quarta-feira, 30 de junho de 2021

Publicar o que alguém não quer que se publique…

 

Para muitos, é essa a função do jornalismo, que fica vinculado ao exótico princípio de que “jornalismo é publicar aquilo que alguém não quer que se publique; tudo o resto é publicidade”, o lema do “Tal & Qual” inscrito no frontispício de cada exemplar das diversas edições.

Parece anódino o chavão formulado por William Randolph Hearst e geralmente atribuído a George Orwell (pseudónimo do escritor Eric Arthur Blair), uma frase reflexiva e querida dos jornalistas e muito citada por professores de Jornalismo a marcar o estatuto de independência dos jornalistas em relação aos poderes.

Não obstante, se atendermos ao perfil de William Randolph Hearst, veremos quais as suas verdadeiras intenções neste campo: mais do que a independência em relação aos poderes – político e/ou económico –, mais do que informação e pior que publicidade e propaganda, temos, nas malhas da sua produção, a sede de protagonismo, o sensacionalismo, uma forma específica de combate político e empresarial, enchendo-se a boca com o chavão do jornalismo como 4.º poder ou como contrapoder na perspetiva de alguns.

Hearst, nascido a 29 de abril de 1863 e falecido a 14 de agosto de 1951,  foi um empresário americano do ramo de editoras que criou uma enorme rede de jornais e cujos métodos influenciaram a indústria do jornalismo nos EUA.

Começou como empresário em 1887 após a assunção do controlo do jornal “The San Francisco Examiner”, que era do pai (que o adquirira havia 7 anos). Transferindo-se para Nova Iorque, comprou o “The New York Journal” entrando numa guerra de negócios com o “The New York”, de Joseph Pulitzer (em memória de quem são entregues os prémios Pulitzer desde 1917), e criou a noção de “imprensa marrom” – histórias sensacionalistas de veracidade duvidosa, construindo um jornalismo cujo objetivo é a venda (em rádio e televisão, audiências) de notícias, divulgando de forma exagerada factos e acontecimentos, sem compromisso com a autenticidade. Comprando mais jornais, criou uma rede de mais de 30 jornais (28 diários) sob o seu controlo no país, e, mais tarde, comprando também revistas (18), liderou um dos maiores conglomerados de jornalismo do mundo.

Foi duas vezes eleito pelo Partido Democrata para a Câmara de Representantes dos Estados Unidos e candidatou-se sem êxito à prefeitura de Nova Iorque em 1905 e 1909, para governador do Estado em 1906 e vice-governador em 1910. No entanto, com os seus jornais e revistas, exercia enorme influência política e era acusado de fazer jornalismo sensacionalista. Apesar de pertencer, por mais de 30 anos, à ala populista dos Democratas, Hearst era conservador, nacionalista e fervoroso anticomunista. Defensor da Lei Seca, depois fez lobby, por meio dos seus jornais, para ilegalizar várias drogas psicotrópicas, sobretudo as que afetavam indústrias que financiavam os seus jornais, como a indústria farmacêutica ou a de celulose. Tornou-se conhecido por ser um dos principais apoiantes da Mariahuana Tax Act of 1937, que tornou ilegal a maconha (canábis) nos EUA. Assim como outras de suas iniciativas, usava o poder dos seus jornais para tentar manipular a opinião pública, trazendo apoio às suas iniciativas políticas.

A sua vida – de contradição política e de ambição empresarial – serviu de inspiração para a personagem principal do filme “Citizen Kane”, de Orson Welles.

Comparativamente com este jornalismo sensacionalista e agressivo ou com o jornalismo anódino que se limita a dar notícias – verdadeiras, falsas ou distorcedoras de factos –, será de perfilhar a perspetiva de Pulitzer.

Joseph Pulitzer, nascido, a 10 de abril de 1847, na vila de Makó no Império Austro-Húngaro no seio duma família judia abastada (o pai era um comerciante influente), foi educado em escolas privadas em Budapeste. Com 17 anos, tentou ingressar nos exércitos do Império Austro-Húngaro e do Reino Unido, mas não foi admitido devido à sua frágil saúde e débil visão. Assim, decidiu emigrar, em 1864, para os EUA, onde serviu nas fileiras do exército federal, num regimento de cavalaria, durante a Guerra de Secessão.

