O Santuário da Senhora da Lapa fica na freguesia de Quintela, do concelho
de Sernancelhe que pertence à Diocese de Lamego e ao Distrito de Viseu. Este
Santuário granítico, que remonta a 1498 (já vão 523 anos), alberga dentro um enorme penedo que
faz uma gruta ou lapa, onde, como reza a história, ali foi encontrada uma
imagem da Virgem Maria após mais de 500 anos escondida na gruta onde as irmãs
perseguidas a depositaram. E o curioso é que pela abertura do penedo, que é
muito estreito e sinuoso em altura, diz-se que passa o gordo e passa o magro, e
parece que assim é com algum jeitinho na barriga.
A Lapa é uma
terra de fé, um sítio de mistério natural e de alcance transcendental. De
qualquer ponto que o circunstante lance o olhar, de perto ou de longe, encontra
como ponto de contacto ou a torre da igreja, um cruzeiro ou mesmo um dos quatro
consagrados miradouros. Está a povoação situada quase no cimo da serra com o
mesmo nome, a 915 metros de altitude. Localiza-se junto às nascentes do rio
Vouga, na freguesia de Quintela, concelho de Sernancelhe, diocese de Lamego,
distrito de Viseu.
Dali
partiram, por ali passaram e passam muitas pessoas simples e personalidades
ilustres que testemunham a dureza da vida espelhada na dureza daquela
graniticidade.
***
Como tudo
começou?
Joana, a
muda pastorita de Quintela, nunca sonhara que a imagem da Senhora da Lapa, a
nena que guardava ciosamente na cestinha da merenda, fosse motivo para que à
serra ou ao Santuário acolhessem milhares de romeiros, tantos que houvessem de
a assustar. A história da Lapa inicia-se nos finais do século XV, mais
propriamente no ano de 1498, segundo uns, ou 1493, segundo outros (A 10 de
junho de 1993, Dom António Xavier Monteiro, Bispo diocesano, começava a
homilia: “Foi há 500 anos! Quinhentos anos é muito tempo…”). Percebido o sinal miraculoso, os romeiros empreenderam
a espontânea construção duma capela; e, a seguir, uma proteção para os devotos
que faziam a romaria à volta da gruta inserida no enorme fraguedo. Isto da sua
história passou-se assim:
O célebre e
hábil general mouro, Al-Mançor, pelo ano de 982, transpôs o Douro para a margem
esquerda. Havendo destruído Lamego, progrediu para Trancoso. No trânsito
arrasou o Convento de Arcas, onde martirizou muitas das religiosas, entre as quais, Comba Ozores, a
superiora.
Atravessada
a serra de Pera, chegaram ao convento de Sisimiro, sito na atual Quinta das
Lameiras, freguesia de Pinheiro, concelho de Aguiar da Beira. Parte das
religiosas sofreram o martírio, outras escaparam levando consigo uma imagem de
Nossa Senhora, procurando abrigo nos matos por onde se embrenharam. Acharam a
gruta ou lapa, onde guardaram a dita imagem que ali resistiu à agrura dos
séculos, durante uns 515 anos.
Em 1498, uma
pastorinha chamada Joana, muda de nascença, da freguesia e lugar de Quintela, um
dia, andando a guardar o gado de seus pais, lembrou-se de entrar ali na gruta e
encontrou a santa imagem que meteu na cesta onde guardava as maçarocas e a
merenda. A imagem era de pequena dimensão, mas muito formosa. E a pastorinha
guardou-a e enfeitava-a como podia e sabia, com as mais lindas flores que
topava nos campos ou no monte. Ao voltar a casa, no fim do dia, cuidava da
roupa da imagem. As ovelhas, apesar de fartas e nédias, eram apascentadas quase
sempre nos mesmos lugares, o que motivou acusações por parte de outrem à mãe de
Joana. Tudo isto e as teimosias da filha a fizeram enervar e, sem mais,
tirou-lhe a imagem, que teve por uma vulgar nena ou boneca, e atirou-a ao lume.
