Na última reunião em que
participou publicamente, o matemático Manuel Carmo Gomes, da equipa da
Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa que faz a modelação da situação
epidemiológica do país, afirmou que a curva de transmissão começa a descer, uma
vez que, “o país está com o pé na mola”, mas interroga-se sobre o que acontecerá
depois de retirarmos o pé. Isto para defender que Portugal deve apostar numa
política de testagem reforçada, devendo ser esta a principal arma que se deve
usar contra a pandemia e não o confinamento.
Aliás, argumenta que, neste momento, os
portugueses começam a dividir-se entre confinamento e não confinamento – situação
que poderia ter sido atenuada se o Governo não tivesse optado por medidas de
confinamento à noite, depois ao fim de semana, depois com escolas a funcionar…,
ou seja, por medidas insuficientes, tardias e graduais. Para o cientista, as medidas
deveriam ser tomadas logo que se verificasse a ultrapassagem das linhas
vermelhas previamente definidas.
Entretanto, a Ministra da Saúde, em declarações aos jornalistas, anunciava
que esta, a do dia 9, foi a última apresentação pública do matemático, mas
relevou a sua continuidade de colaboração com a equipa de peritos, sendo que a
decisão de não participar publicamente tem como razão “questões de agenda” do professor.
Diante do Presidente da República, membros do Governo, partidos e outras
organizações, o matemático ilustrava a sua tese com uma imagem apresentada numa
das primeiras reuniões do Infarmed, que mostra a importância da testagem. Assim, o vírus SARS-Cov-2, causador da
covid-19, comporta-se como “uma mola em que é preciso usar uma mão ou um pé
para manter a mola pressionada para baixo, caso contrário ela dispara”, aumentando
exponencialmente, nesta situação, o número de casos. Neste momento, estarmos todos
em casa significa que “estamos a pôr o pé na mola”, mas é preciso saber “como
vamos sair deste confinamento sem deixar que a mola venha por aí acima outra
vez e eventualmente agravada pela presença das variantes”.
A seu ver, a resposta é “uma estratégia de testagem”, que inclui “linhas
vermelhas” que podem ser mudadas e ajustadas, mas que, se qualquer uma delas
for ultrapassada, temos que responder em força preferencialmente com um grande
aumento da testagem para evitar o confinamento”.
Essas linhas vermelhas são ter um ‘R’ (índice de transmissibilidade) que
não ultrapasse 1,1 pelo menos durante demasiados dias. Por consequência, Portugal
tem de ter uma percentagem de testes positivos abaixo dos 10%, sendo o ideal
cerca de 5% de positividade. E observou:
“O resultado que podemos ver na percentagem
de testes positivos é que, enquanto em Portugal nós andamos sistematicamente
atrás da incidência e, depois, tivemos esta subida após o Natal, a Dinamarca
conseguiu manter a percentagem de testes positivos relativamente baixa devido a
esta resposta”.
Para o professor, o objetivo é “muito simples:
reduzir o número de casos muito depressa e não permitir que a curva epidémica
suba”, ganhando tempo para “vacinar o maior número possível de pessoas o mais
depressa possível”. A incidência não deve ultrapassar os 2.000 novos casos por dia, o que
corresponderia aproximadamente a 1.500 pessoas hospitalizadas e cerca de 200 em
cuidados intensivos.
Carmo Gomes ressalvou que a sua exposição é “uma reflexão” que deve ser
feita à luz destes critérios que “são muito objetivos”, vincando que “devemos
publicitá-los e agir decididamente quando uma destas linhas é ultrapassada”. Paralelamente, sustenta que “é preciso fazer
um grande esforço para travar a importação das variantes, através de ações
decisivas nos pontos de entrada e saída do país”, e aumentar a vigilância que o
Instituto Ricardo Jorge tem vindo a conduzir. Para o académico, são necessárias
“regras objetivas, conhecidas por todos com antecedência” acerca de quando é
que se deve confinar e quando de se pode desconfinar. Com efeito, como referiu,
“nós fomos sucessivamente adotando medidas de contingência, estado de
emergência, medidas de confinamento, fins de semana, etc., e andamos
permanentemente sem conseguir travar de forma definitiva o crescendo da
epidemia”, começando a sociedade a “dividir-se” entre os quem acha as medidas excessivas
e quem as considera escassas.
Questionada sobre se a saída de Carmo Gomes tem a ver com discordâncias em
relação à estratégia de combate à pandemia adotada pelo Governo, a Ministra da Saúde
declarou que “não serão essas as razões, pelo menos da parte do Governo, que
colocam qualquer um dos nossos peritos ou mais presente ou nos bastidores
durante algum tempo”.
Aliás, o próprio académico advertiu que não queria uma leitura política da
sua intervenção, respeitando muito quem tem de tomar estas decisões tão
difíceis e prontificando-se a estar presente nas reuniões se e quando o
considerarem necessário. Ademais, é de registar que, se os decisores políticos
têm dificuldade em agir na articulação entre as regras sanitárias e as
exigências da economia, também os cientistas não são unânimes nem na perceção das
evidências científicas nem no consenso em torno de uma plataforma de aconselhamento
ao poder político. Lembro-me, por exemplo, da divergência entre o Conselho Nacional
de Saúde Pública e os epidemiologistas sobre o encerramento das escolas em
março de 2020.
***
Tudo aponta para que, através de mais um decreto presidencial, seja
renovado o estado de emergência para todo
o território nacional, com a duração de 15 dias, iniciando-se às 00h00 do dia
15 de fevereiro de 2021 e cessando às 23h59 do dia 1 de março de 2021, sem
prejuízo de eventuais renovações, nos termos da lei. Com efeito, o Presidente
ouviu os partidos políticos e o Governo e a Assembleia da República já deu a autorização
para o decreto presidencial cujo projeto Marcelo lhe enviara atempadamente.
A possibilidade
de confinamento geral, no quadro das restrições à liberdade de deslocação, é
apenas uma das peças. Há outras, como: a utilização dos recursos, meios e
estabelecimentos de prestação de cuidados de saúde integrados nos setores
privado, social e cooperativo; o encerramento total ou parcial de
estabelecimentos, serviços, empresas ou meios de produção e a imposição de
alterações ao respetivo regime ou horário de funcionamento; o controlo de
preços e combate à especulação ou ao açambarcamento; a limitação das taxas de serviço
e comissões cobradas, aos operadores económicos e aos consumidores, pelas
plataformas intermediárias de entregas ao domicílio na venda de bens ou na
prestação de serviços; a determinação de níveis de ruído mais reduzidos em
decibéis ou em certos períodos horários, nos edifícios habitacionais, de modo a
não perturbar os trabalhadores em teletrabalho; a mobilização de trabalhadores
de entidades públicas, privadas, do setor social ou cooperativo para apoiar as
autoridades e serviços de saúde, especificamente na realização de inquéritos
epidemiológicos, no rastreio de contactos e no seguimento de pessoas em
vigilância ativa; a adoção do teletrabalho, independentemente do vínculo
laboral, sempre que as funções em causa o permitam e o trabalhador disponha de
condições para as exercer; o recrutamento ou mobilização, para a prestação de
cuidados de saúde, de quaisquer profissionais de saúde reformados, ou
reservistas, ou que tenham obtido a sua qualificação no estrangeiro; a obrigatoriedade
do uso de máscara ou viseira e da medida de temperatura corporal por meios não
invasivos; a proibição ou limitação de aulas presenciais, o adiamento,
alteração ou prolongamento de períodos letivos, o ajustamento de métodos de
avaliação e a suspensão ou recalendarização de provas de exame; o controlo
fronteiriço; o tratamento de dados pessoais, necessário para a concretização das
medidas restritivas incluindo o acesso aos dados de saúde por parte dos profissionais
de saúde e estudantes de medicina e enfermagem e pessoal mobilizado para a
realização de inquéritos epidemiológicos, o rastreio de contactos e o seguimento
de pessoas em vigilância ativa, bem como em caso de ensino não presencial e na
medida do indispensável à realização das aprendizagens por meios telemáticos.
Assim,
não se pode confundir estado de emergência com o confinamento geral, nem com o confinamento
obrigatório em hospital, centro de apoio ou domicílio para infetados ou isolamento
profilático para suspeitos por eventual contacto possibilitador de contágio.
O decreto
presidencial introduz algumas novidades. Uma delas é a atinente ao ruído, que
não sei como será controlada, e preenche a alínea f) do n.º 2 do art.º 4.º:
“Podem ser determinados níveis de ruído mais reduzidos em decibéis ou em
certos períodos horários, nos edifícios habitacionais, de modo a não perturbar
os trabalhadores em teletrabalho”.
O decreto do Presidente da República também
acaba com a proibição da venda de livros nos supermercados e outros estabelecimentos
que tenham autorização para venda de produtos essenciais. Assim, na alínea c)
do n.º 2 do art.º 4.º, fica estabelecido:
“Podem ser estabelecidas limitações à venda de certos produtos nos
estabelecimentos que continuem abertos, com exclusão designadamente de livros e
materiais escolares, que devem continuar disponíveis para estudantes e cidadãos
em geral”.
Outra novidade prende-se com o encerramento das escolas. Nos termos do n.º
5 do art.º 4.º, no quadro da “liberdade
de aprender e ensinar”, apesar de ser possível o encerramento dos estabelecimentos
de educação e ensino dos setores público, particular e cooperativo, social e
solidário, fica estabelecido que “deverá ser definido um plano
faseado de reabertura com base em critérios objetivos e respeitando os
desígnios de saúde pública”.
Por outro lado, fica o Governo com a possibilidade de, no âmbito dos “direitos
de emigrar ou de sair do território nacional e de regressar, e circulação
internacional” (n.º
6 do art.º 4.º), a
par das normas sobre controlo de fronteiras, definir regras diferentes para estudantes
internacionais. Ou seja, o Governo pode “estabelecer
regras diferenciadas para certas categorias de cidadãos, designadamente por
razões profissionais ou de ensino, como os estudantes Erasmus”.
***
Veremos se as novas normas a plasmar em decreto do Governo que regulamenta o
estado de emergência contribuirão para controlar a pandemia e afrouxar a tensão
psicossocial que está a atingir os cidadãos no dilema entre a saúde pública e a
economia.
Mas agir só em reação e dependendo de avaliação a fazer quinzenalmente é capaz
de ser pouco, como é nefasto determinar recolher obrigatório numa parte do dia induzindo
acumulação de pessoas noutra parte do mesmo dia.
Entendo a dificuldade de tomar decisões sem um suporte científico e social
unânime, como entendo a frustração de quem, tendo estudado, aconselha e vê
deitadas por água abaixo as suas sugestões. Porém, se é tempo de exigir aos
decisores políticos mais tino e acerto, também é de pedir aos cientistas mais consenso
no aconselhamento aos detentores do poder político, sendo menos oponentes e
mais adjuvantes, sem serem seus acólitos ou serventuários.
2021.02.11 –
Louro de Carvalho
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