O véu é um tecido ou peça de
vestuário, utilizado quase só por mulheres de diferentes culturas, para cobrir
total ou parcialmente a cabeça e a face. Além do seu caráter de vestimenta e
adorno, há conotações socioculturais e religiosas por parte de várias
tradições. Uma considero-o um item religioso para honrar um local ou objeto de
culto, mas as suas funções socioculturais, psicológicas e sociossexuais incluem
a manutenção duma distance social, comunicação de status social e identidade cultural. E,
em sociedades islâmicas, foram adotadas, da cultura árabe onde o Islão nasceu, várias
formas de véu.
Apesar de o seu uso, regra geral, feminino, também há o uso
masculino. Assim, em grupos de
povos tuaregues, songhai, hauçás, fulas e mouros, não usa véu a mulher,
mas o homem. O uso do véu masculino está associado à proteção contra maus
espíritos, mas terá origem em usos pragmáticos como proteger a face das condições
rigorosas do deserto. E esses homens passam a usar aos 25 anos de idade um véu
que cobre toda a face, exceto os olhos, e não o removem mesmo junto dos membros
de sua família.
Por outro lado, há os véus destinados a resguardar objetos como sucede
como os véus litúrgicos.
Assim, em Igrejas
cristãs com tradições litúrgicas são usados diferentes tipos de véu. Muitos vêm
associados ao véu do Tabernáculo do deserto e ao véu do Santo
dos Santos do Templo de Salomão. A sua finalidade é proteger os objetos
mais sagrados, em particular a Eucaristia. Assim, o véu do tabernáculo, de uso opcional, cobre o sacrário, quando
contém as sagradas espécies. O véu do cibório (ou da píxide), de uso opcional, resguarda o cibório ou píxide, ou seja, o recetáculo
onde se guardam as hóstias consagradas. O véu
do cálice, de uso opcional, cobre o cálice e a patena antes de se começar a
segunda parte da Missa, a da Liturgia Eucarística, e depois do rito da
comunhão. Na tradição católica, usa-se véu único para ambos os objetos e a pala
redonda para cobrir a patena com a hóstia (ou sem ela), ao passo que, nas Igrejas orientais (católica e
ortodoxas), são usados três véus: um para o
cálice, outro para a patena e outro, o aër,
para cobrir os dois anteriores. O véu
umeral ou véu de ombros é
uma veste litúrgica utilizada no Rito romano e nalgumas
Igrejas anglicana e luterana para a exposição, procissão e
bênção do Santíssimo Sacramento. E
o véu de cobertura de imagens, de cor
preta, roxa ou vermelha, dependendo da tradição litúrgica, usa-se em muitas
igrejas na reta final da Quaresma para velar os cruxifixos, para demonstrar
luto pela morte de Cristo.
***
O termo “véu” provém
do latim “uēlum”, que também denominava
cada uma das velas das embarcações. Há duas teorias sobre a origem do termo “uēlum”: da raiz indo-europeia “*wel-, significando
“cobrir”; e da raiz
indo-europeia *wegh-, que significa “carregar um veículo”.
O primeiro
uso conhecido do véu de mulheres é reportado num texto legislativo assírio
(século XIII
a.C.) que o reserva a mulheres da
aristocracia, proibindo-o a prostitutas e mulheres comuns.
Na expansão
dos povos indo-arianos pelo Irão e Índia, o uso propaga-se sobretudo entre
mulheres. O termo grego micénico a-pu-ko-wo-ko (a
significar “artesão de véus para cavalos) é atestado
desde cerca de 1300 a.C. na escrita silábica Linear B. Textos gregos
antigos citam o uso do véu e isolamento de mulheres praticado pela
elite persa. Estátuas em Persépolis retratam mulheres com véus. Estátuas
gregas dos períodos clássico e helénico retratam mulheres gregas com a cabeça e
face cobertas por véus. Caroline Galt e Lloyd Llewellyn-Joves argumentaram, com
base nessas representações, que era comum entre as mulheres gregas desse
período (pelo menos as
de alto status social) o uso público
do véu. Entre os romanos, as mulheres usavam-no como símbolo da autoridade
marital. Em 166 aC, o cônsul Sulpício Galo divorciou-se porque a
esposa saíra de casa, permitindo que todos vissem, segundo ele, o que só ele
deveria ver. As meninas solteiras não escondiam a cabeça, mas as matronas
faziam-no para mostrar a pudicitia, isto é, modéstia e castidade e para se protegerem do
mau-olhado. E o véu flammeum era
a caraterística mais relevante do traje da noiva no casamento romano. Até 1175,
mulheres anglo-saxãs e anglo-normandas, exceto as jovens
solteiras, usavam véus a cobrir os cabelos e, por vezes, o pescoço e o queixo.