A menina, transida de pavor, gritou; “Tá!
Minha Mãe! É Nossa Senhora! Ai! Que fez?”. A fala começou a prendar
irreversivelmente a mocinha pastora e a mãe ficou com o braço paralisado,
transe de que se curou com a oração de ambas. A imagem foi levada para a Lapa,
sob a orientação do percurso por Joana e todos a acompanharam. Porém, tal não
terá sucedido sem que antes o cura de Quintela houvesse tentado a entronização
da veneranda imagem no interior da Igreja Paroquial, donde a mesma imagem
desaparecia de modo insólito e misterioso. Para abrigo da imagem de Nossa
Senhora e para resguardo temporário dos fiéis, sobretudo na época de maior
afluência destes, foi construído um Oratório e levantadas algumas barracas. O
Oratório e barracas adjacentes estavam sob a jurisdição do reitor de Vila da
Rua, que obteve do Ordinário diocesano autorização para ali celebrar missa.
Foi este o
princípio da localidade de Lapa, onde por força destas circunstâncias começaram
a edificar-se as principais habitações e bem assim as subsequentes, o que
transformou um lugar inóspito num aglomerado que logrou alcançar numa certa projeção
e que hoje mantém a atmosfera de mística espiritualidade e de estranha
grandeza.
Entretanto,
como a Companhia de Jesus se instalasse em Portugal e gozasse de gerais
simpatias, foi permitido aos Jesuítas, a título transitório, que dirigissem o
culto da Lapa, auxiliando os fiéis e atendendo-os de confissão. Porém, no ano
de 1575, o padroado da Abadia de Vila da Rua passa a jurisdição e posse da
Coroa Portuguesa, com o já antigo curato de Quintela, que lhe estava adstrito e
em cujo limite se encontrava a Ermida da Senhora da Lapa. Em 1576, sob autorização
do Papa Gregório XIII, Dom Sebastião deu a Igreja da Rua, com metade dos seus
réditos, ao Colégio de Jesus, que os Jesuítas fundaram em 1542 e possuíam em
Coimbra, ficando-lhes a pertencer também o Oratório da Lapa. Efetivamente, Dom
João III tinha-lhes entregue o Colégio das Artes, com a promessa de um dote,
para côngrua sustentação, promessa que não satisfez na totalidade, cabendo o
ónus do cumprimento ao seu sucessor. E, vindo estabelecer-se na Lapa, os
Jesuítas dão corpo, com o auxílio de particulares, à edificação do Santuário e
do Colégio, obras iniciadas no século XVI. Porém, segundo Gonçalves da Costa, a primeira tentativa de
transformação da Lapa num Santuário mariano dentro de um ambiente de maior
comodidade, deve-se ao Padre João Alvares, em 1610, aquando da sua vinda de
Roma com o cargo de visitador dos Jesuítas Portugueses.
Dentro da
Igreja, ou melhor, junto dela, mandou levantar, em 1586, Pedro do Sovral,
Senhor do Morgado de Sernancelhe, a atual capela do Santíssimo Sacramento, para
abrigo do túmulo de família. Porém, antes de ter a função hodierna e de
albergar aquele altar de boa talha joaninha, serviu de sacristia.
O Colégio,
junto ao Santuário, começou nos finais do século XVII, mais exatamente em 1685
e ficou sempre obra não acabada. O complexo religioso e escolar afirma-se
progressivamente como um prestigiado e prestigiante santuário de peregrinação
nacional e um notável polo de aquisição e consolidação de cultura.
O colégio
locupleta-se de escolares. E a Senhora da Lapa impõe-se como um centro de
irradiação do culto à Virgem e como fermento de mais povoações, cidades,
dioceses e santuários um pouco por todo o mundo, sobretudo pelas inúmeras
estâncias por que andarilharam os padres jesuítas.
***
O Santuário
O Santuário
da Lapa, que abriga na capela-mor, onde pontificava o altar do Menino Jesus da
Lapa, o rochedo milagroso com a imagem da Senhora que seduzia cativantemente os
homens e as mulheres de crença inabalável, começou a atrair, em vários momentos
do ano, os peregrinos, que se ali se deslocavam em romaria para impetrar
graças, obter a propiciação pelas faltas humanas e agradecer os favores do
Altíssimo – tanto em jeito pessoal como em convénio coletivo. De facto, as
pessoas e as famílias eram torturadas pelos malefícios da doença, do azar ou da
má sorte; e os povos, pelos efeitos das pestes e pragas que lhes devastavam as
culturas, os animais ou, pior ainda, os parentes, os benfeitores, os vizinhos e
os amigos
Assim,
debaixo da rocha que forma a gruta onde apareceu a imagem de Nossa Senhora,
está o altar da Senhora da Lapa ladeando irregular e mui estreita passagem que
vai dar ao presépio, com centenas de figurinhas, da escola do escultor
conimbricense Machado de Castro. É crença supersticiosa que quem tiver a alma
atafulhada de pecados não consegue passar naquele angusto canal granítico. O
altar da Virgem deixa ver o painel de prata e os mármores de Carrara. Nestes
tempos de pandemia, está barrado ao acesso ao altar da Virgem e ao predito
canal granítico. No entanto, pode observar-se desde a entra na gruta a imagem
da Senhora da Lapa e dirigir-se-lhe a prece mariana e com a Virgem rezar a
Jesus.
E a servir
de altar-mor segundo o ordenamento tradicional do espaço das igrejas fica o
altar do Menino Jesus (o primeiro a ser construído como altar e a ter
direito a talha dourada), cuja
imagem surge empolgante em trajes napoleónicos. Esse altar, apesar de
aferrolhado por forte gradeamento de ferro, mostra-se protegido na inusitada
lapa e ladeado por quadrinhos supostamente de Josefa de Óbidos. Também, sob a
pequena estátua da Mater Dolorosa,
incrustada em edícula na rocha à direita de quem entra na gruta, se divisa o
pequeno mas simbólico altar da Senhora da Boa Morte, rodeada do compungido
colégio dos apóstolos que contemplam a dormição ou trânsito da Senhora, sua mãe
e rainha.
A aludida
Capela do Santíssimo Sacramento, que aloja o túmulo do primeiro Conde da Lapa, fica
em frente do mencionado presépio, tem um rico altar de talha joanina e forma um
espaço de recolhimento que insta à reflexão e ao silêncio orante.
É notável a
cenografia de que se revestem os altares laterais do corpo da igreja.
Assim, junto
do arco-cruzeiro, do tradicionalmente denominado lado da Epístola, vê-se o
altar de Santo António de Lisboa, em que a Virgem, circundada de anjos, lhe
entrega o Menino com a indicação de um anjo a relembrar a frase joânica do 4.º Evangelho:
“Eis a Tua Mãe!” (cf Jo 19,27). Do tradicionalmente denominado lado do Evangelho,
temos o altar do Calvário ou da Crucifixão, em que, momentos depois de o Senhor
expirar, o seu lado é trespassado pela lança dum soldado “romano”, que a tradição
dizer chamar-se Longuinhos, na presença de outros que se entretêm a repartir
entre si as vestes do Crucificado e a jogar os dados sobre a sua túnica inconsútil,
a ver a quem viria a pertencer.
