terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Do uso e significado do véu

 

O véu é um tecido ou peça de vestuário, utilizado quase só por mulheres de diferentes culturas, para cobrir total ou parcialmente a cabeça e a face. Além do seu caráter de vestimenta e adorno, há conotações socioculturais e religiosas por parte de várias tradições. Uma considero-o um item religioso para honrar um local ou objeto de culto, mas as suas funções socioculturais, psicológicas e sociossexuais incluem a manutenção duma distance social, comunicação de status social e identidade cultural. E, em sociedades islâmicas, foram adotadas, da cultura árabe onde o Islão nasceu, várias formas de véu.

Apesar de o seu uso, regra geral, feminino, também há o uso masculino. Assim, em grupos de povos tuaregues, songhai, hauçás, fulas e mouros, não usa véu a mulher, mas o homem. O uso do véu masculino está associado à proteção contra maus espíritos, mas terá origem em usos pragmáticos como proteger a face das condições rigorosas do deserto. E esses homens passam a usar aos 25 anos de idade um véu que cobre toda a face, exceto os olhos, e não o removem mesmo junto dos membros de sua família.

Por outro lado, há os véus destinados a resguardar objetos como sucede como os véus litúrgicos.

Assim, em Igrejas cristãs com tradições litúrgicas são usados diferentes tipos de véu. Muitos vêm associados ao véu do Tabernáculo do deserto e ao véu do Santo dos Santos do Templo de Salomão. A sua finalidade é proteger os objetos mais sagrados, em particular a Eucaristia. Assim, o véu do tabernáculo, de uso opcional, cobre o sacrário, quando contém as sagradas espécies. O véu do cibório (ou da píxide), de uso opcional, resguarda o cibório ou píxide, ou seja, o recetáculo onde se guardam as hóstias consagradas. O véu do cálice, de uso opcional, cobre o cálice e a patena antes de se começar a segunda parte da Missa, a da Liturgia Eucarística, e depois do rito da comunhão. Na tradição católica, usa-se véu único para ambos os objetos e a pala redonda para cobrir a patena com a hóstia (ou sem ela), ao passo que, nas Igrejas orientais (católica e ortodoxas), são usados três véus: um para o cálice, outro para a patena e outro, o aër, para cobrir os dois anteriores. O véu umeral ou véu de ombros é uma veste litúrgica utilizada no Rito romano e nalgumas Igrejas anglicana e luterana para a exposição, procissão e bênção do Santíssimo Sacramento. E o véu de cobertura de imagens, de cor preta, roxa ou vermelha, dependendo da tradição litúrgica, usa-se em muitas igrejas na reta final da Quaresma para velar os cruxifixos, para demonstrar luto pela morte de Cristo.

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O termo “véu” provém do latim “uēlum”, que também denominava cada uma das velas das embarcações. Há duas teorias sobre a origem do termo “uēlum”: da raiz indo-europeia “*wel-, significando “cobrir”; e da raiz indo-europeia *wegh-, que significa “carregar um veículo”.

O primeiro uso conhecido do véu de mulheres é reportado num texto legislativo assírio (século XIII a.C.) que o reserva a mulheres da aristocracia, proibindo-o a prostitutas e mulheres comuns.

Na expansão dos povos indo-arianos pelo Irão e Índia, o uso propaga-se sobretudo entre mulheres. O termo grego micénico a-pu-ko-wo-ko (a significar “artesão de véus para cavalos) é atestado desde cerca de 1300 a.C. na escrita silábica Linear B. Textos gregos antigos citam o uso do véu e isolamento de mulheres praticado pela elite persa. Estátuas em Persépolis retratam mulheres com véus. Estátuas gregas dos períodos clássico e helénico retratam mulheres gregas com a cabeça e face cobertas por véus. Caroline Galt e Lloyd Llewellyn-Joves argumentaram, com base nessas representações, que era comum entre as mulheres gregas desse período (pelo menos as de alto status social) o uso público do véu. Entre os romanos, as mulheres usavam-no como símbolo da autoridade marital. Em 166 aC, o cônsul Sulpício Galo  divorciou-se porque a esposa saíra de casa, permitindo que todos vissem, segundo ele, o que só ele deveria ver. As meninas solteiras não escondiam a cabeça, mas as matronas faziam-no para mostrar a pudicitia, isto é, modéstia e castidade e para se protegerem do mau-olhado. E o véu flammeum era a caraterística mais relevante do traje da noiva no casamento romano. Até 1175, mulheres anglo-saxãs e anglo-normandas, exceto as jovens solteiras, usavam véus a cobrir os cabelos e, por vezes, o pescoço e o queixo. Porém, no período Tudor (1485), o uso do véu começou a ser menos comum graças à generalização do capuz. O uso do véu em mulheres europeias é atestado também em situação de luto e em substituição da máscara como método de ocultação da identidade da mulher. E, em termos pragmáticos, era usado para proteger a pele do sol, tal como hoje se usa o keffiyeh.

