sábado, 13 de fevereiro de 2021

Consenso científico sobre metas para confinar ou desconfinar

 

Na sequência da publicação do Decreto do Presidente da República n.º 11-A/2021, de 11 de fevereiro, que renova a declaração do estado de emergência, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública, iniciando-se às 00h00 de 15 de fevereiro e cessando às 23h59 de 1 de março, sem prejuízo de eventuais renovações, nos termos da lei, o Conselho de Ministros, segundo o respetivo comunicado, aprovou o decreto que regulamenta o estado de emergência decretado pelo Presidente da República, mantendo as regras atualmente vigentes, com exceção da permissão da venda, nos estabelecimentos de comércio a retalho que se encontrem já em funcionamento, de livros e materiais escolares.

O decreto presidencial, que visa permitir medidas de contenção da covid-19, teve os votos favoráveis de PS, PSD, CDS-PP, PAN e da deputada não inscrita Cristina Rodrigues, a abstenção do Bloco de Esquerda e os votos contra do PCP, PEV, Chega, Iniciativa Liberal e da deputada não inscrita Joacine Katar Moreira.

O projeto introduz algumas alterações face ao que está atualmente em vigor, prevendo que seja definido um plano faseado de reabertura das aulas presenciais, incluindo uma ressalva a permitir a venda de livros e materiais escolares, que o Governo acolheu, e admitindo limites ao ruído em certos horários nos edifícios habitacionais para não perturbar quem está em teletrabalho, que o Governo parece não ter atendido por motivos de dificuldade prática resistindo por enquanto à pressão dos ecologistas.

Entretanto, o Presidente da República falou ao país sobre a perspetiva do prolongamento do estado de emergência por mais tempo do que o esperado, embora com um enfraquecimento progressivo das restrições, escudado nas razões que levaram a esta renovação, ou seja, um significativo decréscimo dos números de infetados, internados e falecidos, mas ainda sem a suficiência que permita dizer que o SNS não esteja congestionado e pouco focado noutras comorbidades e que permita dizer que se atingiram os níveis aceitáveis de contenção.

Por sua vez, o Primeiro-Ministro, pelo menos aparentemente mais pessimista que o Presidente, avisou que não haveria afrouxamento das medidas restritivas por ocasião da Páscoa. E pediu à comunidade científica um esforço com vista a consenso alargado em torno de metas objetivas no plano epidemiológico, adiantando que o processo de desconfinamento no país será gradual.

Este desafio foi deixado aos cientistas por António Costa em conferência de imprensa, no Palácio Nacional da Ajuda, depois de o Conselho de Ministros ter aprovado o conjunto de medidas enquadradas pelo decreto presidencial que renovou o estado de emergência em todo o território nacional até 1 de março – aprovado por ampla maioria no Parlamento. E, questionado sobre os indicadores que servirão de base ao Governo para iniciar, a prazo, o processo de desconfinamento, respondeu que o Governo “segue critérios que têm a ver com a evolução da pandemia, de capacidade de resposta do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e com o risco de contaminação existente” e declarou que, “na última reunião do Infarmed, um dos cientistas propôs três marcas fundamentais que deveriam servir como linha vermelha para se decretar confinamento e não linhas verdes para lhe pôr fim”, pelo que pediu “aos nossos cientistas um esforço de consensualização científica sobre aquilo que devem ser os níveis relativamente aos quais as medidas devem ser adotadas” – o que alguns cientistas já vieram contestar em artigos e entrevistas, dando a entender uma certa intocabilidade da “ciência” e o zelo contra a sua eventual instrumentalização política, o que me parece estar bem longe das intenções e das palavras do decisor político.

Tanto assim é que, segundo o Chefe do Governo, a ciência “é naturalmente um espaço de debate e de opiniões diversas e numa democracia não há uma verdade científica oficial”, mas haveria conforto para todos “se o consenso científico pudesse ser mais consolidado e mais alargado”, pois, as opiniões diversas, que são naturais, transpostas para debate científico no domínio público geram muitas vezes confusão nas pessoas, que ficam sem saber bem qual a verdade por que se devem pautar. Tão só isso! E Costa explicitou que o decisor político “deve seguir o melhor conhecimento científico disponível” antes de decidir, conhecimento que “deve ser tão consensual entre os pares quanto aquilo que seja possível”.

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Todavia, há quem denuncie a incoerência do discurso lembrando que o chefe do Governo já assumiu várias “decisões políticas” não fundadas em sólido consenso científico.

Assim, o pneumologista Filipe Froes, coordenador do gabinete de crise para a covid-19 da Ordem dos Médicos, diz que o apelo é no mínimo desadequado e que não se percebe porque, passado um ano de pandemia, não se constituiu uma comissão científica permanente para monitorizar em tempo real e útil as decisões tomadas, a sua monitorização no terreno e a sua correção se necessário, pois não se pode querer a ciência quando dá jeito e desprezá-la quando não o dá, sendo que, em seu entender, as reuniões de especialistas no Infarmed não substituem o trabalho dum conselho científico com especialistas de várias áreas, como há noutros países.

É certo que os governos hesitam perante as incertezas e as oposições pouco têm a acrescentar. Porém, o Primeiro-Ministro tomou assumidamente a “decisão política” de manter as escolas abertas sem que existisse consenso sobre a matéria, havendo estudos e especialistas que induziam o fecho das escolas e outros que concluíam que tais locais não são especialmente perigosos, o que nem é tão contraditório como pode parecer. E Froes lembra que a decisão do primoministerial foi tomada com base num dado concreto: a conclusão de que se desconhecia a origem de 87% dos contágios. Ora, se apenas se conseguia contar a história de 13% dos casos, é de questionar como se afirmava que as escolas não eram um problema.

Por outro lado, apelar à consensualização dos cientistas parece tentar a autodesresponsabilização por decisões que deviam ter tido um nível diferente de fundamentação. E o especialista conclui que “pandemia significa decidir e liderar na incerteza”. Por isso, para ter mais hipóteses de sucesso nessa tarefa, é necessária a “capacidade de monitorização” das decisões em tempo útil e a “capacidade de corrigir as decisões de uma forma ativa”.

O apelo de Costa surge depois de os especialistas apresentarem algumas “metas” a atingir antes de pensar em desconfinar e que o líder do maior partido da oposição quer que o Governo diga. De facto, Carmo Gomes defendeu como arma fundamental a testagem em vez do confinamento.

A covid-19 expôs de forma exuberante a dificuldade da gestão do risco baseada na incerteza, o que não é inédito. Por exemplo, as alterações climáticas já colocaram esse desafio implicando decisões sobre um futuro que se desconhece e previsível só com limitações e margens de erro. Só que, no caso da pandemia, um governo não pode estar à espera de ter toda a informação para tomar decisões. Enquanto o conhecimento e a confiança são frágeis e levam décadas a construir, o poder político tem de tomar decisões sem a informação toda, como lembrava Alexandre Quintanilha em junho de 2020.

A questão que reúne mais consenso entre os cientistas será a conclusão de que tomar decisões na incerteza não é fácil, mas os decisores políticos não podem furtar-se a tal responsabilidade, cabendo-lhes a eles fazer a gestão do risco com a incerteza. Ora, como o consenso científico, não raro, pode ser o “não sabemos”, pois a ciência é feita da procura de respostas e faz-se com e por causa do que não sabemos, a política, que urge, sente-se incómoda com o “não sei”.

É certo que, nesta pandemia, o conhecimento está a andar a um ritmo estonteante (veja-se o caso das vacinas), mas o “consenso científico” é, provisório, mudando à medida que surgem novos dados, o que é um desafio para os decisores políticos que tentam fixar medidas de saúde pública e fornecer orientações claras e consistentes aos cidadãos.

Políticos e peritos tendem a abster-se de comunicar a incerteza científica, temendo que isso gere desconfiança, mas apresentar como certos incertos aspetos da pandemia tem efeitos negativos na confiança dos cidadãos se tais dados se revelarem incorretos mais tarde, o que tem sucedido.

Por outro lado, a incerteza científica induz o risco de politização, risco ampliado na pandemia. Por isso, é fundamental uma comunicação científica cuidadosa para manter o apoio público às políticas baseadas na ciência à medida que o consenso científico se altera, sendo que alguns modelos ou descobertas serão inevitavelmente anulados ou corrigidos.

Não obstante, por maiores que sejam os problemas e dificuldades, a relação entre cientistas e políticos, apesar de complexa, nunca foi tão próxima como agora com a covid-19. Mesmo assim, se em política admitir um erro pode ser fraqueza, em ciência errar e substituir velhas teorias e hipóteses por outras novas e mais precisas faz parte do processo. Mudar de abordagem pode ser fraqueza na política, mas é a força do método científico.

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Mais duras são outras críticas às reuniões do Infarmed, que reúnem peritos de várias áreas, o Presidente da República, o Primeiro-Ministro, partidos e outros representantes da sociedade e da economia, para avaliar a evolução da pandemia no país. Assim, por exemplo, o cientista Carlos Fiolhais, numa conversa com Francisco José Viegas, numa iniciativa da Editora Quetzal, disse que tais “reuniões eram um simulacro”. E disse ao DN que, salvaguardando que nessas reuniões estão presentes cientistas com valor, mas que não podem ser consideradas uma audição à ciência, sustentou que “a ciência não é o que diz um cientista”, mas “um processo” e que “a sua força está no facto de se trabalhar em conjunto e continuamente até se alcançarem as perguntas que estão mais adequadas ao que podemos chamar verdade”.

E, neste sentido, o físico e professor da Universidade de Coimbra critica o Governo, quando diz que “os cientistas têm de se entender” ou que “os cientistas não se entendem”, dando a entender que os políticos “não estão a perceber o que é a ciência”. Por isso, em seu modo de ver, “o Primeiro-Ministro não pode agora pedir aos cientistas consenso, quando a ciência nunca foi ouvida de forma organizada e coerente, no combate à pandemia”.

Carlos Fiolhais aduz que “se queremos apurar a opinião da ciência, num assunto interdisciplinar, como é o combate à pandemia, que tem várias dimensões, desde a infeciologia, à bioquímica, à epidemiologia, à prática médica, há que criar um conselho científico, onde todas estas pessoas estejam presentes e possam dialogar entre elas para chegarem a um consenso do que há fazer, do que é certo ou do que é errado, para se fazer melhor a seguir”. E dá como exemplo países, como os EUA, onde “o professor Anthony Faucci é o porta-voz da ciência”, pois “é presidente de uma organização científica e tem a confiança dos seus pares para falar sobre a matéria”, sublinhando que é precisamente este diálogo entre pares que não existe em Portugal. Assim, entende que o Governo não pode agora pedir aos cientistas que definam critérios ou que alcancem o consenso científico quando nunca criou um organismo ou conselho científico, onde os cientistas pudessem dialogar. Com efeito, para este professor, “o consenso científico surge do trabalho em conjunto e contínuo” e um cientista, quando fala em nome de um grupo, tem de incorporar no discurso “as apreciações feitas pelos seus pares, a apreciação geral das coisas do que é o raciocínio, a base do conhecimento do que é método científico, não são só o que é a sua perceção”.

Note-se que, antes e além da voz de Fiolhais, surgiram outras vozes de relevo como a do médico e professor catedrático jubilado, Constantino Sakellarides, que defendeu a mesma perspetiva em artigo publicado recentemente no DN, defendendo que não se poder usar a ciência em vão, ou a do diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, Carlos Robalo Cordeiro, que em entrevista ao DN disse que “a audição individual de cientistas não é a ciência falar”.

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A par da inação dos diversos e sucessivos governos em criarem ou não um conselho científico a nível nacional, quando há estruturas de investigação científica (universidades e centros de estudos), é de questionar como, surgindo tantas associações, sociedades e agremiações, os cientistas portugueses não tomaram a iniciativa de se constituírem em associação, clube, grémio ou organização similar, com a exigência de serem ouvido regularmente e, sobretudo em situações de emergência. Depois, é preciso especificar de que ciência se está a falar. Provavelmente, cada um fala da sua ciência ou do seu conceito de ciência. Parece que História, Economia, Sociologia, Psicologia não são ciência para muitos. Quando os políticos ouvem os cientistas no Infarmed não estão mesmo a ouvir ciência? Se esta se constrói no processo de descoberta, como podem querer que ela fale publicamente a uma só voz e não aceitam que se peça um certo consenso que sirva de base à tomada de decisões? Ora, até é da discrepância entre cientistas e sua ultrapassagem que resultam, tantas vezes, novas descobertas. Por outro lado, é verdade que nem em ciência política os politólogos se entendem…

Sei do desconforto de alguns não serem ouvidos e da frustração de muitos darem a sua opinião e verem que ela é sistematicamente posta de parte, mas também sei da dificuldade em tomar decisões no meio de incertezas e sei que, apesar de tudo, as ciências podem constituir, aqui e agora, uma base sustentável de decisão política. E quem não se revir nesta, exponha claramente o seu ponto de vista, mas sem andar à procura de bode expiatório em quem alegadamente não sabe o que e ciência. Aliás, não sem os políticos de oposição fariam de maneira diferente ou se fazendo diferente fariam melhor. E o repto é: Quem sabe que nos ensine. Não é função da universidade procurar, produzir, comunicar e divulgar o conhecimento? Não é sua função evitar a instrumentalização política da ciência através duma atitude proativa e vigilante? Não é sua missão servir sem atitude servilista? Não descobriu a necessidade de funcionamento em rede, prescindindo das suas escolas capelanares?

2021.02.12 – Louro de Carvalho

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