domingo, 7 de fevereiro de 2021

Evangelho do olhar de Deus – distante ou próximo – sobre o sofrimento

 

A liturgia do 5.º domingo do Tempo Comum no Ano B releva dois textos que abordam, em perspetivas complementares, a temática do sofrimento e da doença: Jb 7,1-4.6-7; e Mc 1,29-39.

O Livro de Job, literariamente belo, reflete sobre algumas das grandes questões que se colocam ao homem de todos os tempos, a saber: o sentido da vida e do sofrimento, a situação do homem diante de Deus e o papel de Deus na vida e nos dramas do homem.

Job, homem piedoso, bom, generoso e temente a Deus, possuía muitos bens e uma família numerosa, mas viu-se, de súbito, privado de tudo, inclusive da família, e atingido por uma grave doença. E a história do seu drama suscita a reflexão sobre o dogma da retribuição, tema intocável da fé israelita. Segundo esta, a atitude de Deus para com os homens estava definida: o Senhor recompensa o bom pelas suas boas obras e o mau recebe castigo exemplar pelas injustiças e arbitrariedades que pratica. A justiça de Deus – realizada sempre terra – era linear e imutável. O Senhor é, na catequese então em voga, um Deus previsível, que Se limita a fazer a contabilidade das boas e más ações do homem e a pagar-lhe em conformidade. Porém, a vida põe em causa esta visão. Com frequência, os maus possuem bens em abundância e vivem vida longa e feliz, enquanto os justos são pobres e sofrem pela injustiça e violência dos poderosos.

Ora, se um homem bom, temente a Deus e que vive na observância de todos os mandamentos sofre, como explicar este sofrimento?

Job representa aqui o tipo de homem que, refletindo sobre esta questão existencial, discorda da teologia tradicional (4 amigos dizem a Job que o seu sofrimento é o resultado lógico das suas faltas) e, a partir da própria experiência, denuncia a fé instalada em preconceitos e teorias que não têm a ver com a vida. Não aceita as falsas imagens de Deus fabricadas pelos teólogos, encastelados no saber, para quem Deus não passa de comerciante que paga conforme a qualidade da mercadoria. E, não aceitando esse deus falso, busca o rosto genuíno de Deus. É uma busca apaixonada, temperada pelo sofrimento e marcada pela rebeldia e até revolta, pela qual o sofredor chega ao “face a face” com Deus. Descobre o Deus omnipotente e desconcertante, que ultrapassa a lógica humana e o Deus que ama com amor de Pai cada uma das suas criaturas, boas ou más. E, reconhecendo, na sua pequenez, a incapacidade para compreender o desígnio de Deus, sabe que não pode julga-Lo nem entendê-Lo à luz da lógica humana: só lhe resta entregar-se totalmente na mão desse Deus, incompreensível mas cheio de amor, e confiar plenamente n’Ele.

O trecho tornado 1.ª leitura desta dominga integra o corpo central do livro. Entre 3,1 e 31,40, surge, em modo de poesia, o diálogo entre Job (crente inconformado, polémico, contestatário) e os amigos (defensores da teologia e catequese tradicionais), em que Job desfaz os argumentos da catequese oficial veiculada por tais amigos, sem uma palavra de conforto para ele, e vai derramando a sua insatisfação e revolta em desafio ao deus falso que os amigos pregam e que Job não aceita.

Job começa por tecer, em quadro assaz negativo, considerações sobre a vida do homem na terra. Para mostrar a dureza desta vida, recorre a três exemplos (Jb 7,1-2): o soldado, condenado a um estilo de luta, risco e sujeição; o escravo, condenado à dureza do trabalho, tortura e maus tratos; e o trabalhador assalariado, condenado ao trabalho duro de sol a sol (embora receba a recompensa dum salário). Não obstante, sente que a sua situação pessoal ainda é mais terrível que a fadiga do assalariado, a vida de luta e de risco do soldado ou o peso da sujeição do escravo. O sofrimento não lhe dá descanso, nem de noite nem de dia, e a sua desilusão não é atenuada (como no caso do trabalhador) com a esperança duma recompensa (Jb 7,3-4.6). E, delineado este quadro da sua existência, Job dirige-se a Deus (Jb 7,7ss) e pede-lhe que recorde a triste situação do seu servo.