Porém, no período Tudor (1485), o uso do
véu começou a ser menos comum graças à generalização do capuz. O uso do véu em
mulheres europeias é atestado também em situação de luto e em
substituição da máscara como método de ocultação da identidade da
mulher. E, em termos pragmáticos, era usado para proteger a pele do sol, tal
como hoje se usa o keffiyeh.
No judaísmo,
cristianismo e islão, cobrir a cabeça está associado a modéstia e recato,
visando estabelecer o resguardo da concupiscência de quem utiliza o véu e de
quem pode ver a pessoa velada. Retratos tradicionais da Virgem Maria
mostram-na de cabeça velada, o que não sucede no seu primeiro retrato de
sepultura. Enfim, cobrir os cabelos era comum em mulheres, que usavam véu de renda
ao frequentar igrejas até a década de 1960. É ainda usado em funerais um véu de
renda que cobre a face por mulheres europeias de diversas denominações cristãs.
No norte
da Índia, mulheres hindus usam o véu Laaj (ou Ghoonghat) em regiões rurais, sobretudo em Gujarat e
Rajastão em situações tradicionais e ante homens mais velhos. Apesar de a
religião ser indicada como razão para o uso do véu, tal prática também reflete
situações políticas e serve de pretexto e meio para exposição pública das
convicções ideológicas de quem o usa.
O uso do véu
entre judias casadas é, segundo formas mais restritas do Judaísmo ortodoxo,
expressão da devoção e amor exclusivos da mulher pelo marido. Assim, são recomendados
o Tichel e outras formas de
cobertura dos cabelos, parte sensual do corpo, a mulheres judias de tradições
mais ortodoxas como ato de modéstia e próprio da devoção religiosa da mulher. O
uso de cobertura do cabelo é referido na Torah (Nm 5,18), que
estipula que a cerimónia de punição de mulher acusada de adultério se inicia
pela sua remoção por um sacerdote. A Mishnah
(Ketuboth
7,6) e o Talmud (Ketuboth 72) referem a
cobertura do cabelo como obrigação feminina. E a Torah (Ct 4,1) e o Talmud (Berakhot 24a) referem o cabelo como objeto de erotismo e
sexualidade (ervah). São usados
simbolicamente véus bordados como coberturas para a arca que contém
os rolos da Torah na sinagoga. Essa cortina, ou véu chamado parochet, é herança do véu do
tabernáculo e dos véus que originalmente cobriam a Arca da Aliança e
o Santo dos Santos (Kodesh Hakodashim) no Templo. Esses véus separam fisicamente os espaços considerados
particularmente sagrados de outros espaços e limitam o acesso a esses espaços.
No cristianismo, as mulheres eram induzidas a cobrir a cabeça dentro dos
templos e em todos os atos e culto público, mesmo que fora dos templos, tal
como era – e ainda é – usual os homens descobrirem a cabeça em sinal de
respeito. Tal prática remonta ao texto da 1.ª Carta de Paulo aos Coríntios:
“Todo o homem que ora ou
profetiza com a cabeça coberta desonra a sua cabeça; e toda a mulher que ora ou
profetiza com a cabeça descoberta desonra a sua cabeça; pois é como se a
tivesse rapada. Se a mulher não cobre a cabeça, deve também cortar o cabelo;
se, porém, é vergonhoso para a mulher ter o cabelo cortado ou rapado, ela deve
cobrir a cabeça. O homem não deve cobrir a cabeça, visto que ele é imagem e
glória de Deus; mas a mulher é glória do homem. Pois o homem não se originou da
mulher, mas a mulher do homem; além disso, o homem não foi criado por causa da
mulher, mas a mulher por causa do homem. Por essa razão e por causa dos anjos,
a mulher deve ter sobre a cabeça um sinal de autoridade. No Senhor, todavia, a
mulher não é independente do homem, nem o homem independente da mulher. Pois,
assim como a mulher proveio do homem, também o homem nasce da mulher. Mas tudo
provém de Deus. Julgai entre vós mesmos: é apropriado a uma mulher orar a Deus
com a cabeça descoberta? A própria natureza das coisas não lhes ensina que é
desonra para o homem ter cabelo comprido, e que o cabelo comprido é glória para
a mulher? Pois o cabelo comprido foi-lhe dado como manto. Mas se alguém quiser fazer
polémica a esse respeito, nós não temos esse costume, nem as igrejas de Deus.”. (1Cor
11,4-16).
Enquanto a
autoria da carta é atribuída a Paulo, o trecho transcrito é considerado por
diversos estudiosos como adição posterior, coeva das epístolas pastorais, por
ter estilo e doutrina em geral divergentes do defendido noutros trechos de Paulo.
Na
Antiguidade Tardia, Idade Média e Idade Moderna, a maioria das
mulheres europeias e bizantinas casadas cobriam a cabeça com uma variedade de
tipos diferentes de véus.
Nas Igreja
ortodoxa, nas Igrejas ortodoxas orientais e nalgumas Igrejas protestantes, mantém-se
o costume de cobrir a cabeça nas igrejas e mesmo nas orações em casa. Na Igreja
católica, usava-se, na maioria das localidades, a cobertura da cabeça por véus,
capas, estolas, echarpes e barretes, até à década de 1960. O uso, apesar de não
obrigatório, continua em locais onde é considerado prática de etiqueta,
cortesia ou elegância, bem como entre católicos tradicionalistas. A cobertura
da cabeça foi pela tornada obrigatória e universal, primeira vez, na Igreja
Latina pelo Codex Iuris
Canonici, de 1917, e revogada pelo de 1983. Porém, os tradicionalistas
discutem a legalidade da revogação.
Um véu sobre
o cabelo faz parte do vestuário e hábito da maioria das ordens de irmãs
religiosas na Igreja católica e nalgumas ordens religiosas femininas anglicanas.
Na era medieval, mulheres casadas cobriam a cabeça com véus, depois copiados
pelo vestuário das freiras, indicando o seu estatuto de noivas de Cristo. Em
muitas ordens é usado um véu branco, o véu da provação, no noviciado e um véu
preto, o véu da profissão, após a emissão de votos. No entanto, as cores variam
nas diferentes ordens. Nalgumas Igrejas católicas orientais e nalgumas
ortodoxas, um véu (chamado em grego επανωκαλύμμαυχο: epanokalimafko) é usado por religiosos de ambos os sexos (monges e
freiras), cobrindo um chapéu denominado
καλυμμαύχι (kalymaúkhi).
Martinho
Lutero incentivou as esposas a usarem véu no culto público, prática comum em pietistas
e laestadianos na Escandinávia, Alemanha (sobretudo entre diaconisas e
membros da Irmandade Evangélica de Maria), luteranos conservadores da América do Norte e, em geral, nas igrejas
luteranas da África, Oriente Médio e sul da Ásia. E reformadores como João
Calvino e John Knox entendiam que as mulheres devem cobrir a cabeça no culto
público. Similar posição tinha John Wesley, o fundador do Metodismo.
E denominações cristãs como a Congregação Cristã no Brasil, católicos
tradicionalistas como a Administração Apostólica Pessoal São João
maria Vianney, Casa de Oração, entre outras, adotam o uso de véu nos serviços
religiosos e orações. Os Menonitas e outras religiões americanas adotam o véu nos
contextos de culto e mesmo no quotidiano. No Reino Unido, as mulheres cristãs
cobrem a cabeça quando frequentam serviços religiosos formais, como casamentos
na Igreja.
No islão, uma variedade
de peças de vestuário para a cabeça, referidas no Ocidente como véus, é usada por
mulheres e meninas muçulmanas de acordo com o hijab, o princípio da modéstia no vestuário. O principal objetivo
do véu muçulmano é ocultar o que pode ser considerado atraente sexualmente para
os homens. Muitas dessas peças de vestuário cobrem os cabelos, orelhas e
garganta, mas não a face. Assim, o khimar é
lenço para a cabeça; o nicabe e
a burka são véus que cobrem
toda a face, exceto uma pequena fresta para os olhos; a burka afegã cobre o corpo todo, ocultando totalmente a face, exceto
por uma rede que permite que a mulher que a usa possa enxergar; e a boshiva, um véu que pode ser usado como
um lenço sobre a cabeça, cobre toda a face com um tecido translúcido. Parece que
o uso do véu, incomum entre os árabes antes do islão, se
originou no Império Bizantino e se espalhou posteriormente na região.
O uso de
véus e coberturas da face por muçulmanas levantou questões políticas em países
do ocidente, especialmente em Quebeque, na França e no Reino Unido. E há um
acalorado debate na Turquia, país secular de maioria islâmica, onde o véu foi
banido em universidades e prédios do Governo por ser considerado um símbolo de
militância política de grupos islamistas.
Véus como
parte de chapéus sobreviveram às mudanças na moda europeia ao longo dos séculos
e são usados eventualmente em ocasiões formais. Esse tipo de véu é normalmente
feito de redes, não objetivando esconder o rosto totalmente. E, em muitas
culturas ocidentais, o véu é parte integrante do vestuário das noivas. Véu
comprido, a cobrir o cabelo e a face, substituiu o uso do cabelo longo e solto
qual símbolo da virgindade da noiva e a resguarda para o noivo; e é
enfeite e uso estético de virgem de aparência simples ou semelhante a outra
mulher. O véu que cobria a face era removido ao apresentar a noiva ao noivo, o
que é ignorado nos casamentos modernos. Na tradição judaica a noiva era
desvelada apenas antes da consumação do casamento.
Não é claro
que o uso do véu no casamento seja uso não religioso, uma vez que na tradição
ocidental os casamentos quase sempre aconteciam em situações religiosas.
Entretanto, o uso do véu no casamento predata a associação da cerimónia do
casamento à religião cristã. Com efeito, as noivas romanas usavam
véus coloridos para espantar maus espíritos, o que era um dado da religião
romana. Posteriormente, o véu foi adotado nas cerimónias cristãs. E, tornado
símbolo de virgindade, passou a ser adotado por mulheres cristãs que
consagravam a virgindade a Cristo.
***
O símbolo do véu tem duplo e aparentemente incoerente
significado, pois tanto pode ser forma de revelar ocultando como forma de
ocultar revelando. Tudo o que é oculto em parte, como a maior parte dos
mistérios, convida ao conhecimento; e tudo o que é demasiado revelado pode-o
ser para deliberadamente ocultar algo.
Na religião cristã “tomar o véu” significa afastamento do
mundo e aproximação a Deus, mas o véu também cobre, nas religiões de
tradição semita, o rosto de Deus. Por isso, Moisés cobriu o seu
rosto quando falou na Palavra de Deus ao povo hebreu. O ocultar do rosto por
detrás do véu é, na cultura islâmica em relação às mulheres e na cultura cristã
em relação às religiosas, uma forma de ocultação da sua sexualidade. Em árabe a
palavra hijab significa véu e a separação de duas coisas
e, segundo a tradição, Deus falava através de véu. Muitos dos
tratados sufis (da corrente mística e contemplativa do islão) tinham o título
de Desvelamento, Kashf, ou seja
revelação da verdade divina no afastar do véu dos sentidos que impede a
perceção da verdadeira realidade. Para o islão, o rosto de Deus era
ocultado por sete mil véus de luz e de trevas, pois o olhar direto e puro
de Deus consumiria tudo o que alcançasse, e Deus concedeu
aos seres humanos um véu que os protege da realidade que pode revelar e cegar
como o Sol. O Templo de Jerusalém tinha o véu que separava o Santo do Santo dos
Santos e que (diz o Evangelho) rasgou aquando
da morte de Cristo. No budismo o véu é simbolizado pelo Maia que encobre
e revela a realidade pura.
A conotação sagrada do véu fez com que fizesse parte dos
acessórios de muitas dinastias que se julgavam de origem divina. Assim, os
imperadores da China recebiam as visitas por detrás dum um véu,
podendo, tal como as divindades, ver sem serem vistos. Outros reis chamavam véu
ao camareiro que transmitia as suas ordens, já que este era o intermediário da
sua vontade.
A deusa dos tempos antigos apresentava-se velada ao
representar o futuro e as pessoas criam que quem olhasse para lá do véu podia
presenciar a sua própria morte. A deusa era representada ocultada por sete
véus, que simbolizavam as esferas planetárias para lá das quais se escondia o
verdadeiro rosto da deusa. Este era o significado dos sete véus de Salomé, a
sacerdotisa da deusa Istar que, tal como a divindade egípcia Ísis, tinha o
seu ritual ligado ao uso dos véus.
A questão que hoje se levanta é se a burka, tornada espesso véu de quase totalidade do corpo, exceto da
face, é admissível em espaços que prezam a livre circulação de pessoas e bens,
mas de rosto aberto, sem constrições pessoais e sem provocações a outras
culturas, substituindo radicalmente trajes tradicionais – bem mais genuínos – de
vários países e sociedades.
2021.02.16 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário