quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

O confinamento é só uma das peças do estado de emergência

 

Na última reunião em que participou publicamente, o matemático Manuel Carmo Gomes, da equipa da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa que faz a modelação da situação epidemiológica do país, afirmou que a curva de transmissão começa a descer, uma vez que, “o país está com o pé na mola”, mas interroga-se sobre o que acontecerá depois de retirarmos o pé. Isto para defender que Portugal deve apostar numa política de testagem reforçada, devendo ser esta a principal arma que se deve usar contra a pandemia e não o confinamento.

Aliás, argumenta que, neste momento, os portugueses começam a dividir-se entre confinamento e não confinamento – situação que poderia ter sido atenuada se o Governo não tivesse optado por medidas de confinamento à noite, depois ao fim de semana, depois com escolas a funcionar…, ou seja, por medidas insuficientes, tardias e graduais. Para o cientista, as medidas deveriam ser tomadas logo que se verificasse a ultrapassagem das linhas vermelhas previamente definidas.

Entretanto, a Ministra da Saúde, em declarações aos jornalistas, anunciava que esta, a do dia 9, foi a última apresentação pública do matemático, mas relevou a sua continuidade de colaboração com a equipa de peritos, sendo que a decisão de não participar publicamente tem como razão “questões de agenda” do professor.

Diante do Presidente da República, membros do Governo, partidos e outras organizações, o matemático ilustrava a sua tese com uma imagem apresentada numa das primeiras reuniões do Infarmed, que mostra a importância da testagem. Assim, o vírus SARS-Cov-2, causador da covid-19, comporta-se como “uma mola em que é preciso usar uma mão ou um pé para manter a mola pressionada para baixo, caso contrário ela dispara”, aumentando exponencialmente, nesta situação, o número de casos. Neste momento, estarmos todos em casa significa que “estamos a pôr o pé na mola”, mas é preciso saber “como vamos sair deste confinamento sem deixar que a mola venha por aí acima outra vez e eventualmente agravada pela presença das variantes”.

A seu ver, a resposta é “uma estratégia de testagem”, que inclui “linhas vermelhas” que podem ser mudadas e ajustadas, mas que, se qualquer uma delas for ultrapassada, temos que responder em força preferencialmente com um grande aumento da testagem para evitar o confinamento”.

Essas linhas vermelhas são ter um ‘R’ (índice de transmissibilidade) que não ultrapasse 1,1 pelo menos durante demasiados dias. Por consequência, Portugal tem de ter uma percentagem de testes positivos abaixo dos 10%, sendo o ideal cerca de 5% de positividade. E observou:

O resultado que podemos ver na percentagem de testes positivos é que, enquanto em Portugal nós andamos sistematicamente atrás da incidência e, depois, tivemos esta subida após o Natal, a Dinamarca conseguiu manter a percentagem de testes positivos relativamente baixa devido a esta resposta”.

Para o professor, o objetivo é “muito simples: reduzir o número de casos muito depressa e não permitir que a curva epidémica suba”, ganhando tempo para “vacinar o maior número possível de pessoas o mais depressa possível”. A incidência não deve ultrapassar os 2.000 novos casos por dia, o que corresponderia aproximadamente a 1.500 pessoas hospitalizadas e cerca de 200 em cuidados intensivos.

Carmo Gomes ressalvou que a sua exposição é “uma reflexão” que deve ser feita à luz destes critérios que “são muito objetivos”, vincando que “devemos publicitá-los e agir decididamente quando uma destas linhas é ultrapassada”. Paralelamente, sustenta que “é preciso fazer um grande esforço para travar a importação das variantes, através de ações decisivas nos pontos de entrada e saída do país”, e aumentar a vigilância que o Instituto Ricardo Jorge tem vindo a conduzir. Para o académico, são necessárias “regras objetivas, conhecidas por todos com antecedência” acerca de quando é que se deve confinar e quando de se pode desconfinar. Com efeito, como referiu, “nós fomos sucessivamente adotando medidas de contingência, estado de emergência, medidas de confinamento, fins de semana, etc., e andamos permanentemente sem conseguir travar de forma definitiva o crescendo da epidemia”, começando a sociedade a “dividir-se” entre os quem acha as medidas excessivas e quem as considera escassas.

Questionada sobre se a saída de Carmo Gomes tem a ver com discordâncias em relação à estratégia de combate à pandemia adotada pelo Governo, a Ministra da Saúde declarou que “não serão essas as razões, pelo menos da parte do Governo, que colocam qualquer um dos nossos peritos ou mais presente ou nos bastidores durante algum tempo”.

Aliás, o próprio académico advertiu que não queria uma leitura política da sua intervenção, respeitando muito quem tem de tomar estas decisões tão difíceis e prontificando-se a estar presente nas reuniões se e quando o considerarem necessário. Ademais, é de registar que, se os decisores políticos têm dificuldade em agir na articulação entre as regras sanitárias e as exigências da economia, também os cientistas não são unânimes nem na perceção das evidências científicas nem no consenso em torno de uma plataforma de aconselhamento ao poder político. Lembro-me, por exemplo, da divergência entre o Conselho Nacional de Saúde Pública e os epidemiologistas sobre o encerramento das escolas em março de 2020.

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Tudo aponta para que, através de mais um decreto presidencial, seja renovado o estado de emergência para todo o território nacional, com a duração de 15 dias, iniciando-se às 00h00 do dia 15 de fevereiro de 2021 e cessando às 23h59 do dia 1 de março de 2021, sem prejuízo de eventuais renovações, nos termos da lei. Com efeito, o Presidente ouviu os partidos políticos e o Governo e a Assembleia da República já deu a autorização para o decreto presidencial cujo projeto Marcelo lhe enviara atempadamente.

A possibilidade de confinamento geral, no quadro das restrições à liberdade de deslocação, é apenas uma das peças. Há outras, como: a utilização dos recursos, meios e estabelecimentos de prestação de cuidados de saúde integrados nos setores privado, social e cooperativo; o encerramento total ou parcial de estabelecimentos, serviços, empresas ou meios de produção e a imposição de alterações ao respetivo regime ou horário de funcionamento; o controlo de preços e combate à especulação ou ao açambarcamento; a limitação das taxas de serviço e comissões cobradas, aos operadores económicos e aos consumidores, pelas plataformas intermediárias de entregas ao domicílio na venda de bens ou na prestação de serviços; a determinação de níveis de ruído mais reduzidos em decibéis ou em certos períodos horários, nos edifícios habitacionais, de modo a não perturbar os trabalhadores em teletrabalho; a mobilização de trabalhadores de entidades públicas, privadas, do setor social ou cooperativo para apoiar as autoridades e serviços de saúde, especificamente na realização de inquéritos epidemiológicos, no rastreio de contactos e no seguimento de pessoas em vigilância ativa; a adoção do teletrabalho, independentemente do vínculo laboral, sempre que as funções em causa o permitam e o trabalhador disponha de condições para as exercer; o recrutamento ou mobilização, para a prestação de cuidados de saúde, de quaisquer profissionais de saúde reformados, ou reservistas, ou que tenham obtido a sua qualificação no estrangeiro; a obrigatoriedade do uso de máscara ou viseira e da medida de temperatura corporal por meios não invasivos; a proibição ou limitação de aulas presenciais, o adiamento, alteração ou prolongamento de períodos letivos, o ajustamento de métodos de avaliação e a suspensão ou recalendarização de provas de exame; o controlo fronteiriço; o tratamento de dados pessoais, necessário para a concretização das medidas restritivas incluindo o acesso aos dados de saúde por parte dos profissionais de saúde e estudantes de medicina e enfermagem e pessoal mobilizado para a realização de inquéritos epidemiológicos, o rastreio de contactos e o seguimento de pessoas em vigilância ativa, bem como em caso de ensino não presencial e na medida do indispensável à realização das aprendizagens por meios telemáticos.

Assim, não se pode confundir estado de emergência com o confinamento geral, nem com o confinamento obrigatório em hospital, centro de apoio ou domicílio para infetados ou isolamento profilático para suspeitos por eventual contacto possibilitador de contágio.

O decreto presidencial introduz algumas novidades. Uma delas é a atinente ao ruído, que não sei como será controlada, e preenche a alínea f) do n.º 2 do art.º 4.º:  

Podem ser determinados níveis de ruído mais reduzidos em decibéis ou em certos períodos horários, nos edifícios habitacionais, de modo a não perturbar os trabalhadores em teletrabalho”.

 O decreto do Presidente da República também acaba com a proibição da venda de livros nos supermercados e outros estabelecimentos que tenham autorização para venda de produtos essenciais. Assim, na alínea c) do n.º 2 do art.º 4.º, fica estabelecido:

Podem ser estabelecidas limitações à venda de certos produtos nos estabelecimentos que continuem abertos, com exclusão designadamente de livros e materiais escolares, que devem continuar disponíveis para estudantes e cidadãos em geral”.

Outra novidade prende-se com o encerramento das escolas. Nos termos do n.º 5 do art.º 4.º, no quadro da “liberdade de aprender e ensinar”, apesar de ser possível o encerramento dos estabelecimentos de educação e ensino dos setores público, particular e cooperativo, social e solidário, fica estabelecido que “deverá ser definido um plano faseado de reabertura com base em critérios objetivos e respeitando os desígnios de saúde pública”.

Por outro lado, fica o Governo com a possibilidade de, no âmbito dos “direitos de emigrar ou de sair do território nacional e de regressar, e circulação internacional(n.º 6 do art.º 4.º), a par das normas sobre controlo de fronteiras, definir regras diferentes para estudantes internacionais. Ou seja, o Governo pode “estabelecer regras diferenciadas para certas categorias de cidadãos, designadamente por razões profissionais ou de ensino, como os estudantes Erasmus”.

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Veremos se as novas normas a plasmar em decreto do Governo que regulamenta o estado de emergência contribuirão para controlar a pandemia e afrouxar a tensão psicossocial que está a atingir os cidadãos no dilema entre a saúde pública e a economia.

Mas agir só em reação e dependendo de avaliação a fazer quinzenalmente é capaz de ser pouco, como é nefasto determinar recolher obrigatório numa parte do dia induzindo acumulação de pessoas noutra parte do mesmo dia.

Entendo a dificuldade de tomar decisões sem um suporte científico e social unânime, como entendo a frustração de quem, tendo estudado, aconselha e vê deitadas por água abaixo as suas sugestões. Porém, se é tempo de exigir aos decisores políticos mais tino e acerto, também é de pedir aos cientistas mais consenso no aconselhamento aos detentores do poder político, sendo menos oponentes e mais adjuvantes, sem serem seus acólitos ou serventuários.

2021.02.11 – Louro de Carvalho   

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