segunda-feira, 28 de junho de 2021

Quando a pandemia afeta mentes, comportamentos e discursos…

 

Apraz-me a atribuir alguns dos desmandos verificados nos últimos tempos aos efeitos da pandemia de covid-19 provocada pelo novo coronavírus SARS-Cov-2, para não o imputar à mediocridade instalada em vários setores das sociedades.

Desde logo, a teoria da conspiração formulada sem suporte investigatório contra a China e/ou laboratórios americanos, passando pela fuga acidental do vírus a partir de um dos laboratórios.

Depois, ao lado do pânico geral que se instalou nos diversos países em que não se podia tocar em nada, com base em ciência ainda sem provas dadas, aflorou o negacionismo em alguns ditos cientistas e em líderes de topo de países com relevante tamanho ou significado no concerto das nações. E, enquanto se acusava a China do forçado eclipse de pessoas por terem posto a boca no trombone alegadamente sem razão suficiente, muitos países mostraram a impreparação dos seus sistemas de saúde e ordenaram situação de calamidade pública e estados de emergência, com os respetivos confinamentos e muitas outras medidas restritivas no sistema de acordeão, conforme a incidência e o R(t) do vírus subia ou descia.

Não esqueço que Portugal, já com países como a Itália de barbas a arder, ainda só elegia como hospitais de referência dois, um em Lisboa e outro no Porto. Fechar escolas, estabelecer cercas sanitárias, nem pensar. E, daí, decretou-se encerramento de escolas, casas de comércio, serviços importantes…, o que fez parar a economia; encerraram-se igrejas, clandestinizaram-se funerais, coarctaram-se visitas a hospitais e a lares de 3.ª idade; os hospitais encheram-se de internados covid-19; e as outras maleitas graves foram arredadas da fila. Entretanto, com os briefings diários e a proliferação de notícias e opiniões na comunicação social mais se confundiram os cidadãos, muitos dos quais foram remetidos para dentro das quatro paredes do seu domicílio, alguns dos quais tiveram que sofrer o isolamento por via da quarentena mercê da infeção ou da sua suspeita ou mesmo em razão da provecta idade ou da pertença a certos grupos de risco. Entretanto, instalou-se o dilema entre salvar a saúde e estiolar a economia ou recuperar a economia em detrimento da saúde. E a isto juntou-se a plêiade de juristas a contestar a constitucionalidade de algumas medidas restritivas, no que foi acompanhada por tribunais – e mesmo tribunais superiores – quando lhes foram presentes casos de incumprimento.

Enquanto os surtos se multiplicavam, os números internamentos subiam e os cuidados intensivos tinham dificuldade em dar resposta, alguns aproveitaram-se bem da situação e enriqueceram, o que sucedeu também com a produção de vacinas. Adquiriram-se materiais sem qualidade e foram oferecidos equipamentos sem préstimo, como ventiladores adquiridos na China, que vinham com as instruções em mandarim, o que levou tempo a descodificar. 

E, se a onda de solidariedade se formou e alastrou, os fura-regras não cessaram. E as pessoas iam morrendo sem que os familiares pudessem fazer um luto minimamente decente. Mas os hospitais públicos multiplicaram-se em esforço de resposta e lograram muitos êxitos, mesmo contra o expectável. E a esperança colocou-se na ciência que nos ia dar a cura ou as vacinas. Até lá, cuidado, restrições, privações e sofrimento. E, cansados, fomos aguentando…

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O que se passou nos últimos tempos não deixa de ser preocupante.

Já nos vínhamos habitando a que o discurso do Presidente da República pontificasse com relação ao do Governo, a quem incumbe a orientação geral da política do país, e ao dos cientistas, a quem incumbe aconselhar os decisores políticos. Mas estes depararam-se com as divergências entre especialistas, apesar de a ciência dever ser ouvida mestas ocasiões, pelo que as propostas apresentadas aos decisores deveriam reunir sempre um consenso mínimo.

Entretanto, o Chefe de Estado, que estava, a princípio, solidário com as medidas do Governo, que, juntamente com o Parlamento, sempre lhe deu suporte político para as sucessivas declarações de estado de emergência e, subsequentemente, procedeu à tomada das necessárias medidas, chegou a demarcar-se do programa de vacinação contra covid-19, porque a campanha de vacinação contra gripe sazonal não correra bem, e, como teria falado com os fornecedores, que garantiram o fornecimento das vacinas a tempo, não queria colar-se ao insucesso do programa. E o político que nos sujeitou a duas séries de edições de estado de emergência, da segunda vez alegadamente para dar suporte constitucional ao Governo para aplicação de algumas medidas restritivas, veio, não há muito tempo, “sugerir” a revisão da matriz dos critérios do confinamento/desconfinamento, porque já muita gente estava vacinada e já não se justificavam tantas medidas restritivas, até porque já não havia pressão sobre o SNS como dantes. Esquecia que a incidência e o R(t) estavam em fase de ascensão, sobretudo na região de Lisboa e Vale do Tejo (LVT), a mais densamente populosa.