No judaísmo, cristianismo e islão, cobrir a cabeça está associado a modéstia e recato, visando estabelecer o resguardo da concupiscência de quem utiliza o véu e de quem pode ver a pessoa velada. Retratos tradicionais da Virgem Maria  mostram-na de cabeça velada, o que não sucede no seu primeiro retrato de sepultura. Enfim, cobrir os cabelos era comum em mulheres, que usavam véu de renda ao frequentar igrejas até a década de 1960. É ainda usado em funerais um véu de renda que cobre a face por mulheres europeias de diversas denominações cristãs.

No norte da Índia, mulheres hindus  usam o véu Laaj (ou Ghoonghat) em regiões rurais, sobretudo em Gujarat e Rajastão em situações tradicionais e ante homens mais velhos. Apesar de a religião ser indicada como razão para o uso do véu, tal prática também reflete situações políticas e serve de pretexto e meio para exposição pública das convicções ideológicas de quem o usa.

O uso do véu entre judias casadas é, segundo formas mais restritas do Judaísmo ortodoxo, expressão da devoção e amor exclusivos da mulher pelo marido. Assim, são recomendados o Tichel e outras formas de cobertura dos cabelos, parte sensual do corpo, a mulheres judias de tradições mais ortodoxas como ato de modéstia e próprio da devoção religiosa da mulher. O uso de cobertura do cabelo é referido na Torah (Nm 5,18), que estipula que a cerimónia de punição de mulher acusada de adultério se inicia pela sua remoção por um sacerdote. A Mishnah (Ketuboth 7,6) e o Talmud (Ketuboth 72) referem a cobertura do cabelo como obrigação feminina. E a Torah (Ct 4,1) e o Talmud (Berakhot 24a) referem o cabelo como objeto de erotismo e sexualidade (ervah). São usados simbolicamente véus bordados como coberturas para a arca que contém os rolos da Torah na sinagoga. Essa cortina, ou véu chamado parochet, é herança do véu do tabernáculo e dos véus que originalmente cobriam a Arca da Aliança e o Santo dos Santos (Kodesh Hakodashim) no Templo. Esses véus separam fisicamente os espaços considerados particularmente sagrados de outros espaços e limitam o acesso a esses espaços. No cristianismo, as mulheres eram induzidas a cobrir a cabeça dentro dos templos e em todos os atos e culto público, mesmo que fora dos templos, tal como era – e ainda é – usual os homens descobrirem a cabeça em sinal de respeito. Tal prática remonta ao texto da 1.ª Carta de Paulo aos Coríntios:

Todo o homem que ora ou profetiza com a cabeça coberta desonra a sua cabeça; e toda a mulher que ora ou profetiza com a cabeça descoberta desonra a sua cabeça; pois é como se a tivesse rapada. Se a mulher não cobre a cabeça, deve também cortar o cabelo; se, porém, é vergonhoso para a mulher ter o cabelo cortado ou rapado, ela deve cobrir a cabeça. O homem não deve cobrir a cabeça, visto que ele é imagem e glória de Deus; mas a mulher é glória do homem. Pois o homem não se originou da mulher, mas a mulher do homem; além disso, o homem não foi criado por causa da mulher, mas a mulher por causa do homem. Por essa razão e por causa dos anjos, a mulher deve ter sobre a cabeça um sinal de autoridade. No Senhor, todavia, a mulher não é independente do homem, nem o homem independente da mulher. Pois, assim como a mulher proveio do homem, também o homem nasce da mulher. Mas tudo provém de Deus. Julgai entre vós mesmos: é apropriado a uma mulher orar a Deus com a cabeça descoberta? A própria natureza das coisas não lhes ensina que é desonra para o homem ter cabelo comprido, e que o cabelo comprido é glória para a mulher? Pois o cabelo comprido foi-lhe dado como manto. Mas se alguém quiser fazer polémica a esse respeito, nós não temos esse costume, nem as igrejas de Deus.”. (1Cor 11,4-16).

Enquanto a autoria da carta é atribuída a Paulo, o trecho transcrito é considerado por diversos estudiosos como adição posterior, coeva das epístolas pastorais, por ter estilo e doutrina em geral divergentes do defendido noutros trechos de Paulo.

Na Antiguidade Tardia, Idade Média e Idade Moderna, a maioria das mulheres europeias e bizantinas casadas cobriam a cabeça com uma variedade de tipos diferentes de véus. 

Nas Igreja ortodoxa, nas Igrejas ortodoxas orientais e nalgumas Igrejas protestantes, mantém-se o costume de cobrir a cabeça nas igrejas e mesmo nas orações em casa. Na Igreja católica, usava-se, na maioria das localidades, a cobertura da cabeça por véus, capas, estolas, echarpes e barretes, até à década de 1960. O uso, apesar de não obrigatório, continua em locais onde é considerado prática de etiqueta, cortesia ou elegância, bem como entre católicos tradicionalistas. A cobertura da cabeça foi pela tornada obrigatória e universal, primeira vez, na Igreja Latina pelo Codex Iuris Canonici, de 1917, e revogada pelo de 1983. Porém, os tradicionalistas discutem a legalidade da revogação.

Um véu sobre o cabelo faz parte do vestuário e hábito da maioria das ordens de irmãs religiosas na Igreja católica e nalgumas ordens religiosas femininas anglicanas. Na era medieval, mulheres casadas cobriam a cabeça com véus, depois copiados pelo vestuário das freiras, indicando o seu estatuto de noivas de Cristo. Em muitas ordens é usado um véu branco, o véu da provação, no noviciado e um véu preto, o véu da profissão, após a emissão de votos. No entanto, as cores variam nas diferentes ordens. Nalgumas Igrejas católicas orientais  e nalgumas ortodoxas, um véu (chamado em grego επανωκαλύμμαυχο: epanokalimafko) é usado por religiosos de ambos os sexos (monges e freiras), cobrindo um chapéu denominado καλυμμαύχι (kalymaúkhi).  

Martinho Lutero incentivou as esposas a usarem véu no culto público, prática comum em pietistas e laestadianos na Escandinávia, Alemanha (sobretudo entre diaconisas e membros da Irmandade Evangélica de Maria), luteranos conservadores da América do Norte e, em geral, nas igrejas luteranas da África, Oriente Médio e sul da Ásia. E reformadores como João Calvino e John Knox entendiam que as mulheres devem cobrir a cabeça no culto público. Similar posição tinha John Wesley, o fundador do Metodismo. E denominações cristãs como a Congregação Cristã no Brasil, católicos tradicionalistas como a Administração Apostólica Pessoal São João maria Vianney, Casa de Oração, entre outras, adotam o uso de véu nos serviços religiosos e orações. Os Menonitas e outras religiões americanas  adotam o véu nos contextos de culto e mesmo no quotidiano. No Reino Unido, as mulheres cristãs cobrem a cabeça quando frequentam serviços religiosos formais, como casamentos na Igreja.

No islão, uma variedade de peças de vestuário para a cabeça, referidas no Ocidente como véus, é usada por mulheres e meninas muçulmanas de acordo com o hijab, o princípio da modéstia no vestuário. O principal objetivo do véu muçulmano é ocultar o que pode ser considerado atraente sexualmente para os homens. Muitas dessas peças de vestuário cobrem os cabelos, orelhas e garganta, mas não a face. Assim, o khimar é lenço para a cabeça; o nicabe e a burka são véus que cobrem toda a face, exceto uma pequena fresta para os olhos; a burka afegã cobre o corpo todo, ocultando totalmente a face, exceto por uma rede que permite que a mulher que a usa possa enxergar; e a boshiva, um véu que pode ser usado como um lenço sobre a cabeça, cobre toda a face com um tecido translúcido. Parece que o uso do véu, incomum entre os árabes antes do islão, se originou no Império Bizantino e se espalhou posteriormente na região.