Mais ao
fundo, do mesmo lado do altar da Crucifixão, o altar de São José, construído em
1793 em talha simples, representa a passagem deste homem que, após o
cumprimento da sua discreta, mas dedicada e insubstituível missão, recebe a
coroa da justiça, cuja descida é determinada pelo anjo do tempo medido pela
ampulheta ali visível. Entretanto, o Pai Celeste prepara tudo para que se acolha
no Reino eterno este homem justo que passou pelo mundo como inefável brisa
suave, ligeira e nova, suscitada e movida pelo Espírito. E, do lado oposto,
resta o altar da Senhora da Soledade, também de 1793 e em talha simples, em que
a Virgem Mãe, aos pés da cruz, contempla os instrumentos da Paixão e o corpo do Senhor está sepultado ante a Senhora lacrimosa
ao pé de João Evangelista, José de Arimateia, Nicodemos e as santas mulheres.
Por detrás da capela-mor e no compartimento que rodeia a lapa, era a Casa
do Peso, assim chamada por nela estarem as balanças aonde as pessoas se
dirigiam para as próprias pesagens, com vista à futura entrega do mesmo peso em
trigo em cumprimento da promessa deste teor à Senhora. Pode ver-se lá suspenso
o grande caimão, um gigantesco ex-voto que testemunha o lendário milagre da
mulher, das redondezas ou das bandas do Oriente, que se chamou, aflita, à
Senhora, que lhe terá inspirado o arremesso dos novelos de lã de que dispunha para
que, havendo-os engolido, ficasse engasgado e a mulher fosse liberta do perigo.
Tesouros sem conto, peso e medida espelham a generosidade ou o brio de
crentes anónimos ou grados, gente simples ou homens cultos, populares ou
nobres, clérigos ou altas personalidades das casas reais. De notar são tais
generosidades que foram criando e avolumando o rico espólio de paramentos de
pratas que exorna de modo excelente o tesouro da Fábrica do Santuário.
Na sacristia pode apreciar-se belo paramenteiro e seis ex-votos em pedrelas
de notável interesse e acentuado valor. Muitos outros quadrinhos há aqui como
no concelho, a atestar a devoção e as graças que impenderam sobre as
necessidades e orações dos crentes, nos finais do século XVIII, um pouco por
todo o século XIX e ainda pelo século passado.
Da sacristia, diz Monsenhor Arnaldo Cardoso que é um amplo e irregular quadrado,
com duas portas e duas janelas, cujas paredes são de
boa cantaria, ressaltando as peças de mobiliário, confecionado no Porto, segundo
informação do Padre António Cordeiro, que ordenou a encomenda de paramentos
e armários, a pagou e mandou colocar tudo na ‘sacristia nova’ – e a quem certamente
“se devem os quadros pintados, com as respetivas molduras”.
A igreja, vista do exterior ostenta uma frontaria com o triângulo
pretensamente apoiado em duas colunas embutidas no muro frontal; e, à
cabeceira, por detrás do passadiço que dá para o colégio, o campanário com os
dois sinos que se encarrega de dar as horas e de chamar os devotos para os
ofícios culturais.
No fraguedo que medeia entre a cabeceira da Igreja e o caminho que dá para
a zona das lavadeiras, junto a lenteiros e hortas, onde borbulha uma das fontes
nascentes do Vouga, estão três cruzeiros graníticos, qual remate de via-sacra
de rua a constituir um calvário rural, aí do século XVIII. A onda destruidora
que às vezes passa por estes lugares fizera desaparecer os braços das cruzes. A
Câmara Municipal, quando procedeu às obras de saneamento básico e de
beneficiação dos arruamentos da Lapa e envolvente do Santuário repôs a
integridade das cruzes.
***
A Lapa é, pois, terra de fé, de história, de cultura e de arte. E, embora presa
aos limites do tempo e da rusticidade, é testemunho da generosidade sofrida e solidária
a marcar a memória coletiva e a constituir forte herança para as gerações
vindouras. As almas que ali se deixam nutrir pelo dom da fé cultivam a
esperança e estão aptas para fazer frutificar a caridade para com todos segundo
com os parâmetros que mais agradam a Deus.
2021.02.10 – Louro de
Carvalho
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