Depois, expõe a Deus a sua triste situação (cf Job 7,7-21), numa oração carregada de desespero, amargura e de revolta contra esse Deus incompreensível e prepotente que Se recusa a pôr fim ao drama do amigo. É o grito de revolta que brota do coração dolorido e sem esperança – expressão da angústia do homem que se sente injustiçado pelo próprio Deus – mas também do coração do crente que sabe que só em Deus pode encontrar a esperança e o sentido para a vida.

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Como contraponto ao livro de Job e de forma eloquente, vem o trecho do Evangelho no seguimento da proclamação feita no 4.º domingo do Tempo Comum (cf Mc 1,21-28). É o segundo momento de Jesus com os discípulos (Marcos é exímio em vincular Jesus e os discípulos) em Cafarnaum (na margem norte do Lago de Tiberíades) no horizonte temporal de madrugada a madrugada.

Depois de entrarem em Cafarnaum, na manhã de sábado, Jesus vai à sinagoga e ensina (Mc 1,21). E, saindo da sinagoga, entraram (“êlthen”, referindo Jesus e os discípulos), na casa de Simão e de André (Mc 1,29). É um “relato de começo”, na ótica de Dom António Couto, Bispo de Lamego, pois, “saindo da casa antiga, entram, uns 30 metros a sul, na casa nova, de Pedro”. A sogra de Simão está acamada com febre. Jesus, como espelho do Pai misericordioso e modelo do bom cuidador, aproximando-se (“proselthôn”) e segurando-lhe na mão (“kratêsas tês kheirós), levantou-a (“êgeiren autên”: “egeírô”, verbo da ressurreição) (Mc 1,31). Segurar na mão, diz o venerando prelado, é uma bela expressão que, no Antigo Testamento, indica o gesto com que Deus protege o orante (Sl 73,23), Israel (Is 41,13), o seu servo (Is 42,6).

Dizia o Cónego Toni Vítor de Sousa que, tal como nós o devemos fazer, esta mulher fez a sua parte: aceitou dar mão a Jesus e deixar de estar acamada. Jesus não começou por curá-la, mas aproximou-Se, deu-lhe a mão; e ela tornou-se cúmplice ativa da sua cura. E, como a febre a deixou, tornou-se disponível e a servia-os (“diêkónei: imperfeito de “diakonéô) continuamente.

A sogra de Simão é uma das sete mulheres que, nos Evangelhos, servem Jesus e os outros. É a figura da comunidade cristã nascente, que passa da escravidão à liberdade, da morte à vida, gerada, protegida e edificada por Jesus no lugar seguro da casa de Pedro.

À tardinha, toda a cidade está reunida à porta daquela casa, para ouvir Jesus e ver os seus doentes curados por Ele. Os demónios continuam impedidos de falar (não deixava que eles falassem: “ouk êphien laleîn”), mesmo sabendo quem Ele era (Mc 1,34), para ficar claro que acreditar em Jesus não é fazer uma definição exata de Jesus, mas aderir a Ele e ao seu modo de viver, tarefa nossa, não dos demónios. E Jesus curou muitos doentes e expulsou muitos demónios. Dizia Toni Sousa que não os curou todos, pois muitos, como hoje, permaneciam agarrados à cama das doenças, não acalentavam a esperança, pareciam não desejar a cura.

Na madrugada do mesmo primeiro dia da semana, muito cedo, tendo-se levantado (“anístêmi), prolepse da madrugada da Ressurreição que se divisa no horizonte, Jesus sai sozinho para rezar (Mc 1,35), mas os discípulos correm logo a procurá-Lo para O trazerem de volta, pois, como dizem, todas as pessoas o querem ver e ter, ninguém o quer perder (Mc 1,36-37). E diz o Bispo de Lamego que Jesus desconcerta os discípulos e abre-lhes o futuro caminho da missão: “Vamos, a outros lugares, às aldeias vizinhas, para que também (“kaí usado adverbialmente) eu ali anuncie (“kêrýssô) o Evangelho(Mc 1,38). “Anunciar” é todo o afazer de Jesus, que preenche todo o seu programa e o seu caminho. É dizer a alta voz a mensagem que outro – neste caso, Deus Pai – nos encarregou de transmitir. Jesus é, pois, o mensageiro, o anunciador de Deus: não fala em seu próprio nome, não emite opiniões, mas fala em nome de Deus.

Com “vamos a outros lugares”, Jesus desinstala e agrega a si os discípulos, apontando-lhes o seu futuro trabalho de anunciadores do Evangelho por todo o mundo, mas é também relevante o “também” aplicado a Jesus (“para que também eu ali anuncie o Evangelho”). Sendo a ponte entre as duas margens – a jornada de Cafarnaum e a jornada do futuro –, mostra que Jesus se mantém sempre ligado a este anúncio e que a tessitura do Evangelho é aproximar-se, ensinar, segurar na mão, libertar, acolher, curar, recriar – bitola de que Jesus não Se arreda, antes faz avançar (cf Mc 1,39).

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Estamos na primeira parte (cf Mc 1,14-8,30) do Evangelho de Marcos, em que o evangelista apresenta Jesus como o Messias que proclama a realidade de um mundo novo – uma realidade que o próprio Jesus chama “Reino de Deus”.

Com o chamamento dos primeiros discípulos (cf Mc 1,16-20), inicia-se a constituição da comunidade do “Reino” – a comunidade dos que escutam a proposta de Jesus e aderem a ela. Em seguida, Marcos mostra a realidade do Reino a atuar no mundo como salvação e libertação, nas palavras e gestos de Jesus: com a autoridade que Lhe vem do Pai (cf Mc 1,21-22) e em comunhão total com Ele, Jesus vence o mal e a dor que escravizam o homem e anuncia um mundo novo de liberdade e de vida plena.

A atuação de Jesus no sentido de fazer aparecer o Reino é uma atuação que não se limita ao espaço da sinagoga (cf Mc 1,21-28), mas se estende a outros ambientes e âmbitos, porque o Reino de Deus dirige-se ao homem em todas as suas dimensões e situações.

No trecho em referência nesta dominga, Marcos apresenta-nos Jesus a atuar no sentido de tornar o Reino uma realidade presente no meio dos homens. E fá-lo em dois quadros que apresentam realidades diversas mas complementares do “ministério de Jesus”.

O primeiro quadro (vv. 29-34) situa-nos na casa de Pedro, lugar que de real passa a ter um valor simbólico, como se entreleu acima. Na narração de Marcos – com forte preocupação catequética – o objetivo fundamental é sugerir que a missão de Jesus consiste em oferecer aos homens a vida nova, a vida definitiva a partir dos gestos simples que o quotidiano nos exige.

No primeiro momento, Jesus cura a sogra de Pedro que “estava de cama com febre” (Mc 7,30). A cena é descrita com simplicidade e sobriedade, sem teatralidade. Três pormenores significativos sobressaem na descrição (cf Mc 7,31). O primeiro é a indicação de que Jesus “Se aproximou” da sogra de Pedro. Naturalmente, a iniciativa de Se aproximar de quem está prisioneiro do sofrimento, doença, opressão, é sempre de Jesus. Jesus toma a iniciativa, pois a missão que recebeu do Pai consiste em realizar a libertação do homem de tudo o que o faz sofrer e lhe rouba a vida. O segundo pormenor surge na indicação de que Ele tomou a doente pela mão e “a levantou”. O verbo utilizado pelo evangelista (o grego “egeírô” – “levantar”) aparece em contextos de “ressurreição” (cf Mc 5,41; 6,14.16; 9,27; 12,26; 14,28; 16,6). A mulher está prostrada pelo sofrimento que lhe rouba a vida, mas o contacto com Jesus devolve-lhe a vida, o que equivale a uma ressurreição. O terceiro pormenor é a indicação de que a mulher “começou a servi-los”. O efeito imediato do contacto com Jesus e da experiência da vida que brota Dele é a atividade que se concretiza no serviço dos irmãos.

