A liturgia do 5.º domingo do Tempo Comum no Ano B releva dois textos que
abordam, em perspetivas complementares, a temática do sofrimento e da doença:
Jb 7,1-4.6-7; e Mc 1,29-39.
O Livro de Job, literariamente belo, reflete sobre algumas
das grandes questões que se colocam ao homem de todos os tempos, a saber: o
sentido da vida e do sofrimento, a situação do homem diante de Deus e o papel
de Deus na vida e nos dramas do homem.
Job, homem piedoso, bom, generoso e temente a Deus, possuía
muitos bens e uma família numerosa, mas viu-se, de súbito, privado de tudo, inclusive da família, e atingido por uma
grave doença. E a história do seu drama suscita a reflexão sobre o dogma da
retribuição, tema intocável da fé israelita. Segundo esta, a atitude de Deus
para com os homens estava definida: o Senhor recompensa o bom pelas suas boas
obras e o mau recebe castigo exemplar pelas injustiças e arbitrariedades que
pratica. A justiça de Deus – realizada sempre terra – era linear e imutável. O
Senhor é, na catequese então em voga, um Deus previsível, que Se limita a fazer
a contabilidade das boas e más ações do homem e a pagar-lhe em conformidade. Porém,
a vida põe em causa esta visão. Com frequência, os maus possuem bens em
abundância e vivem vida longa e feliz, enquanto os justos são pobres e sofrem
pela injustiça e violência dos poderosos.
Ora, se um homem bom, temente a Deus e que vive na
observância de todos os mandamentos sofre, como explicar este sofrimento?
Job representa aqui o tipo de homem que, refletindo sobre esta
questão existencial, discorda da teologia tradicional (4 amigos dizem a Job que o seu
sofrimento é o resultado lógico das suas faltas) e, a partir da própria experiência, denuncia a fé
instalada em preconceitos e teorias que não têm a ver com a vida. Não aceita as
falsas imagens de Deus fabricadas pelos teólogos, encastelados no saber, para
quem Deus não passa de comerciante que paga conforme a qualidade da mercadoria.
E, não aceitando esse deus falso, busca o rosto genuíno de Deus. É uma busca
apaixonada, temperada pelo sofrimento e marcada pela rebeldia e até revolta,
pela qual o sofredor chega ao “face a face” com Deus. Descobre o Deus
omnipotente e desconcertante, que ultrapassa a lógica humana e o Deus que ama
com amor de Pai cada uma das suas criaturas, boas ou más. E, reconhecendo, na
sua pequenez, a incapacidade para compreender o desígnio de Deus, sabe que não
pode julga-Lo nem entendê-Lo à luz da lógica humana: só lhe resta entregar-se
totalmente na mão desse Deus, incompreensível mas cheio de amor, e confiar
plenamente n’Ele.
O trecho tornado 1.ª leitura desta dominga integra o corpo
central do livro. Entre 3,1 e 31,40, surge, em modo de poesia, o diálogo entre
Job (crente inconformado,
polémico, contestatário)
e os amigos (defensores
da teologia e catequese tradicionais), em que Job desfaz os argumentos da catequese oficial veiculada
por tais amigos, sem uma palavra de conforto para ele, e vai derramando a sua
insatisfação e revolta em desafio ao deus falso que os amigos pregam e que Job
não aceita.
Job começa por tecer, em quadro assaz negativo, considerações
sobre a vida do homem na terra. Para mostrar a dureza desta vida, recorre a
três exemplos (Jb 7,1-2): o soldado, condenado a um estilo de
luta, risco e sujeição; o escravo, condenado à dureza do trabalho, tortura e
maus tratos; e o trabalhador assalariado, condenado ao trabalho duro de sol a
sol (embora receba a
recompensa dum salário).
Não obstante, sente que a sua situação pessoal ainda é mais terrível que a
fadiga do assalariado, a vida de luta e de risco do soldado ou o peso da sujeição
do escravo. O sofrimento não lhe dá descanso, nem de noite nem de dia, e a sua
desilusão não é atenuada (como
no caso do trabalhador)
com a esperança duma recompensa (Jb 7,3-4.6). E,
delineado este quadro da sua existência, Job dirige-se a Deus (Jb 7,7ss) e pede-lhe que recorde a triste
situação do seu servo.
Depois, expõe a Deus a sua triste situação (cf Job 7,7-21), numa oração carregada de desespero,
amargura e de revolta contra esse Deus incompreensível e prepotente que Se
recusa a pôr fim ao drama do amigo. É o grito de revolta que brota do coração
dolorido e sem esperança – expressão da angústia do homem que se sente
injustiçado pelo próprio Deus – mas também do coração do crente que sabe que só
em Deus pode encontrar a esperança e o sentido para a vida.
***
Como
contraponto ao livro de Job e de forma eloquente, vem o trecho do Evangelho no
seguimento da proclamação feita no 4.º domingo do Tempo Comum (cf Mc
1,21-28). É o segundo momento de Jesus com
os discípulos (Marcos é exímio em vincular Jesus e os discípulos) em Cafarnaum (na margem norte do
Lago de Tiberíades) no
horizonte temporal de madrugada a madrugada.
Depois de
entrarem em Cafarnaum, na manhã de sábado, Jesus vai à sinagoga e ensina (Mc 1,21). E, saindo da sinagoga, entraram (“êlthen”, referindo Jesus e os discípulos), na casa de Simão e de André (Mc 1,29). É um “relato de começo”, na ótica de Dom António
Couto, Bispo de Lamego, pois, “saindo da
casa antiga, entram, uns 30 metros a sul, na casa nova, de Pedro”. A sogra
de Simão está acamada com febre. Jesus, como espelho do Pai misericordioso e
modelo do bom cuidador, aproximando-se (“proselthôn”) e segurando-lhe
na mão (“kratêsas
tês kheirós”), levantou-a (“êgeiren autên”: “egeírô”, verbo da ressurreição) (Mc 1,31). Segurar na mão, diz o venerando prelado, é uma bela
expressão que, no Antigo Testamento, indica o gesto com que Deus protege o
orante (Sl 73,23), Israel (Is 41,13), o seu servo (Is 42,6).
Dizia o
Cónego Toni Vítor de Sousa que, tal como nós o devemos fazer, esta mulher fez a
sua parte: aceitou dar mão a Jesus e deixar de estar acamada. Jesus não começou
por curá-la, mas aproximou-Se, deu-lhe a mão; e ela tornou-se cúmplice ativa da
sua cura. E, como a febre a deixou, tornou-se disponível e a servia-os (“diêkónei”: imperfeito de “diakonéô”) continuamente.
A sogra de
Simão é uma das sete mulheres que, nos Evangelhos, servem Jesus e os outros. É
a figura da comunidade cristã nascente, que passa da escravidão à liberdade, da
morte à vida, gerada, protegida e edificada por Jesus no lugar seguro da casa
de Pedro.
À tardinha,
toda a cidade está reunida à porta daquela casa, para ouvir Jesus e ver os seus
doentes curados por Ele. Os demónios continuam impedidos de falar (não deixava
que eles falassem: “ouk êphien laleîn”), mesmo sabendo quem Ele era (Mc 1,34), para ficar claro que acreditar em Jesus não é fazer
uma definição exata de Jesus, mas aderir a Ele e ao seu modo de viver, tarefa
nossa, não dos demónios. E Jesus curou muitos doentes e expulsou muitos
demónios. Dizia Toni Sousa que não os curou todos, pois muitos, como hoje,
permaneciam agarrados à cama das doenças, não acalentavam a esperança, pareciam
não desejar a cura.
Na madrugada
do mesmo primeiro dia da semana, muito cedo, tendo-se levantado (“anístêmi”), prolepse da madrugada da Ressurreição que se divisa no horizonte, Jesus
sai sozinho para rezar (Mc 1,35), mas os
discípulos correm logo a procurá-Lo para O trazerem de volta, pois, como dizem,
todas as pessoas o querem ver e ter, ninguém o quer perder (Mc 1,36-37). E diz o Bispo de Lamego que Jesus desconcerta os discípulos
e abre-lhes o futuro caminho da missão: “Vamos,
a outros lugares, às aldeias vizinhas, para que também (“kaí” usado adverbialmente) eu ali anuncie
(“kêrýssô”) o Evangelho” (Mc 1,38). “Anunciar” é todo o afazer de Jesus, que preenche
todo o seu programa e o seu caminho. É dizer a alta voz a mensagem que outro –
neste caso, Deus Pai – nos encarregou de transmitir. Jesus é, pois, o
mensageiro, o anunciador de Deus: não fala em seu próprio nome, não emite
opiniões, mas fala em nome de Deus.
