Na sequência
da publicação do Decreto do Presidente da República n.º 11-A/2021, de 11 de fevereiro, que
renova a declaração do estado de emergência, com fundamento na
verificação de uma situação de calamidade pública, iniciando-se às 00h00 de 15
de fevereiro e cessando às 23h59 de 1 de março, sem prejuízo de eventuais
renovações, nos termos da lei, o Conselho de
Ministros, segundo o respetivo comunicado, aprovou o
decreto que regulamenta o estado de emergência decretado pelo Presidente da
República, mantendo as regras atualmente vigentes, com exceção da
permissão da venda, nos estabelecimentos de comércio a retalho que se
encontrem já em funcionamento, de livros e materiais escolares.
O decreto presidencial, que visa
permitir medidas de contenção da covid-19, teve os votos favoráveis de PS, PSD,
CDS-PP, PAN e da deputada não inscrita Cristina Rodrigues, a abstenção do Bloco
de Esquerda e os votos contra do PCP, PEV, Chega, Iniciativa Liberal e da
deputada não inscrita Joacine Katar Moreira.
O projeto introduz algumas alterações
face ao que está atualmente em vigor, prevendo que seja definido um plano
faseado de reabertura das aulas presenciais, incluindo uma ressalva a permitir
a venda de livros e materiais escolares, que o Governo acolheu, e admitindo
limites ao ruído em certos horários nos edifícios habitacionais para não perturbar
quem está em teletrabalho, que o Governo parece não ter atendido por motivos de
dificuldade prática resistindo por enquanto à pressão dos ecologistas.
Entretanto, o Presidente da República falou ao país sobre a
perspetiva do prolongamento do estado de emergência por mais tempo do que o
esperado, embora com um enfraquecimento progressivo das restrições, escudado
nas razões que levaram a esta renovação, ou seja, um significativo decréscimo
dos números de infetados, internados e falecidos, mas ainda sem a suficiência
que permita dizer que o SNS não esteja congestionado e pouco focado noutras
comorbidades e que permita dizer que se atingiram os níveis aceitáveis de
contenção.
Por sua vez, o Primeiro-Ministro, pelo menos aparentemente
mais pessimista que o Presidente, avisou que não haveria afrouxamento das
medidas restritivas por ocasião da Páscoa. E pediu à comunidade científica um esforço com vista a consenso alargado em
torno de metas objetivas no plano epidemiológico, adiantando que o processo de
desconfinamento no país será gradual.
Este desafio
foi deixado aos cientistas por António Costa em conferência de imprensa, no
Palácio Nacional da Ajuda, depois de o Conselho de Ministros ter aprovado o
conjunto de medidas enquadradas pelo decreto presidencial que renovou o estado
de emergência em todo o território nacional até 1 de março – aprovado por ampla
maioria no Parlamento. E, questionado sobre os indicadores que servirão de base
ao Governo para iniciar, a prazo, o processo de desconfinamento, respondeu que
o Governo “segue critérios que têm a ver com a evolução da pandemia, de capacidade
de resposta do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e com o risco de contaminação existente” e declarou que, “na última reunião do Infarmed, um
dos cientistas propôs três marcas fundamentais que deveriam servir como linha
vermelha para se decretar confinamento e não linhas verdes para lhe pôr fim”,
pelo que pediu “aos nossos cientistas um esforço de consensualização científica
sobre aquilo que devem ser os níveis relativamente aos quais as medidas devem
ser adotadas” – o que alguns cientistas já vieram contestar em artigos e
entrevistas, dando a entender uma certa intocabilidade da “ciência” e o zelo
contra a sua eventual instrumentalização política, o que me parece estar bem
longe das intenções e das palavras do decisor político.
Tanto
assim é que, segundo o Chefe do Governo, a ciência “é naturalmente um espaço de
debate e de opiniões diversas e numa democracia não há uma verdade científica
oficial”, mas haveria conforto para todos “se o consenso científico pudesse ser
mais consolidado e mais alargado”, pois, as opiniões diversas, que são
naturais, transpostas para debate científico no domínio público geram muitas
vezes confusão nas pessoas, que ficam sem saber bem qual a verdade por que se
devem pautar. Tão só isso! E Costa explicitou que o decisor político “deve
seguir o melhor conhecimento científico disponível” antes de decidir,
conhecimento que “deve ser tão consensual entre os pares quanto aquilo que seja
possível”.
***
Todavia, há
quem denuncie a incoerência do discurso lembrando que o chefe do Governo já
assumiu várias “decisões políticas” não fundadas em sólido consenso
científico.