E, embora tenha porfiado que respeitava as opiniões dos especialistas, como estes não estiveram de acordo com a sua sugestão, contestou e levantou dúvidas. Também é de recordar que, no início do seu novo mandato presidencial, declarara não se pronunciar sobre as normas e fases de desconfinamento que o Governo ia estabelecer porque não as conhecia, para vir dizer, no dia seguinte, a partir de Roma, que foi informado das decisões do Conselho de Ministros, que eram equilibradas e que muitas delas tinham sido concertadas previamente consigo. Desta feita, como obviamente o Governo preferiu seguir a linha indicada pelos especialistas, veio dizer, quando interpelado, que o Executivo decidiu entre dois fundamentalismos.

Entretanto, quando se desconfia da não eficácia prevista das vacinas, não se sabendo do tempo de vigência da imunização (pela via vacinal ou pela via da contração do vírus), quando a incidência e o R(t) sobem drasticamente no país, com a variante Delta (Índia) e a Delta plus (Nepal), pessoas já completamente vacinadas ficam infetadas e algumas morreram, recordo a troca de galhardetes entre Presidente e Primeiro-Ministro sobre confinamento. O Presidente garantiu que, no que de si depender, não haverá mais confinamento – asserção temerária, pois ninguém sabe do futuro próximo (a ciência, em que se confia, não é absoluta) – não valendo dizer que se referia ao estado de emergência, que bem pode vir a ser necessário; e o Primeiro-Ministro veio dizer que ninguém, nem o Presidente da República, poderia garantir que não haveria confinamento. Diz-se que António Costa escusava de referir o Presidente (não sei porquê), mas que as suas palavras não envolvem desautorização como supuseram os jornalistas que interpelaram Marcelo. Este disse que nunca o Presidente pode ser desautorizado pelo Primeiro-Ministro, pois é o Presidente que nomeia o Primeiro-Ministro (era escusado este esclarecimento, que não é exato, pois a nomeação não é de inteira liberdade do Presidente). E Costa nega que tenha desautorizado o Presidente (até desautorizou…).

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Depois, veio a futebolomania. À final da Champions League, sem público, oferecida e propalada em Lisboa, no Palácio de Belém, em 2020, sucedeu a deste ano no Dragão.

António Costa até disse, em 2020, que era um presente aos profissionais de saúde. Pasme-se! Este ano, contra o que sucedeu, o ano passado, com o campeão nacional, a festa do Sporting nas imediações do Estádio e nas principais artérias de Lisboa constituíram um atentado às regras de um confinamento gradual e controlado. Todavia, os responsáveis assobiaram para o lado… A seguir, o Primeiro-Ministro britânico coloca Portugal na lista verde para deslocações entre o Reino Unido e Portugal. Sem mais, abriu-se a porta a ingleses, obviamente mediante condições, mas cuja aplicação não foi controlada pelas autoridades. Neste contexto, aos jogadores e adeptos que vieram ao Dragão e regressaram ao Reino Unido em sistema de bolha e controlo juntaram-se os que advieram de outros pontos de país, sobretudo do Algarve, e que enxamearam as ruas do Porto e sem respeito pelas condições de proteção individual e comunitária.

Nisto, o Governo britânico retirou Portugal da lista verde, o que prejudicou o turismo algarvio e revelou menosprezo pela deferência de Portugal ter acolhido a final da Champions League entre duas equipas inglesas. Provavelmente foram os ingleses que deixaram aqui a variante Delta!

Entretanto, Merkel atirou-se a Portugal por via disto sem a devida fundamentação e Costa respondeu que não havia ligação entre os ingleses no Porto e a subida da incidência e do R(t), não sei com que fundamentação científica. Ainda bem que Marcelo e a Ministra da Saúde colocaram bem a questão da multifatoriedade e da versatilidade da direção das variantes…     

Eu não tenho nada contra a presença do Presidente da República, de membros do Governo ou do Parlamento nos jogos da Seleção de Portugal. Porém, a obsessão generalizada pelo futebol, sobretudo em tempo como aquele que estamos a atravessar, causa-me comichão.

Com efeito, a aposta de Marcelo e Orbán à garrafa do melhor vinho não abona sobre as altas figuras dos Estados. O apelo dramático de Ferro Rodrigues a que os portugueses acorressem em massa a Sevilha assistir ao Bélgica-Portugal, a recomendação do mesmo aos deputados que pudessem estar presentes e a explicação de Marcelo sobre o apelo de Ferro Rodrigues desdizem da atenção de algumas das figuras do Estado à situação da evolução da pandemia no país e em particular da AML, onde o Governo determinou fortes restrições nomeadamente de circulação de e para a AML, bem como as condições vigentes em Sevilha. Nem a ausência de Marcelo e de Ferro do jogo de Sevilha os iliba, pois cederam às críticas que não acharam suficiente a explicação de que podiam ultrapassar as barreiras da AML os detentores do certificado digital UE. Era um insulto aos que não podem sair nem ter um momento folgado de lazer. Líderes não abandonam a sorte dos liderados.    

O JN deste dia 28 regista que alguns centros de vacinação verificam um aumento no número de pessoas que faltam à inoculação. Mesmo depois de a terem autoagendado e confirmado por SMS a marcação, o que se verificou de modo evidente aquando do jogo com a Alemanha. E as razões prendem-se com o futebol, mas também com os feriados e as férias, esquecendo os cidadãos que está em primeiro lugar a saúde pessoal e a saúde comunitária e que só depois vem o lazer e mesmo o filosofar: “Primum viver, deinde philosophari”.

O coordenador da “task force” da vacinação diz:

O que estamos a tentar fazer para evitar é [utilizar] a metodologia casa aberta. Primeiro na sua área de residência e depois, eventualmente, até fora da área de residência.”.

A “task force”, não dizendo se tem um “plano B” para a toma das segundas doses, caso calhe em época de férias, apela a que a população cumpra o esquema vacinal proposto.

É certo que a realidade é diferente em vários sítios do país. Todavia, por se tratar de um sistema proativo, em que os utentes têm de procurar um local e uma data com vaga no sistema e depois confirmar a marcação, “é estranho” que o número de ausências seja elevado. No entanto, no caso das segundas tomas, é possível alterar a marcação. Assim, quando fazem a primeira dose, as pessoas podem pedir a alteração da data da segunda. Quanto à primeira dose, o utente deve contactar o centro de saúde e pedir a alteração.

Mas para quê, se todos estávamos à espera da vacina como solução, se todos conhecíamos o faseamento e estávamos advertidos para o passível atraso mercê do fornecimento de vacinas a conta-gotas? Onde está a máxima da “Salus Reipublicae lex suprema esto”?

E, sem falar já das vacinas dadas antes do tempo a funcionários de pastelaria, a gente cuja situação não era prioritária, regista-se ultimamente a decisão da diretora dum ACES de fazer a casa aberta a 100 jovens para quem ainda não estava autorizada a vacinação. Irresponsabilidade!   

Também os parlamentares parecem ziguezaguear. Por exemplo, o ano passado, produziram uma lei sobre eleições autárquicas, que alteraram em parte, este ano, sem conhecerem ainda o veredicto do Tribunal Constitucional. E recentemente aprovaram a Carta dos Direitos Digitais, mas, ainda antes de a lei entrar em vigor, já estão a pensar alterá-la!

O Primeiro-Ministro, na ânsia de fazer disparar a bazuca europeia, quis saber se já podia ir ao banco. E o Presidente quer que a sua Casa Civil, a que dá pouca relevância segundo o “Tal e Qual”, policie a aplicação dos fundos europeus, talvez superando o Tribunal de Contas ou o Ministério Público…    

As redes sociais estão a veicular uma falsa informação, alegadamente com base científica, segundo a qual as pessoas que foram vacinadas contra a covid-19 morrerão até 2025. Se isso fosse verdade, ficaríamos com o mundo reduzido a um terço…   

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Por fim, uma preciosidade do poder judicial. O JN e o Notícias ao Minuto acabam de publicar que o Tribunal da Relação de Guimarães, confirmando a 1.ª instância, absolveu o homem que chamou arrogante e mau profissional a agente da PSP e disse que não prestava, frisando que o polícia deve ter “acrescida tolerância” a estas formas de expressão. O acórdão considera que tais palavras “não têm suficiente dignidade penal para o efeito de integrar o tipo legal de crime de injúria”. Mais: quem exerce funções públicas está sujeito à crítica objetiva, acrescentando que, nesse contexto, “são compreensíveis os exageros na crítica, a animosidade, os excessos de linguagem, a grosseria e a má educação” (Ora bolas!). E diz ser exigível a quem exerce funções públicas que “disponha da capacidade de aceitar a crítica, ainda que injusta ou imerecida, a falta de civismo e de pacífica convivência social”. Tais expressões remetem para a ideia de que o arguido quis, no âmbito da liberdade de expressão, “criticar o comportamento do assistente no exercício das suas funções profissionais e não atingir a sua dignidade ou honra”.

Entretanto, o JN recorda que a Relação de Lisboa absolveu a mulher que chamou palhaços a agentes da PSP, pois usou linguagem grosseira e ordinária, mas que não configura ilícito criminal, mas condenou o homem que mandou três agentes “pró…”. E sabe-se que polícias foram condenados por mandarem atoardas verbais contra detidos ou contra simples autuandos.

Como o Presidente do CES conseguiu a aprovação dum abstruso manual de linguagens para comunicação entre os elementos do CES e com as outras entidades, o CSMP (Conselho Superior do Ministério Público) ou o CSM (Conselho Superior da Magistratura) podiam fornecer aos cidadãos lista de palavras e expressões que constituem ilícito criminal e das que apenas revelam má educação. Depois, esclareçam se os juízes são funcionários públicos (têm sindicato) a ver se podemos ser mal-educados para com eles. É que órgão de soberania são os tribunais como um todo.

2021.06.28 – Louro de Carvalho

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