Num segundo momento, o quadro apresenta-nos “a cidade inteira” reunida à porta da casa de Pedro. “Jesus” – diz Marcos – “curou muitas pessoas que eram atormentadas por várias doenças e expulsou muitos demónios” (vd Mc 7,32-34). Os muitos enfermos e os possessos do demónio representam, aqui, todos os privados de vida, os prisioneiros do sofrimento, injustiça, egoísmo, pecado. E Marcos convida-nos a ver em Jesus Aquele que tem poder para libertar o homem das suas misérias mais profundas e para lhe oferecer uma vida nova, livre e feliz.

A casa de Simão Pedro (onde Jesus atua e diante da qual se reúne “toda a cidade” à procura da libertação que Jesus veio oferecer) será uma representação da Igreja. É aí que Jesus está a oferecer à “família de Pedro” (isto é, à sua comunidade: “sy eî Pétros”, “tu és Pedro” – Mt 16,18) a vida em abundância. Nesse espaço familiar, Jesus aproxima-Se dos homens, liberta-os do sofrimento que escraviza e aliena, dá-lhes a vida plena e capacita-os para o serviço dos irmãos. A multidão que se reúne à porta da casa de Pedro representa a humanidade que busca a libertação e a vida genuína e que, dia a dia, olha ansiosamente para a “casa de Pedro” (a Igreja) à procura de Jesus e sua proposta libertadora, esperando ser aí acolhida, cuidada, protegida e revigorada para voltar para a luta de cada dia.

No segundo quadro (vd Mc 7,35-38), Marcos apresenta-nos Jesus retirado num lugar solitário, em oração. A oração, inerente ao seu ministério, está na agenda da sua atividade e compromissos. É significativo que a atividade de Jesus termine na oração e que a atividade de Jesus em favor das multidões parta, de novo, da oração, pois a oração é, para Jesus, o cume e a fonte da ação.

Assim, a oração constitui-se como condição do surgimento do Reino. Nela, Jesus encontra a motivação para a ação em prol do Reino e a força para se libertar da tentação da popularidade fácil e centrar, de novo, a sua atenção em Deus e nos seus projetos. O encontro a sós com Deus não é alienação, nem fuga dos problemas do mundo, mas um momento de encontro com Deus e com o seu desígnio, e o ponto de partida para o compromisso com a transformação do mundo. O encontro pessoal com Deus significa uma paragem na atividade para tomada de consciência do que Deus quer e do compromisso que Deus pede aos seus enviados.

O trecho termina com um resumo a explicitar o sentido do ministério de Jesus: do encontro com o Pai brota a vontade renovada de concretizar o projeto de Deus e de atuar no meio dos homens para lhes oferecer a libertação e a vida. Por isso, ao reencontrar os discípulos, dispõe-se a palmilhar “toda a Galileia, pregando nas sinagogas e expulsando os demónios(Mc 7,39).

Aqui, os milagres de Jesus ocupam um espaço significativo. É preciso vê-los não como gestos espetaculares, destinados a impressionar as multidões, mas como sinais do Reino, gestos que anunciam a irrupção do mundo novo, sem exclusão, sofrimento ou maldição, onde todos (e em especial os pobres e marginalizados) têm a oportunidade de serem felizes. Anunciam que Deus quer criar um mundo novo, onde não há impuros, proscritos ou condenados; e anunciam uma nova era, de homens novos, que vivem a plenitude da vida e da felicidade. É isso que Jesus veio fazer e é essa a missão que os discípulos de Jesus procuram concretizar na terra.

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Por e ao modo de Jesus, cai sobre Paulo a graça e a missão de evangelizar (1Cor 9,16-23). Não o faz por sua iniciativa ou gosto, mas por necessidade (“anagkê) imposta de fora (“epíkeitai), de Deus, contra quem não vale a pena lutar (At 26,14). A vida nova de Paulo assenta na derrota sofrida (“katelêmphthen”) no caminho de Damasco. Sem esse desequilíbrio para o Evangelho, para Cristo, a sua vida começaria a arruinar-se, como indica a “fórmula de desgraça”, iniciada pela interjeição “ai(ouaí”): “Ai de mim se não evangelizar!”. Porém, sobressai a devotação de Paulo a todos: “tudo para todos”, “por causa do Evangelho”. Belo modelo do Evangelizador!

2021.02.07 – Louro de Carvalho

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