Com “vamos a
outros lugares”, Jesus desinstala e agrega a si os discípulos, apontando-lhes o
seu futuro trabalho de anunciadores do Evangelho por todo o mundo, mas é também
relevante o “também” aplicado a Jesus (“para que também eu
ali anuncie o Evangelho”). Sendo a
ponte entre as duas margens – a jornada de Cafarnaum e a jornada do futuro –,
mostra que Jesus se mantém sempre ligado a este anúncio e que a tessitura do
Evangelho é aproximar-se, ensinar, segurar na mão, libertar, acolher, curar,
recriar – bitola de que Jesus não Se arreda, antes faz avançar (cf Mc 1,39).
***
Estamos na primeira parte (cf
Mc 1,14-8,30) do
Evangelho de Marcos, em que o evangelista apresenta Jesus como o Messias que
proclama a realidade de um mundo novo – uma realidade que o próprio Jesus chama
“Reino de Deus”.
Com o chamamento dos primeiros discípulos (cf Mc 1,16-20), inicia-se a constituição da
comunidade do “Reino” – a comunidade dos que escutam a proposta de Jesus e
aderem a ela. Em seguida, Marcos mostra a realidade do Reino a atuar no mundo
como salvação e libertação, nas palavras e gestos de Jesus: com a autoridade
que Lhe vem do Pai (cf Mc
1,21-22) e em comunhão
total com Ele, Jesus vence o mal e a dor que escravizam o homem e anuncia um
mundo novo de liberdade e de vida plena.
A atuação de Jesus no sentido de fazer aparecer o Reino é uma
atuação que não se limita ao espaço da sinagoga (cf Mc 1,21-28), mas se estende a outros ambientes e âmbitos, porque o Reino
de Deus dirige-se ao homem em todas as suas dimensões e situações.
No trecho em referência nesta dominga, Marcos apresenta-nos
Jesus a atuar no sentido de tornar o Reino uma realidade presente no meio dos
homens. E fá-lo em dois quadros que apresentam realidades diversas mas
complementares do “ministério de Jesus”.
O primeiro quadro (vv. 29-34) situa-nos na casa de Pedro, lugar que de real passa a ter um valor
simbólico, como se entreleu acima. Na narração de Marcos – com forte
preocupação catequética – o objetivo fundamental é sugerir que a missão de
Jesus consiste em oferecer aos homens a vida nova, a vida definitiva a partir
dos gestos simples que o quotidiano nos exige.
No primeiro momento, Jesus cura a sogra de Pedro que “estava
de cama com febre” (Mc 7,30). A cena é descrita com simplicidade
e sobriedade, sem teatralidade. Três pormenores significativos sobressaem na
descrição (cf Mc 7,31). O primeiro é a indicação de que
Jesus “Se aproximou” da sogra de Pedro. Naturalmente, a iniciativa de Se
aproximar de quem está prisioneiro do sofrimento, doença, opressão, é sempre de
Jesus. Jesus toma a iniciativa, pois a missão que recebeu do Pai consiste em
realizar a libertação do homem de tudo o que o faz sofrer e lhe rouba a vida. O
segundo pormenor surge na indicação de que Ele tomou a doente pela mão e “a
levantou”. O verbo utilizado pelo evangelista (o grego “egeírô”
– “levantar”) aparece em
contextos de “ressurreição” (cf Mc 5,41; 6,14.16; 9,27; 12,26; 14,28; 16,6). A mulher está prostrada pelo sofrimento
que lhe rouba a vida, mas o contacto com Jesus devolve-lhe a vida, o que
equivale a uma ressurreição. O terceiro pormenor é a indicação de que a mulher
“começou a servi-los”. O efeito imediato do contacto com Jesus e da experiência
da vida que brota Dele é a atividade que se concretiza no serviço dos irmãos.