Após a guerra, trabalhou em St. Louis (Missouri) como carregador, bagageiro e empregado de mesa, enquanto estudava, na Biblioteca, Inglês e Direito, e participava na política, tendo-se tornado, em 1869, membro da legislatura do Missouri.

Em 1866, teve o seu primeiro emprego como repórter no jornal alemão “Westliche Poste”, de que adquiriu uma parte 5 anos depois. Aos 25 anos, tornou-se editor e, em 1874 foi admitido em Washington D.C., onde passou a trabalhar como correspondente para o “New York Sun”. Em 1878, criou o “Post-Dispatchs” em St. Louis, pela fusão de dois jornais, o “Dispatch” e o “Evening Post”, tornando-se figura proeminente na cena jornalística.

Após a mudança para Nova Iorque, comprou, em 1883, o jornal “The Word”, que passou a ser um dos jornais mais importantes da época. Pulitzer, adiantando os valores pelos quais se pautaria mais tarde, anunciou que o seu jornal seria “truly democratic, dedicated to the cause of the people rather than to that of the purse potentatates”.

Revolucionou os jornais com técnicas que alguns admiraram como um “novo jornalismo” e outros censuraram como “jornalismo amarelo”. Porém, esta proeminente figura da imprensa praticou um jornalismo rigoroso, divulgando e combatendo a corrupção política e proclamando-se “um defensor do lado das pessoas e um porta-voz da democracia”. Lutando por menos horas de trabalho para os operários e por melhores condições de vida para os pobres, atacou as grandes companhias e monopólios laborais. Foi responsável por uma grande parte da legislação antitrust e pela regulamentação de companhias de seguro industriais. Ao mesmo tempo, foi acusado de preencher as colunas do jornal com uma onda sensacionalista, já que aliava algumas inovações como cartoons, dedicava uma página ao desporto e outra às mulheres, editava uma secção para a abordagem de crimes, desastres (mudando totalmente a capa e a disposição do jornal) e fazia uso exaustivo de imagens, gráficos, cor e publicidade e, ainda, de títulos em letras garrafais. Para Pulitzer “presentation is everything”.

Nos anos 90, foi mesmo acusado de práticas de “yellow journalism” (jornalismo amarelo), visto que utilizava títulos destacados, notícias sensacionalistas, imagens e publicidade, com o objetivo de atrair leitores da classe trabalhadora e imigrantes. O seu propósito era aproximar-se das camadas sociais mais desfavorecidas, o que conseguiu através da adoção no jornal do ponto de vista delas e da utilização destes elementos que tornavam o jornal mais atrativo. Acreditava que o jornalismo era um serviço público, isto é, destinado às pessoas “pequenas” e não servindo os interesses do grande poder.

No quadro do combate contra a corrupção política por meio da investigação persistia, “The World” publicou, em 1909, um pagamento fraudulento de US$ 40 milhões feito pelos Estados Unidos à Companhia Francesa do Canal do Panamá. A resistência de Joseph Pulitzer a todo o tipo de pressões e a continuação da investigação constituíram uma vitória crucial para a liberdade de imprensa.

Em maio de 1904, escrevendo para a revista “The American Review”, o jornalista sintetizou a sua convicção nos seguintes termos:

Our Republic and its press will rise or fall together (…). The power to mold the future of the Republic will be in the hands of the journalists of future generations.”.

Tinha ficado cego, havia alguns anos, este editor e jornalista norte-americano e viajava a bordo do seu iate Liberty (como fazia outras vezes em que o seu estado de saúde piorava) quando morreu, em 1911. Está sepultado no Cemitério de Woodlawn.

Em 1903 havia entregue à Universidade Columbia a quantia de um milhão de dólares destinada à criação de uma escola de jornalismo, a Columbia University Graduate School of Journalism, cuja primeira pedra foi lançada em 1912, nove meses após a sua morte.

Os prémios Pulitzerm entregues desde 1917, têm como objetivo distinguir anualmente personalidades de diferentes áreas do jornalismo e da literatura que se destacaram ao longo do ano pelo seu trabalho. O objetivo do prémio é, pois, “encorajar e distinguir a excelência”.

***

Posto isto, não é difícil concluir e aceitar que o jornalismo para ser um poder notável, enquanto meio de influência na evolução da sociedade e produtor do conhecimento ao nível de factos, ideias, sentimentos, ciência e artes, é uma estrutura em cadeia – de política, social e económica – que está ao serviço geral da comunidade e persegue a defesa e a promoção do interesse público. E, para que seja um poder legítimo e eficaz (poder que não é o 4.º, pois não é da natureza dos demais), não um contrapoder (como querem alguns), tem de prosseguir num êthos robusto e respeitar os princípios éticos da investigação, comunicação e apreciação dos factos.

A sua primeira função é a informação tão completa como possível e pautada pela objetividade. Por isso, a notícia tem de basear-se em facto verdadeiro e sem distorção ou acrescentamento. Deve ser bem estruturada, clara e impactante. Mas, como é necessário ir e ver localmente, a reportagem, complementada por entrevistas e imagens, é um dos meios para introduzir as pessoas no mundo real de êxitos e dramas. Nesta linha de informação cabe obviamente a denúncia das maldades políticas e empresariais, do mundo dos desfavorecidos e oprimidos, bem como o destaque aos êxitos, embora sem quaisquer laivos de servilismo.

Não obstante, o jornalismo tem de ser um palco aberto da exposição e debate de ideias. Neste âmbito, cabe a promoção de ideias, valores, sentimentos, desportos, instituições. É uma função promotora e formativa que se cumpre numa atitude pluralista. Partidos políticos, confissões religiosas, entidades de filantropia e as agremiações que lutam pelas grandes causas usam o jornalismo neste aspeto. É o espaço do debate, da crónica do artigo de opinião, da grande entrevista, do painel, da mesa redonda, etc.

O jornalismo é um meio legítimo de publicidade institucional e comercial, como de promoção e campanhas políticas, ideárias e empresariais. Porém, não pode ser veículo de publicidade enganosa nem de fraude política, científica ou económica, pelo que, neste sentido, há lugar para a atempada denúncia ancorada na investigação, sem revelação das fontes, sem exageros e sem achincalhamento das pessoas. Tem aqui lugar atividades atinentes à luta pelas grandes causas.

O jornalismo é também um espaço de entretenimento e registo de itens de curiosidade e de interesse comezinho, que não mesquinho. Daí, os jogos, os instrumentos de lazer, as caricaturas e cartoons, a banda desenhada, o folhetim, etc., que servem o quotidiano.

As vezes, enfada a literatura do jornalismo cor-de-rosa, que expõe indecentemente a vida familiar, de relação social e até de intimidade e imagem de pessoas. É certo que a liberdade de expressão é um direito fundamental, sendo ténue a fronteira entre essa e o direito à imagem e à preservação da intimidade pessoal (sobretudo se o/a visado/a não autorizaram), como a fronteira com o direto do cidadão a não ser importunado. É óbvio que o cidadão é livre de ler ou não um livro, um jornal ou uma revista ou ouvir um tempo de rádio. Mas penso que um serviço de televisão deveria ter mais cuidado nos conteúdos que faz entrar nas nossas casas, não devendo, em todo o caso, ser o Estado ou o poder económico a ditar os itens da ética jornalística.  

Enfim, o jornalismo, como poder moderador na sociedade, mesmo em política e encadeamento económico e sociocultural, informa, forma, denuncia, escalpeliza, promove, entretém. Para tanto, deve primar pela independência relativamente ao poder político, o que nem sempre é fácil, embora deva respeitar as leis e regulamentos legitimamente elaborados e publicados, e relativamente aos poderes económicos, o que, às vezes, é difícil e leva à quebra da objetividade e à subserviência, mormente se está em causa uma carreira ou a sobrevivência pessoal e/ou familiar. Na verdade, ninguém gosta de ficar debaixo da caneta crítica do jornalista, estampado na página, retido na câmara fotográfica ou a bailar na câmara de vídeo.   

Não obstante, ninguém tenha dúvidas: a objetividade não é um absoluto ou um adquirido, mas aprende-se e exerce-se; e a independência não significa sobranceria ou arrogância, mas é compatível com o respeito, a cooperação e a interação, nunca, porém, deixando de parte a denúncia, a dignidade humana, social e profissional do jornalista ou a daqueles e daquelas que estiveram, estão ou vierem a estar sob o olhar do jornalista.

Assim, jornalismo é “publicar aquilo que alguém não quer que se publique”, mas também “aquilo que legitimamente alguém quer que se publique”, desse que esteja em causa a promoção ou a defesa do interesse público. E a comunicação é uma das marcas fortes do ser humano e das comunidades em que se integra ou com as quais se relaciona e interage.

2021.06.30 – Louro de Carvalho

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