Manuel Cordeiro, presidente da Câmara Municipal de São João da Pesqueira,
agendou para o próximo dia 27, pela manhã, no Museu do Vinho, um encontro de
emergência dos 17 autarcas independentes, estando já garantida a presença de
Rui Moreira (Porto) e de Isaltino
Morais (Oeiras) e podendo participar os outros por videoconferência,
com vista a debelar os óbices criados pelas recentes alterações à lei eleitoral
autárquica e concertar uma estratégia comum para driblar o PS e PSD, caso estes
partidos não recuem na Assembleia da República (AR).
O encontro cujo anfitrião é o eleito em 2017 pelo movimento ‘Pela Nossa Terra’ juntará os 17 autarcas eleitos por Grupos de
Cidadão Eleitores (GCE) e o líder da AMAI (Associação Nacional de Movimentos
Autárquicos Independentes), Aurélio
Ferreira.
Manuel Cordeiro, a cumprir o seu primeiro mandato, após ter falhado a
eleição em 2013, e que conta ir de novo a votos no final do ano com o mesmo
lema, dizia ao Expresso que ainda não sabia quantos irão estar
presentes, mas que participará por Zoom quem não se puder deslocar.
Todos estão interessados em discutir as
novas regras de candidatura às próximas autárquicas, tida como “um
atropelo constitucional” e uma
tentativa de “cortar as pernas” aos independentes. Consideram estarem em
causa os obstáculos criados pelas recentes alterações à lei eleitoral autárquica sob proposta
pelo PSD na primavera de 2020 e aprovada pelo ‘centrão’ no pino do verão, que
inibem as candidaturas de partirem para o terreno nas autárquicas deste ano com
o mesmo nome, sigla e símbolo a todos os órgãos autárquicos de um mesmo
concelho, o que que, segundo afirmam, “fragiliza
os GCE em benefício das candidaturas partidárias”.
Com efeito, enquanto os partidos concorrem à câmara municipal (CM), à assembleia municipal (AM) e às assembleias de freguesia (AF) com as cores, símbolos e siglas de sempre, um GCE
terá de se candidatar com uma denominação, sigla e símbolo comum à CM, à AM e denominações,
siglas e símbolos diferentes a cada uma das AF. Ora, ter de encontrar, por
hipótese, uma dezena ou uma dúzia de alternativas é demais e discriminatório. E
a questão da recolha de assinaturas em listas separadas a todos os órgãos, além
de pesada e discriminatória, é vista como “um
constrangimento suplementar em tempo de confinamento” e um “um risco
sanitário”.
Além de debater estas questões, o líder da AMAI e o autarca de São João da
Pesqueira admitem que seja analisada a desproporção
de enquadramento fiscal entre partidos e GCE, que “têm os custos de campanha
onerados em 23% de IVA”. Após terem reunido por Zoom no início de
fevereiro, agora trata-se de concertar
posições, sendo um dos pontos comuns da agenda a reversão da legislação
autárquica recente, alteração que Manuel Cordeiro diz ter sido introduzida com
o argumento do PSD de clarificação, mas cujo resultado é o inverso.
Outro dos agravos burocráticos é o de o
juiz dos tribunais cíveis de comarcas terem de pedir a autentificação notarial
de pelo menos uma amostra das assinaturas das listas de proponentes,
quando até agora podiam pedir a autentificação de algumas. E, tendo o
presidente da AMAI questionado a CME (Comissão Nacional de Eleições) sobre quantas assinaturas serão consideradas como
amostra, foi-lhe respondido que não há mínimo nem máximo, podendo até o juiz pedir a autentificação notarial
de todas, o que lhe parece absurdo, dado o prazo de 72 horas que os
tribunais têm para avalizar milhares de
assinaturas.
Embora guarde prudência quanto à via a seguir, Cordeiro advoga que a
solução, se os partidos não reverterem a lei, leve à criação dum partido de âmbito nacional
de ideologia municipalista.
O autarca de São João da Pesqueira diz que é algo a evitar “por subverter o
sentido que levou à nossa participação política através de movimentos de
cidadania, sem bandeira partidária”, pelo que solicita aos partidos que “não obriguem os GCE a terem de deitar
mão a este recurso de conveniência”. E Aurélio Ferreira, que também
prefere que os independentes “sigam
em frente sem recurso a um partido barriga de aluguer”, deixa o aviso:
“Podem contar com todo o apoio da AMAI, se
os partidos continuarem a olhar para os independentes como alvos a abater”.
Por sua vez, Rui Moreira
também não descarta recandidatar-se à Câmara Municipal do Porto por um novo
partido político, “se necessário for”. E a associação ‘Porto, o Nosso
Movimento’ louvou o envio, por parte da Provedora de Justiça para o
Tribunal Constitucional, do pedido de fiscalização de constitucionalidade das
alterações à Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais, aprovadas pelo PSD
e PS. Maria Lúcia Amaral, com base nos artigos
48.º, n.º 1, e 239, n.º 4, da CRP, considerou
que algumas das alterações representam uma “violação dos direitos dos cidadãos
de tomar parte na vida política e na direção dos assuntos públicos do país”,
direito previsto na Constituição (CRP). Os autarcas independentes e o líder da AMAI, que entendiam que tais
alterações violam claramente o art.º 113.º, n.º 3 b), da CRP e o art.º 40.º da
lei eleitoral para as eleições autárquicas, no âmbito da igualdade de
oportunidades (o que, a meu ver, não colhe pelas
razões que aduzi em tempos), agora subscrevem
a argumentação da Provedora, sublinhando que o legislador “não pode restringir
um direito fundamental de participação política”.
Para a associação cívica afeta a Rui Moreira, o agravamento das
desigualdades de tratamento entre partidos e GCE servirá
“para fomentar o fenómeno de constituição, não necessariamente desejada, de
partidos políticos”, por esta se revelar “a
única solução viável” para a apresentação de candidaturas
simultâneas a todos os órgãos autárquicos.
Aduzindo os independentes que “os partidos
são o sal da democracia”, avisam que “o excesso de sal não faz bem a ninguém”.
Porém, Rui Moreira como Manuel Cordeiro deviam saber que não é possível, no
ordenamento jurídico-constitucional português, a existência de partidos de
âmbito regional, muito menos de âmbito municipalista. Efetivamente, a CRP no
seu art.º 51.º, n.º 4, estabelece:
“Não
podem constituir-se partidos que, pela sua designação ou pelos seus objetivos
programáticos, tenham índole ou âmbito regional”.
Por seu turno, o art.º 9.º da Lei dos Partidos Políticos (Lei
Orgânica n.º 2/2003, de 22 de agosto, cuja última alteração lhe foi introduzida
pela Lei Orgânica n.º 1/2018, de 19 de abril) estabelece o “caráter nacional” dos partidos
políticos transcrevendo o mencionado preceito constitucional.
Do caderno de reivindicações do ‘Porto,
o Nosso Movimento’ constam a possibilidade de recolher assinaturas “digitalmente” devido à crise
pandémica e denominação, sigla e símbolo comuns das candidaturas
independentes no mesmo concelho. E os independentes advertem os deputados que,
“se, finalmente, vão reverter a Lei, então façam-no no cumprimento cabal do
espírito da Revisão Constitucional de 1997, chamando os cidadãos à participação
política e incentivando-os ao exercício da cidadania”.
***
Hugo Carneiro, deputado do PSD, acusa expressamente Rui Moreira de tentar “abandalhar” as
regras da próxima corrida autárquica, ao tentar fazer passar o GCE como um
movimento único qual partido regional, proibido pela Constituição. E diz que a
AR pode melhorar as leis, mas, tal como Rui Rio, não se compromete já com
correções à lei para as eleições autárquicas.
Refere ao Expresso que a lei continha uma inelegibilidade especial relacionada
com candidatos a autarquias com negócios com esta, mas com pouca aplicação
prática, por ser pouco clara e ser insuficiente para salvaguardar o interesse
público. A tal norma sucedeu uma inelegibilidade que abrange “os membros dos
corpos sociais, os gerentes e os sócios de indústria ou de capital de
sociedades comerciais ou civis, bem como os profissionais liberais em prática
isolados ou em sociedade irregular que prestem serviços ou tenham contrato com
a autarquia não integralmente cumpridos ou de execução continuada, salvo se os
mesmos cessarem até ao momento da entrega da candidatura” (vd atual art.º
7.º/2 c). Abrange,
pois, uma multiplicidade de situações que não estavam previstas, estabelece-as
de modo claro e estipula que têm obrigatoriamente de cessar até ao momento da
propositura da candidatura de uma ou mais pessoas por ela abrangidas.
Não se inibindo o direito à candidatura, impõe-se a separação entre o momento
antes e depois da candidatura, em nome do interesse público e da eliminação de
conflitos de interesses.
Por outro lado, como a Constituição e a lei separam
claramente e regulam diferentemente os partidos p e as coligações de
partidos políticos dos GCE, o deputado anota que os partidos políticos ou as
coligações obedecem a registos legais, desde logo no Tribunal Constitucional (TC), ao qual incumbe o registo dos GCE. E, porque os
partidos e as coligações têm consagração constitucional, são fiscalizados pelo
TC e pela Entidade das Contas e Financiamentos Políticas, estando sujeitos a
escrutínio público e perenidade diferentes dos GCE, que emergem, segundo o
deputado, “como forma de participação dos eleitores na gestão dos interesses
locais das suas comunidades, fixando a lei certos requisitos para que essas comunidades
sejam identificadas” (v. g: recenseamento dos seus proponentes). E isso não foi alterado em 2020, não havendo tratamento desigual, mas o tratamento
diferenciado das situações em razão das suas especificidades, uma cambiante do
princípio constitucional da igualdade.
Hugo Carneiro responde à dificuldade de os
eleitores identificarem no boletim de voto os GCE por concorrerem com designações
diferentes por cada AF:
“À luz da lei eleitoral, os GCE podem fazer
constar no boletim de voto também o nome do primeiro candidato a essa
autarquia, ao contrário dos partidos ou das coligações de partidos”.
E explora aspetos do tratamento diferente em conformidade com as respetivas
especificidades, mas reconhecendo a diversidade de vias para a participação
democrática dos cidadãos em geral. Assim os GCE podem ter lucro de campanha,
não sujeito a escrutínio ou fiscalização após a entrega das contas de campanha
e terminada a eleição, ao passo que os partidos e coligações não podem ter
lucro de campanha. Considerando que os partidos apostam na gestão e promoção de
interesses gerais/coletivos ou locais e que os GCE apostam na gestão e promoção
dos interesses das suas comunidades locais, o deputado não vê “preferência por uns ou por outros, na
oferta de caminhos para a participação dos cidadãos, mas formas diferentes a
que cada um se pode ajustar consoante as suas preferências, convicções ou
ideologias”. Porém adverte que um GCE é autónomo, pois a
Constituição e a lei não reconhecem o conceito de movimento, por similar a partido
político local, constituído contra legem e
sem qualquer escrutínio/fiscalização publico.
Todavia, Hugo Carneiro
entende que a lei tem suficiente maleabilidade em relação aos GCE, dando-lhes várias soluções, consoante a opção de cada um. Não
podem ter denominação apenas constituída pelo nome duma pessoa singular, mas
podem associar o nome e expressões ou slogans. Assim, o nome ou abreviatura do
nome do 1.º candidato a uma autarquia pode constar na denominação do GCE a que
pertence, mas não pode um GCE fazer constar o nome de alguém que não é
candidato desse GCE. Só não será assim se os proponentes do GCE
candidato à CM e o GCE candidato à AM tiverem os mesmos proponentes, porque se
vê que se trata do mesmo GCE e o ente público em causa é o mesmo, o município.