Assim, o pneumologista
Filipe Froes, coordenador do gabinete de crise para a covid-19 da Ordem dos
Médicos, diz que o apelo é no mínimo desadequado e que não se percebe porque, passado
um ano de pandemia, não se constituiu uma comissão científica permanente para
monitorizar em tempo real e útil as decisões tomadas, a sua monitorização no
terreno e a sua correção se necessário, pois não se pode querer a ciência
quando dá jeito e desprezá-la quando não o dá, sendo que, em seu entender, as
reuniões de especialistas no Infarmed não substituem o trabalho dum conselho
científico com especialistas de várias áreas, como há noutros países.
É certo que
os governos hesitam perante as incertezas e as oposições pouco têm a
acrescentar. Porém, o Primeiro-Ministro tomou assumidamente a “decisão
política” de manter as escolas abertas sem que existisse consenso sobre a
matéria, havendo estudos e especialistas que induziam o fecho das escolas e
outros que concluíam que tais locais não são especialmente perigosos, o que nem
é tão contraditório como pode parecer. E Froes lembra que a decisão do
primoministerial foi tomada com base num dado concreto: a conclusão de que se
desconhecia a origem de 87% dos contágios. Ora, se apenas se conseguia contar a
história de 13% dos casos, é de questionar como se afirmava que as escolas não
eram um problema.
Por outro
lado, apelar à consensualização dos cientistas parece tentar a autodesresponsabilização
por decisões que deviam ter tido um nível diferente de fundamentação. E o
especialista conclui que “pandemia significa decidir e liderar na incerteza”.
Por isso, para ter mais hipóteses de sucesso nessa tarefa, é necessária a
“capacidade de monitorização” das decisões em tempo útil e a “capacidade de
corrigir as decisões de uma forma ativa”.
O apelo de
Costa surge depois de os especialistas apresentarem algumas “metas” a atingir
antes de pensar em desconfinar e que o líder do maior partido da oposição quer
que o Governo diga. De facto, Carmo Gomes defendeu como arma fundamental a
testagem em vez do confinamento.
A covid-19
expôs de forma exuberante a dificuldade da gestão do risco baseada na
incerteza, o que não é inédito. Por exemplo, as alterações climáticas já
colocaram esse desafio implicando decisões sobre um futuro que se desconhece e
previsível só com limitações e margens de erro. Só que, no caso da pandemia, um
governo não pode estar à espera de ter toda a informação para tomar decisões.
Enquanto o conhecimento e a confiança são frágeis e levam décadas a construir,
o poder político tem de tomar decisões sem a informação toda, como lembrava
Alexandre Quintanilha em junho de 2020.
A questão
que reúne mais consenso entre os cientistas será a conclusão de que tomar
decisões na incerteza não é fácil, mas os decisores políticos não podem
furtar-se a tal responsabilidade, cabendo-lhes a eles fazer a gestão do risco
com a incerteza. Ora, como o consenso científico, não raro, pode ser o “não
sabemos”, pois a ciência é feita da procura de respostas e faz-se com e por causa
do que não sabemos, a política, que urge, sente-se incómoda com o “não sei”.
É certo que, nesta pandemia, o
conhecimento está a andar a um ritmo estonteante (veja-se o caso das vacinas), mas o “consenso científico” é, provisório, mudando à
medida que surgem novos dados, o que é um desafio para os decisores políticos
que tentam fixar medidas de saúde pública e fornecer orientações claras e
consistentes aos cidadãos.
Políticos e
peritos tendem a abster-se de comunicar a incerteza científica, temendo que
isso gere desconfiança, mas apresentar como certos incertos aspetos da pandemia
tem efeitos negativos na confiança dos cidadãos se tais dados se revelarem incorretos
mais tarde, o que tem sucedido.
Por outro lado, a incerteza
científica induz o risco de politização, risco ampliado na pandemia. Por isso, é
fundamental uma comunicação científica cuidadosa para manter o apoio público às
políticas baseadas na ciência à medida que o consenso científico se altera, sendo
que alguns modelos ou descobertas serão inevitavelmente anulados ou corrigidos.
Não
obstante, por maiores que sejam os problemas e dificuldades, a relação entre
cientistas e políticos, apesar de complexa, nunca foi tão próxima como agora
com a covid-19. Mesmo assim, se em política admitir um erro pode ser fraqueza,
em ciência errar e substituir velhas teorias e hipóteses por outras novas e
mais precisas faz parte do processo. Mudar de abordagem pode ser fraqueza na
política, mas é a força do método científico.
***
Mais duras são
outras críticas às reuniões do Infarmed, que reúnem peritos de várias
áreas, o Presidente da República, o Primeiro-Ministro, partidos e outros
representantes da sociedade e da economia, para avaliar a evolução da pandemia
no país. Assim, por exemplo, o cientista Carlos Fiolhais, numa conversa com
Francisco José Viegas, numa iniciativa da Editora Quetzal, disse que tais
“reuniões eram um simulacro”. E disse ao DN
que, salvaguardando que nessas reuniões estão presentes cientistas com valor,
mas que não podem ser consideradas uma audição à ciência, sustentou que “a
ciência não é o que diz um cientista”, mas “um processo” e que “a sua força
está no facto de se trabalhar em conjunto e continuamente até se alcançarem as
perguntas que estão mais adequadas ao que podemos chamar verdade”.
