Igrejas de Cristo e as Igrejas pentecostais, como a Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo da Fé Apostólica, a Missão Pentecostal, a Congregação Cristã e a Igreja dos Crentes impõem o véu às mulheres. Mulher Testemunha de Jeová só lidera a oração e o ensino quando homem batizado não está disponível, e fá-lo cobrindo a cabeça. Freiras das tradições católica romana, luterana e anglicana usam o véu como parte do seu hábito religioso.

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O Apóstolo introduz a mencionada passagem da 1.ª Carta aos Coríntios elogiando os cristãos por se lembrarem dos “ensinos” (“tradições” ou “ordenanças”) que lhes havia transmitido. Explica o uso cristão de cobertura ou não da cabeça pelos motivos de chefia, glória, anjos, comprimentos naturais de cabelo e a prática das igrejas. O que diz sobre esses temas induziu diferenças na interpretação dos comentaristas da Bíblia e nas assembleias cristãs. São Paulo fala da obrigação do véu e a sua argumentação relaciona a cobertura da cabeça da mulher com a glória, pois, a natureza ensina que, para o homem, é vergonhoso deixar o cabelo crescer, ao passo que, para a mulher, é honroso ter os cabelos compridos (cf vv. 14-15), mostrando que não se trata só de algo cultural, mas natural. É próprio do feminino a elegância, a busca da expressão da beleza interior pelo cuidado com a aparência. Assim, é tipicamente feminino o cuidado com os cabelos.

Diante disso, a mulher cobrir a cabeça no momento dar glória a Deus é esconder a sua própria reverenciando Aquele que merece toda a glória. Usar o véu em atenção aos anjos significa que está com eles a participar num culto de adoração a Deus. Todas as criaturas, homens, mulheres e anjos, se prostram diante de Deus para adorá-Lo e, nesse momento, todas devem esconder a sua glória e dar glória a Deus. Cobrindo a cabeça, a mulher realiza isso de forma ritual. Por isso, quando cobre a cabeça na igreja, simboliza a sua dignidade e humildade ante Deus. O véu cobre o que o Senhor chama de “glória da mulher”: o cabelo. Cobrir o cabelo é gesto da mulher para mostrar a Deus que reconhece que a sua beleza é menor que a d’ Ele e que a glória d’Ele está muito acima da sua, bem como para mostrar a sua vontade de se manter velada a fim de que só Deus seja glorificado e de O adorar no oratório interior do seu coração, a sua alma.

O véu confere à mulher um sentido de dignidade e beleza. Identifica-a com a maior criação de Deus, a Virgem Maria, Mãe de Deus. Na Liturgia, cobre-se delicadamente a dignidade dos seus diversos elementos: o véu frontal cobre o Sacrário, um véu cobre o cálice e o cibório, a toalha branca cobre o altar, a casula cobre o sacerdote que oferece o Sacrifício da Missa. Assim o véu cobre a mulher, chamada a ser, pela Sagrada Comunhão, como a Virgem Maria, Sacrário vivo do Corpo de Deus. A mulher contém em si, atributos (honra, fama e beleza) que saíram de Deus e nela estão como canal da graça para o homem, pois Ele assim quis ao criar o ser humano. A este respeito, escrevia o Cónego Constant Tonnellier:

A Beleza Suprema não podia senão criar a beleza. No cosmos tudo era equilíbrio e reflexo da Beleza criadora. Que olhares podiam descobrir o Belo? Os do homem e da mulher, criados a imagem de Deus, a quem Deus insuflou seu hálito de vida, capazes de se maravilharem um diante do outro, num face a face que conduz ao olhar criador que faz o outro existir. Eis a obra primordial de Deus, o seu primeiro olhar de amor: o homem elevado na beleza de Deus e, pelo homem, todas as criaturas, feitas para ele, e ele a ter parte comum com esse universo. Uma criação manando de mil graças.”.

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Afora, alguns protocolos civis e eclesiásticos, não é obrigatório o uso feminino do véu. Com efeito, a interpretação das disposições paulinas não pode ser desligada do contexto cultural, não podendo a ideia de secundarização e submissão (embora diferentes de sujeição) femininas ofuscar a ideia de igual dignidade fundamental preconizada pelo Apóstolo. Nem as ideias de recato, beleza e dignidade se vinculam ao véu, gorro, boné, bivaque, barrete, boina ou chapéu. Importa, antes, o culto em espírito e verdade.

Em todo o caso, é bom que não se percam as motivações que presidiram à prescrição da cobertura da cabeça. Por conseguinte, tal como o cardeal, o bispo, o abade e o presbítero usam o barrete em situação coral, o bispo e outros prelados usam o solidéu (judeus e muçulmanos usam objeto parecido), exceto diante do Santíssimo Sacramento, e o bispo usa a mitra em certos momentos da ação litúrgica, também a mulher, recebida a devida bênção sacerdotal, pode usar o véu ou o gorro como sacramental. Na verdade, como refere o Catecismo da Igreja Católica (n.º 1667), a Igreja instituiu os sacramentais como são sinais sagrados pelos quais, à imitação dos sacramentos, são significados efeitos espirituais que dispõem os fiéis a receber o efeito principal dos sacramentos e a santificar as diversas circunstâncias da vida.

Os sacramentos, instituídos por Cristo, conferem a graça santificante que apaga o pecado ou aumentam a graça que já se possui; os sacramentais, criados pela Igreja não conferem a graça em si, mas são vias que conduzem a ela. Assim, como crucifixo, água benta, medalha, terços, escapulário, imagem do Senhor, da Virgem e de santos são sacramentais, o véu também o será.

Não há regra sobre a cor, mas recomenda-se o branco (ou outra cor clara) para moças solteiras e preto (ou outra cor escura) para senhoras casadas ou viúvas. Não é contraindicado véu colorido, mas há de imperar bom senso evitando cor berrante, que chame demasiado a atenção.

Por fim, é de recordar que Paulo fez as susoditas advertências porque as assembleias coríntias estavam a funcionar mal (causando “mais prejuízo que proveito”). Fazendo o banquete de festança, esqueciam que tomavam o Corpo do Senhor e comiam e bebiam a própria condenação. Ora, segundo São Boaventura a Missa é a obra em que Deus coloca sob os nossos olhos todo o amor que nos tem, a síntese dos benefícios que Ele nos faz. Portanto, toda e atenção no essencial e que os acessórios constituam uma via de melhor acesso ao essencial e de seu testemunho!

2021.02.21 – Louro de Carvalho

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