Aí, os GCE podem optar por denominações diferentes, semelhantes ou iguais ou
denominações que contenham também parte do nome duma pessoa singular até ao
limite de seis palavras.
E o deputado acusa o autarca
do Porto de, ao confundir GCE como se tratasse de um só sob a égide de um
“movimento”, pretender a constituição contra legem de um
partido político. Ora, a lei já
exigia, antes de 2020, que os proponentes têm de ser recenseados na área da
autarquia a que se candidatam. Se alguns cidadãos são recenseados numa
freguesia, não o são noutra. Assim, a constituição de dois GCE dá para concluir
que são distintos, pelo que não se podem apresentar como se fossem um só. E o
art.º 239.º, n.º 4, da CRP estabelece:
“As candidaturas para as eleições dos órgãos
das autarquias locais podem ser apresentadas por partidos políticos,
isoladamente ou em coligação, ou por grupos de cidadãos eleitores, nos termos
da lei”.
Daí resulta que a CRP não admite
coligação de GCE, mas só de partidos. Ora, no dizer do deputado, é abandalhamento
misturar conceitos e utilizar argumentos sem cobertura legal.
Também o deputado aponta a
Moreira a confusão no espaço público sobre as regras formais para as
candidaturas de GCE, pois
refere que precisa de 7000 assinaturas para se candidatar à CM, quando o número
é variável e tem como limite para as CM do Porto e Lisboa 4000 assinaturas.
Além disso, não há nenhuma exigência de reconhecimento notarial de assinaturas,
o que até é expressamente proibido por lei (vd art.º 10.º). E o deputado interroga-se sobre o que leva a
inventar no debate público regras que não existem e chama a atenção para um
ponto relevante:
“A democracia coloca ao dispor dos seus
cidadãos inúmeros instrumentos de participação: constituição de partidos ou
coligações, os GCE, os referendos, as petições, a participação nas Assembleias
Municipais ou de Freguesia em certos pontos das ordens de trabalho, etc.”.
Por fim, considera legítima a
decisão da Provedora de Justiça de requerer a fiscalização da
constitucionalidade da lei – está dentro dos sues poderes –, mas adverte que é ao
TC que incumbe avaliar a inconstitucionalidade ou não da nova lei eleitoral e
que a AR continua a ser autónoma em relação às iniciativas da provedora, ou
seja, “mantém os seus poderes
constitucionais em matéria de produção de leis”. Por isso, “pode fazer novas
leis, alterar as existentes ou revogar outras anteriores”. E tanto a Provedora
de Justiça, como o TC e a AR estão na rota dos seus poderes constitucionais, com
plena autonomia e, no caso dos dois órgãos de soberania, com independência, não
se condicionando mutuamente.
Porque é genuíno e límpido o esclarecimento de Hugo Carneiro, segui-o nas
suas linhas essenciais, mostrando quanta demagogia perpassa por alguma da
propalada independência, embora não deixe de pensar que algumas alterações à
lei devem ser revertidas, como o demonstrei noutra ocasião.
Em suma, um só GCE
candidatando-se a todos os municípios e freguesias de uma região, ou ao
município e freguesias de um concelho, seria um partido regional ou concelhio
informal, o que a CRP e a lei não admitem. Admitir a sua formação
levaria à não sujeição ao escrutínio a que estão sujeitos os partidos legalmente
registados no TC. E, a par de qualquer lei em vigor, a AR pode sempre melhorar
as leis existentes, inclusivamente esta lei eleitoral dos órgãos autárquicos.
Trabalhe-se mais pelas populações e discutam-se menos as zangas de
comadres!
2021.02.24 –
Louro de Carvalho
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