O uso de véus e coberturas da face por muçulmanas levantou questões políticas em países do ocidente, especialmente em Quebeque, na França e no Reino Unido. E há um acalorado debate na Turquia, país secular de maioria islâmica, onde o véu foi banido em universidades e prédios do Governo por ser considerado um símbolo de militância política de grupos islamistas.

Véus como parte de chapéus sobreviveram às mudanças na moda europeia ao longo dos séculos e são usados eventualmente em ocasiões formais. Esse tipo de véu é normalmente feito de redes, não objetivando esconder o rosto totalmente. E, em muitas culturas ocidentais, o véu é parte integrante do vestuário das noivas. Véu comprido, a cobrir o cabelo e a face, substituiu o uso do cabelo longo e solto qual símbolo da virgindade da noiva e a resguarda para o noivo; e é enfeite e uso estético de virgem de aparência simples ou semelhante a outra mulher. O véu que cobria a face era removido ao apresentar a noiva ao noivo, o que é ignorado nos casamentos modernos. Na tradição judaica a noiva era desvelada apenas antes da consumação do casamento.

Não é claro que o uso do véu no casamento seja uso não religioso, uma vez que na tradição ocidental os casamentos quase sempre aconteciam em situações religiosas. Entretanto, o uso do véu no casamento predata a associação da cerimónia do casamento à religião cristã. Com efeito, as noivas romanas usavam véus coloridos para espantar maus espíritos, o que era um dado da religião romana. Posteriormente, o véu foi adotado nas cerimónias cristãs. E, tornado símbolo de virgindade, passou a ser adotado por mulheres cristãs que consagravam a virgindade a Cristo.

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O símbolo do véu tem duplo e aparentemente incoerente significado, pois tanto pode ser forma de revelar ocultando como forma de ocultar revelando. Tudo o que é oculto em parte, como a maior parte dos mistérios, convida ao conhecimento; e tudo o que é demasiado revelado pode-o ser para deliberadamente ocultar algo.

Na religião cristã “tomar o véu” significa afastamento do mundo e aproximação a Deus, mas o véu também cobre, nas religiões de tradição semita, o rosto de Deus.  Por isso, Moisés cobriu o seu rosto quando falou na Palavra de Deus ao povo hebreu. O ocultar do rosto por detrás do véu é, na cultura islâmica em relação às mulheres e na cultura cristã em relação às religiosas, uma forma de ocultação da sua sexualidade. Em árabe a palavra hijab significa véu e a separação de duas coisas e, segundo a tradição, Deus falava através de véu. Muitos dos tratados sufis (da corrente mística e contemplativa do islão) tinham o título de DesvelamentoKashf, ou seja revelação da verdade divina no afastar do véu dos sentidos que impede a perceção da verdadeira realidade. Para o islão, o rosto de Deus era ocultado por sete mil véus de luz e de trevas, pois o olhar direto e puro de Deus consumiria tudo o que alcançasse, e Deus concedeu aos seres humanos um véu que os protege da realidade que pode revelar e cegar como o Sol. O Templo de Jerusalém tinha o véu que separava o Santo do Santo dos Santos e que (diz o Evangelho) rasgou aquando da morte de Cristo. No budismo o véu é simbolizado pelo Maia que encobre e revela a realidade pura.

A conotação sagrada do véu fez com que fizesse parte dos acessórios de muitas dinastias que se julgavam de origem divina. Assim, os imperadores da China  recebiam as visitas por detrás dum um véu, podendo, tal como as divindades, ver sem serem vistos. Outros reis chamavam véu ao camareiro que transmitia as suas ordens, já que este era o intermediário da sua vontade.

A deusa dos tempos antigos apresentava-se velada ao representar o futuro e as pessoas criam que quem olhasse para lá do véu podia presenciar a sua própria morte. A deusa era representada ocultada por sete véus, que simbolizavam as esferas planetárias para lá das quais se escondia o verdadeiro rosto da deusa. Este era o significado dos sete véus de Salomé, a sacerdotisa da deusa Istar que, tal como a divindade egípcia Ísis, tinha o seu ritual ligado ao uso dos véus.

A questão que hoje se levanta é se a burka, tornada espesso véu de quase totalidade do corpo, exceto da face, é admissível em espaços que prezam a livre circulação de pessoas e bens, mas de rosto aberto, sem constrições pessoais e sem provocações a outras culturas, substituindo radicalmente trajes tradicionais – bem mais genuínos – de vários países e sociedades.

2021.02.16 – Louro de Carvalho

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