Num segundo momento, o quadro apresenta-nos “a cidade
inteira” reunida à porta da casa de Pedro. “Jesus” – diz Marcos – “curou muitas
pessoas que eram atormentadas por várias doenças e expulsou muitos demónios” (vd Mc 7,32-34). Os muitos enfermos e os possessos
do demónio representam, aqui, todos os privados de vida, os prisioneiros do
sofrimento, injustiça, egoísmo, pecado. E Marcos convida-nos a ver em Jesus
Aquele que tem poder para libertar o homem das suas misérias mais profundas e
para lhe oferecer uma vida nova, livre e feliz.
A casa de Simão Pedro (onde Jesus atua e diante da qual se reúne “toda a cidade” à
procura da libertação que Jesus veio oferecer) será uma representação da Igreja. É aí que Jesus está
a oferecer à “família de Pedro” (isto é, à sua comunidade: “sy eî
Pétros”, “tu és Pedro” – Mt 16,18) a vida em abundância. Nesse espaço familiar, Jesus
aproxima-Se dos homens, liberta-os do sofrimento que escraviza e aliena,
dá-lhes a vida plena e capacita-os para o serviço dos irmãos. A multidão que se
reúne à porta da casa de Pedro representa a humanidade que busca a libertação e
a vida genuína e que, dia a dia, olha ansiosamente para a “casa de Pedro” (a Igreja) à procura de Jesus e sua proposta
libertadora, esperando ser aí acolhida, cuidada, protegida e revigorada para
voltar para a luta de cada dia.
No segundo quadro (vd Mc 7,35-38), Marcos apresenta-nos Jesus retirado num lugar solitário, em
oração. A oração, inerente ao seu ministério, está na agenda da sua atividade e
compromissos. É significativo que a atividade de Jesus termine na oração e que
a atividade de Jesus em favor das multidões parta, de novo, da oração, pois a
oração é, para Jesus, o cume e a fonte da ação.
Assim, a oração constitui-se como condição do surgimento do
Reino. Nela, Jesus encontra a motivação para a ação em prol do Reino e a força
para se libertar da tentação da popularidade fácil e centrar, de novo, a sua atenção
em Deus e nos seus projetos. O encontro a sós com Deus não é alienação, nem fuga
dos problemas do mundo, mas um momento de encontro com Deus e com o seu
desígnio, e o ponto de partida para o compromisso com a transformação do mundo.
O encontro pessoal com Deus significa uma paragem na atividade para tomada de
consciência do que Deus quer e do compromisso que Deus pede aos seus enviados.
O trecho termina com um resumo a explicitar o sentido do
ministério de Jesus: do encontro com o Pai brota a vontade renovada de
concretizar o projeto de Deus e de atuar no meio dos homens para lhes oferecer
a libertação e a vida. Por isso, ao reencontrar os discípulos, dispõe-se a
palmilhar “toda a Galileia, pregando nas
sinagogas e expulsando os demónios” (Mc 7,39).
Aqui, os milagres de Jesus ocupam um espaço significativo. É
preciso vê-los não como gestos espetaculares, destinados a impressionar as
multidões, mas como sinais do Reino, gestos que anunciam a irrupção do mundo
novo, sem exclusão, sofrimento ou maldição, onde todos (e em especial os pobres e
marginalizados) têm a
oportunidade de serem felizes. Anunciam que Deus quer criar um mundo novo, onde
não há impuros, proscritos ou condenados; e anunciam uma nova era, de homens
novos, que vivem a plenitude da vida e da felicidade. É isso que Jesus veio
fazer e é essa a missão que os discípulos de Jesus procuram concretizar na
terra.
***
Por e ao
modo de Jesus, cai sobre Paulo a graça e a missão de evangelizar (1Cor
9,16-23). Não o faz por sua iniciativa ou
gosto, mas por necessidade (“anagkê”)
imposta de fora (“epíkeitai”), de Deus, contra quem não vale a pena lutar (At 26,14). A vida nova de Paulo assenta na derrota sofrida (“katelêmphthen”) no caminho de Damasco. Sem esse desequilíbrio para o
Evangelho, para Cristo, a sua vida começaria a arruinar-se, como indica a
“fórmula de desgraça”, iniciada pela interjeição “ai” (“ouaí”): “Ai de mim se
não evangelizar!”. Porém, sobressai a devotação de Paulo a todos: “tudo para todos”, “por causa do Evangelho”. Belo modelo do Evangelizador!
2021.02.07 –
Louro de Carvalho
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