No
passado domingo, dia 7 de fevereiro, o Dr. Marques Mendes, comentador político
da SIC, ao falar do plano de vacinação contra a covid, abordou os badalados
casos de ministração abusiva de vacinas nesta 1.ª fase em que estão
priorizados: profissionais
de saúde envolvidos na prestação de cuidados a doentes; profissionais das forças armadas, forças de segurança e serviços críticos; profissionais e residentes em ERPI (Estruturas Residenciais para
Pessoas Idosas) e
instituições similares;
profissionais e utentes da RNCCI (Rede
Nacional de Cuidados Continuados Integrados); pessoas de idade ≥50 anos, com pelo menos uma das seguintes patologias:
insuficiência cardíaca, doença coronária, insuficiência renal (Taxa de Filtração
Glomerular <60ml/min) e DPOC ou
doença respiratória crónica sob suporte ventilatório e/ou oxigenoterapia de
longa duração; e pessoas com 80 ou mais anos de idade.
Neste
sentido, distinguiu entre a eventual falta de regras claras sobre como proceder
em caso de ser necessário ministrar vacinas a pessoas que não estavam
convocadas, a fim de evitar desperdício, o que deve ser remediado de pronto, e
a prática oportunista pela via do chico-espertismo – devendo as estruturas
inspetivas e o Ministério Público tirar a limpo os factos, apurar as
responsabilidades e promover, se for o caso, a ação penal.
Também
abordou o caso da eventual priorização da vacinação de titulares de cargos
políticos, nomeadamente de titulares de órgãos de soberania, referindo a
exceção para alguns que estão mais expostos como o Primeiro-Ministro e a
Ministra da Saúde, convindo definir quais os que devem ter acesso imediato à
vacina para evitar que a generalização da exceção se torne escandalosa, sendo
que nem no Parlamento há consenso sobre esta matéria. E atirou: “Se os parlamentares não se entendem nesta
matéria, como hão de entender-se em muitas outras mais relevantes?”.
E, ainda, no
âmbito dos detentores de cargos políticos, afirmou que pessoalmente declina a
prerrogativa que eventualmente venham a atribuir-lhe como membro do Conselho de
Estado, reservando o seu acesso à vacina para quando o dos outros cidadãos do
mesmo grupo etário e sem comorbidades. Se concordo com esta sua postura cidadã
em relação à vacina, parece-me discutível o conjunto de razões invocadas.
Diz Marques
Mendes – e bem – que o Conselho de Estado não é um órgão de soberania; que é um
órgão consultivo; que só reúne de três em três meses.
Ora bem. Não
terá sido essa a intenção do comentador, mas as suas palavras parecem conotar
fraca valorização dum órgão de consulta, sobretudo de um órgão político de
consulta de um órgão de soberania unipessoal como é o Presidente da República e
cuja consulta é obrigatória nalguns casos e possível numa série indefinida de
outros.
É óbvio que,
por norma, ninguém, muito menos o decisor político ou o administrador, fica
vinculado à consulta a que procede, a menos que a lei ou os regulamentos o
estabeleçam de forma explícita e inequívoca. Porém, é temerário fazer-se
consulta, seja em que âmbito for, e proceder como não a tendo feito. E pior
ainda é fazer consulta de caráter técnico e orientar a resposta que há de ser
dada sob a forma de parecer. Ou, como se costuma dizer, quem paga manda; e, por
isso, consulta e paga para que aconselhem segundo a vontade do consulente.
Há, de
facto, muitas estruturas de consulta: desde o médico e do advogado a órgãos
colegiais como o Conselho de Finanças Públicas, a UTAO, o Conselho de Escolas,
o Conselho Nacional de Educação, o Conselho da Concertação Social, os Conselhos
Municipais de Educação, os Conselhos Municipais dos Transportes, os Conselhos
Consultivos de empresas, os Conselhos Consultivos de organizações, o Conselho
Consultivo da Procuradoria-Geral da República, etc. Também os tribunais
recorrem à consulta de peritos e assessores para que as decisões tenham suporte
científico e técnico, que seria temerário ignorar ou desvalorizar. E a própria Igreja
Católica tem os sues órgãos de consulta, por exemplo, conselhos pastorais,
conselhos de consultores do Bispo diocesano, conselhos de presbíteros e
sínodos, ressaltando, de entre estes, o Sínodo dos Bispos. E toda a gente sabe
do peso do Sínodo dos Bispos.
Tão
importantes são os conselhos consultivos na administração pública que o CPA (Código do
Procedimento Administrativo), aprovado
pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, estabelece, no seu art.º 30.º, que, “no silêncio da lei, é proibida a abstenção aos membros dos
órgãos consultivos e aos dos órgãos deliberativos, quando no exercício de
funções consultivas”.
***
Ao invés de alguns países em que o
Conselho de Estado tem poder legislativo e fiscalizador dos atos do Governo –
em Portugal teve poderes constituintes, legislativos e sancionadores dos atos
do Governo desde maio de 1974 a março de 1975, chegando mesmo a produzir leis
com força de lei constitucional (vg: Lei n.º 4/74, de 1 de julho; Lei n.º 5/74, de 12 de julho; Lei n.º 6/74, de 24 de julho; Lei n.º 7/74,
de 27 de julho; Lei n.º 8/74, 9 de setembro; Lei
Constitucional n.º 9/74, de 15 de outubro; Lei n.º 10/74, de 15 de novembro; Lei n.º 11/74, de 27 de novembro; …) – no atual ordenamento político-constitucional,
o Conselho de Estado não é um órgão de soberania, mas “é o órgão político de consulta
do Presidente da República” (CRP, art.º 141.º).
É “presidido pelo
Presidente da República e composto pelos seguintes membros: a) O Presidente da Assembleia
da República; b) O
Primeiro-Ministro; c) O
Presidente do Tribunal Constitucional; d)
O Provedor de Justiça; e)
Os presidentes dos governos regionais; f) Os antigos presidentes da República eleitos na vigência
da Constituição que não hajam sido destituídos do cargo; g) Cinco cidadãos designados pelo Presidente da República
pelo período correspondente à duração do seu mandato; h) Cinco cidadãos eleitos pela Assembleia da República, de
harmonia com o princípio da representação proporcional, pelo período
correspondente à duração da legislatura.” (CRP, art.º
142.º).
Os seus membros são empossados pelo Presidente da República (PR). Os membros previstos nas alíneas a) a e) do artigo 142.º
mantêm-se em funções enquanto exercerem os respetivos cargos, ao passo que os previstos
nas alíneas g) e h) do mesmo artigo se mantêm-se em funções até à posse dos que
os substituírem no exercício dos respetivos cargos (vd CRP, art.º 143.º). A CRP não o esclarece, mas pressupõe-se que os membros previstos
na alínea f) têm mandato vitalício, a menos que, nos termos do n.º 2 do art.º
7.º da Lei n.º 31/84, de 6 de setembro, que aprova o Estatuto dos Membros do
Conselho de Estado, o Conselho faça a declaração da impossibilidade física permanente
de exercício do mandato do membro em causa, a qual lhe faz cessar o mandato nos
termos do n.º 1 do mesmo artigo, tal como a morte.
Embora se trate de órgão
de consulta, as suas competências são relevantes, cabendo-lhe nos termos do
art.º 145.º da CRP: a) pronunciar-se sobre a dissolução da Assembleia da
República (AR) e das Assembleias Legislativas das
regiões autónomas; b) pronunciar-se sobre a demissão do Governo, no caso
previsto no n.º 2 do artigo 195.º (para
assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas); c) pronunciar-se
sobre a declaração da guerra e a feitura da paz; d) pronunciar-se sobre
os atos do PR interino referidos no artigo 139.º (marcação
de eleições; convocação extraordinária da AR; nomeação e exoneração do
Primeiro-Ministro; nomeação e exoneração do Presidente do Tribunal de Contas e
do Procurador Geral da República; nomeação das altas chefias militares; exercício
de comandante supremo das Forças Armadas; e nomeação de embaixadores e enviados
extraordinários, bem como acreditação de representantes diplomáticos
estrangeiros); e) pronunciar-se nos demais casos previstos na
Constituição e, em geral, aconselhar o Presidente da República no exercício das
suas funções, quando este lho solicitar.
Por seu turno, o
Regimento do Conselho de Estado, cuja elaboração compete, segundo o n.º 1 do
art.º 144.º da CRP, ao próprio Conselho, estabelece, no seu art.º 3.º, as competências
acima referidas, bem como as de: aprovar e modificar o seu Regimento, interpretar as
suas disposições e integrar as suas lacunas; e praticar os
atos previstos na Lei n.º 31/84, de 6 de setembro, e os que o são no Regimento.
E atribuía-lhe ainda a competência, já não aplicável, de se pronunciar sobre as
propostas de alteração ou substituição do estatuto do território de Macau.
Da importância do aconselhamento do Conselho de Estado
resulta que os seus pareceres são emitidos por escrito na reunião que para o efeito for
convocada pelo Presidente da República e tornados públicos quando da prática do
ato a que se referem, exceto os atinentes ao aconselhamento do PR no exercício das suas funções, quando este lho
solicitar (vd CRP, art.º 146.º; Regimento do Conselho de Estado, art.º 11.º e art.º 17.º).
Dizia Marques Mendes que a periodicidade das reuniões
é trimestral. Ora, nem a CRP (Constituição da República Portuguesa), nem o Estatuto, nem o Regimento definem qualquer
periodicidade. Apenas se refere que as reuniões não são públicas (CRP, art.º
141.º/1; Regimento, art.º 15.º/1), que a matéria
é sigilosa (Regimento, art.º 15.º/2), a menos
que o Presidente concorde com a elaboração duma nota para divulgação sucinta de
parte ou da totalidade do objeto da reunião e seus resultados (Regimento,
art.º 16.º).
No entanto, a relevância do órgão mede-se, não pela frequência
das reuniões, mas pela importância da matéria de que elas tratem. Além disso,
no limite, o Conselho de Estado poderá reunir todos os dias se o Presidente
tiver necessidade de ajuda de aconselhamento diário. A periodicidade trimestral
foi estabelecida pelo atual Presidente que lhe quis dar um funcionamento
regular para vincar a sua relevância, tal como lhe introduziu o eventual
convite a uma personalidade nacional ou estrangeira para tratar de assunto
relevante para o país.
Ademais, também estruturas como a instituição castrense,
o Ministério Público ou o Banco de Portugal não são órgãos de soberania e
ninguém de bom senso lhes subvaloriza a relevância.
Pode, enfim, Marques Mendes orgulhar-se de integrar um
órgão político de grande relevância. Aliás, pessoalmente nunca deixei de valorizar
em grande as instituições ou os órgãos em que servi. Para poucochinho basto eu.
Quanto à vacina, também a quero na minha vez…
2021.02.09 – Louro de Carvalho
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