E, neste sentido, o físico e professor da Universidade
de Coimbra critica o Governo, quando diz que “os cientistas têm de se entender”
ou que “os cientistas não se entendem”, dando a entender que os políticos “não
estão a perceber o que é a ciência”. Por isso, em seu modo de ver, “o Primeiro-Ministro
não pode agora pedir aos cientistas consenso, quando a ciência nunca foi ouvida
de forma organizada e coerente, no combate à pandemia”.
Carlos Fiolhais aduz que “se queremos apurar a opinião da ciência, num assunto
interdisciplinar, como é o combate à pandemia, que tem várias dimensões, desde
a infeciologia, à bioquímica, à epidemiologia, à prática médica, há que criar
um conselho científico, onde todas estas pessoas estejam presentes e possam
dialogar entre elas para chegarem a um consenso do que há fazer, do que é certo
ou do que é errado, para se fazer melhor a seguir”. E dá como
exemplo países, como os EUA, onde “o professor Anthony Faucci é o porta-voz da
ciência”, pois “é presidente de uma organização científica e tem a confiança
dos seus pares para falar sobre a matéria”, sublinhando que é precisamente este
diálogo entre pares que não existe em Portugal. Assim, entende que o Governo
não pode agora pedir aos cientistas que definam critérios ou que alcancem o
consenso científico quando nunca criou um organismo ou conselho científico,
onde os cientistas pudessem dialogar. Com efeito, para este professor, “o
consenso científico surge do trabalho em conjunto e contínuo” e um cientista,
quando fala em nome de um grupo, tem de incorporar no discurso “as apreciações
feitas pelos seus pares, a apreciação geral das coisas do que é o raciocínio, a
base do conhecimento do que é método científico, não são só o que é a sua
perceção”.
Note-se que, antes e além da voz de Fiolhais, surgiram outras vozes de
relevo como a do médico e professor catedrático jubilado, Constantino
Sakellarides, que defendeu a mesma perspetiva em artigo publicado recentemente
no DN, defendendo que não se poder
usar a ciência em vão, ou a do diretor da Faculdade de Medicina da Universidade
de Coimbra, Carlos Robalo Cordeiro, que em entrevista ao DN disse que “a audição individual de cientistas não é a ciência
falar”.
***
A par da
inação dos diversos e sucessivos governos em criarem ou não um conselho
científico a nível nacional, quando há estruturas de investigação científica (universidades
e centros de estudos), é de
questionar como, surgindo tantas associações, sociedades e agremiações, os
cientistas portugueses não tomaram a iniciativa de se constituírem em
associação, clube, grémio ou organização similar, com a exigência de serem
ouvido regularmente e, sobretudo em situações de emergência. Depois, é preciso
especificar de que ciência se está a falar. Provavelmente, cada um fala da sua
ciência ou do seu conceito de ciência. Parece que História, Economia,
Sociologia, Psicologia não são ciência para muitos. Quando os políticos ouvem
os cientistas no Infarmed não estão mesmo a ouvir ciência? Se esta se constrói
no processo de descoberta, como podem querer que ela fale publicamente a uma só
voz e não aceitam que se peça um certo consenso que sirva de base à tomada de
decisões? Ora, até é da discrepância entre cientistas e sua ultrapassagem que
resultam, tantas vezes, novas descobertas. Por outro lado, é verdade que nem em
ciência política os politólogos se entendem…
Sei do
desconforto de alguns não serem ouvidos e da frustração de muitos darem a sua
opinião e verem que ela é sistematicamente posta de parte, mas também sei da
dificuldade em tomar decisões no meio de incertezas e sei que, apesar de tudo,
as ciências podem constituir, aqui e agora, uma base sustentável de decisão
política. E quem não se revir nesta, exponha claramente o seu ponto de vista,
mas sem andar à procura de bode expiatório em quem alegadamente não sabe o que
e ciência. Aliás, não sem os políticos de oposição fariam de maneira diferente
ou se fazendo diferente fariam melhor. E o repto é: Quem sabe que nos ensine. Não é função da universidade procurar, produzir,
comunicar e divulgar o conhecimento? Não é sua função evitar a
instrumentalização política da ciência através duma atitude proativa e
vigilante? Não é sua missão servir sem atitude servilista? Não descobriu a
necessidade de funcionamento em rede, prescindindo das suas escolas capelanares?
2021.02.12 –
Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário