O enunciado
em epígrafe corresponde a duas indicações de Jesus numa demonstração da sua
aposta pela vida: a primeira é dirigida à hemorroísa (do grego “haimórroos, on” – que provoca fluxo de
sangue) depois que ela se sentiu curada; a
segunda é dirigida a Jairo quando lhe vieram dizer que a filha tinha morrido.
Na verdade,
o Evangelho deste domingo XIII do Tempo Comum no Ano B (Mc 5,21-43) relata dois milagres de Jesus, em que um surge
ensanduichado pelo outro. Jairo, um dos chefes da sinagoga (Mc 5,22-24), vendo Jesus, caiu aos seus pés e suplicou-Lhe muito (“pollá”):
“A minha filhinha (thygátrion: diminutivo
de tygátêr) está a morrer. Vem impor-lhe as mãos, para que se salve e viva.”.
Jesus correspondeu
prontamente a este apelo à vida e foi com ele (“met’ autoû”) rodeado de grande multidão que O apertava (“synéthlibon autón”).
Entretanto,
a caminhada para casa de Jairo sofre um incidente (Mc 5,25-34): uma mulher anónima sofria duma grave hemorragia
havia 12 anos, situação física, social e religiosamente dolorosa, pois a
tornava impura e distante de Deus e das pessoas, mas, com a ousadia inspirada
na fé e na confiança, chega junto de Jesus e toca-Lhe por detrás na fímbria do
manto, de modo a que ninguém, nem mesmo Jesus se apercebesse (estava
convicta de que tocando a orla do manto de Jesus teria a cura que os vários
médicos que a tentaram tratar não conseguiram).
Porém, em
vez do relato atinente à hemorroísa ter ficado por aqui, Jesus tira partido do
episódio para uma lição de fé, não deixando que a história da mulher se
circunscreva ao aspeto físico e mesmo anónimo. Assim interpela a multidão: “Quem me tocou as vestes?” (“tís mou hêpsato tôn himatíôn;”: Mc 5,30). Os discípulos desvalorizam a interpelação aduzindo a
compressão produzida pela multidão que O rodeava. Não obstante, o Senhor
prossegue na sua aproximação àquela mulher que, pela sua enorme fé, passa a
integrar a família de Jesus, pois recebe o raro apelativo de Jesus a uma
mulher, “filha”. Com efeito, a mulher a
temer e a tremer, prostrou-se diante de Jesus e contou toda a verdade da sua
vida. E Jesus sentenciou a maravilha da fé, “Filha, a tua fé te salvou” (“thygátêr, hê pístis sou sésômén se”); e continuou dizendo. “Vai em paz e
fica curada da tua enfermidade” (“hýpage eis eirênên, kaì ísthi hygiês apò tês mástigós sou”) (Mc
5,34).
Jesus, na
verdade, acompanha-nos sempre e detém-se sobretudo com aqueles que sofrem e os
acompanha: partilha o caminho e as dores; tira-os do anonimato e do buraco em
que estavam.
Estava a dar
a impressão de o Mestre se esquecera do pedido de Jairo. Mas não. Resolvido um
problema, Jesus passa ao seguinte (Mc 5,35-43). Todavia, enquanto prossegue a marcha, os criados de
Jairo trazem a triste notícia de que a morte chegou a casa da menina antes de
Jesus, não valendo a pena continuar a incomodá-Lo. E Jesus, que até agora tinha
acompanhado aquele pai sem dizer nada, agora conforta o homem destroçado pela
notícia da morte: “Não tenhas medo; tem
apenas fé!” (“mê phóboû,
mónon písteue”: Mc 5,36).
Jesus, que
nunca chega atrasado, apenas Se demora connosco pelo caminho, chegou muito a
tempo a casa de Jairo. E, face aos fortes prantos e lamentações, proclama: “A menina não morreu, mas dorme” (“tò paidíon ouk apéthanen, allà katheúdei”:
Mc 5,39).
Dom António
Couto, Bispo de Lamego, chama a atenção para a recorrência deste modo de falar
da morte como de um sono na Igreja primitiva (1Ts 4,13-15; 1Cor 11,30; 15,6 e 20;
Mt 27,52) e na tradição da Igreja ainda hoje,
sendo que a palavra “cemitério” deriva do grego koimêtêrion, que
significa literalmente “dormitório”, pelo que, na liturgia, é habitual rezarmos
pelos nossos irmãos que adormeceram em Cristo. Jesus entra na divisão da casa
onde está a menina apenas com o pai, a mãe da menina e três apóstolos (Pedro,
Tiago e João). E vinca o
predito prelado académico o número sete dos presentes, sublinhando que Jesus,
com a plenitude (é o significado do número 7), “rasga a nossa planitude”.
Frisando Dom
António Couto a soberania de Jesus na sua voz e no seu gesto, não deixa de
vincar a ternura o Mestre taumaturgo. A este respeito não deixa de ser
interessante o pequeno “excursus” que
faz sobre a expressão “Talitha, qûm!” (“tò korásion, soì légô, égeire”):
“Pegando ternamente na mão da
menina, Jesus diz, em aramaico, língua materna de Jesus e da menina: «Talitha,
qûm!» [= menina, filha, irmã, levanta-te!] (Mc 5,41). Não passa
despercebido que a palavra de Jesus interpela a própria morte e trata aquela
menina ternamente por irmã, irmãzinha, sua irmã querida. Na verdade, o
aramaico Talitha é o feminino de Talyaʼ. E o
aramaico Talyaʼ é a mais bela, plena e significativa palavra
para dizer Jesus, pois significa ao mesmo tempo «filho», «cordeiro», «servo»,
«pão». Sim, Jesus é o «Filho de Deus», o «Cordeiro de Deus», o «Servo de Deus»,
o «Pão de Deus». Como se vê, Talyaʼ diz o Jesus todo, sendo
Ele a vida verdadeira, ressuscitada, levantada, que liberta e alimenta,
ressuscita e levanta.”.
Como a
hemorroísa também a filha de Jairo é considerada família de Jesus.
Não posso
deixar de referir que, tal como dizia hoje o Padre Passionista João Paulo
Silva, tanto a hemorroísa, que sofria da sua enfermidade há 12 anos, como esta
menina, que tinha 12 anos de idade, simbolizam a comunidade de Israel
organizada nas suas 12 tribos e a comunidade cristã fundada por Cristo sobre os
12 apóstolos, uma transformação na continuidade permanentemente renovada e com
total abertura a todos e a todas.
Como afirma
o pároco de São Luís, de Faro, as
duas beneficiárias das ações de Jesus neste têm em comum os 12 anos: a primeira
estava doente desde os 12 anos e a jovem filha morreu aos 12 anos, idade em que
se devia tornar mulher. No povo de Israel, o percurso destas duas mulheres era
sinal de fracasso. Uma
estava atingida na sua fecundidade, como Sara, a mulher de Abraão, visto que
perdia o sangue, princípio de vida na mentalidade semítica; a outra perdia a
vida na idade em que se preparava para a transmitir (era
tradição casar-se muito cedo).
Ora, Cristo, curando as duas, permite-lhes assumir a sua vocação maternal:
trunfa pela vida.
Assim, estas
duas mulheres representam a Igreja na sua vocação maternal de dar e de
alimentar a vida em Cristo. Efetivamente, as alusões aos mistérios da Igreja
orientam a compreensão do relato: Jairo pede a Jesus que imponha as mãos para
salvar e dar a vida à filha, quando toda a preparação para o Batismo está
sinalizada pela imposição das mãos. Jesus levanta a jovem, tomando-a pela mão, tal
como o diácono fazia sair da água o batizado, tomando-o pela mão a despertá-lo
para a vida em Deus. E Jesus, para que não se distraíssem com o prodígio, manda
dar de comer à jovem ressuscitada da morte, alusão à Eucaristia que se segue ao
Batismo. Porém, alude também à necessidade do alimento corporal, comum a todos
os seres humanos.
Diz o Bispo
de Lamego que a voz de Jesus “é mais fina
do que o silêncio (cf 1Rs
19,12), mais afiada e eficaz do que a lâmina do bisturi (Heb 4,12), mais íntima e apelativa do que a chama que,
da sarça, chama Moisés (cf Ex 3,4) ou queima o coração dos dois de Emaús (cf Lc
24,32) ou do que as línguas de fogo daquele ardente Pentecostes (cf At 2,3).”. Como “voz
nova que quebra as nossas crostas”, “desde dentro, queima, purifica, limpa,
corta, opera, atravessa o coração”.
Não podemos
deixar de pensar e sentir que O Reino de Deus é a vida. Por isso, Jesus, no
contexto e para o objetivo da pregação do Reino percorre o país a anunciá-lo e
implantá-lo. Fala e age. A sua fama espalha-se, porque brota d’Ele, a força da
ressurreição, o Espírito de vida. “Fica
curada” é um imperativo que tem algo de muito afetuoso para com a mulher
restaurada na sua dignidade e reinserida na sociedade que a excluía pelo seu
mal. Por outro lado, aparece como uma verificação: foi a sua fé que a salvou, o
que alegra Jesus, pois a cura é consequência da fé, que é fonte de vida e de
felicidade. E estoutro imperativo “Levanta-te”
é dinâmico e traduz o desmedido desejo de Deus em ver o homem vivo, o seu amor
incondicional pela vida. Evoca a ressurreição, o novo surgir da vida, o amor divino
que nos põe de pé. Jesus só pede ao pai da jovem que não tenha medo e tenha fé.
Da
ressuscitação da menina, Jesus manda que não se diga nada a ninguém (Mc 5,43), pois ela aponta para a verdadeira e plena ressurreição
de Jesus, que ainda não seria entendida, mas que não é para ser calada. É,
antes, para ser anunciada a todos os corações, a todos os povos.
Trata-se de
duas cenas únicas, plenas de humanidade e divindade. Passa Senhor Jesus à nossa
porta, entra-nos em casa, reveste de festa o nosso dorido coração e faz-nos
sentir seus irmãos.
Este passo do
Evangelho é o episódio da transformação pela fé. Um chefe de sinagoga cai de
joelhos e suplica a Jesus a cura da filha. Uma mulher atingida por grave
hemorragia não diz nada: contenta-se em tocar as vestes de Jesus, porque se
considera impura. Isto basta Àquele que veio para levantar a humanidade ferida.
São diversas as reações dos que acompanham Jesus. Riem-se d’Ele. Só a fé concita
um sinal de Jesus, a fé de Jairo, a fé da mulher, a fé de Pedro, Tiago e João.
É a fé que leva Jesus a agir e transforma os beneficiários: a mulher é curada,
a jovem levanta-se, as testemunhas ficam abaladas. Jesus, que não é um simples
taumaturgo, é reconhecido por aqueles que acreditam, mas recomenda
insistentemente que ninguém saiba, com receio, sem dúvida, de que se valorizem
os seus sinais sem se verem com o olhar da fé.
De Jesus
mergulhado no barulho e no aperto da multidão circula o rumor: vai fazer um
milagre, vai curar a menina de Jairo. A multidão comprime-se à volta de Jesus.
E uma mulher quer, a todo o custo, aproximar-se de Jesus para, ao menos, tocar
as suas vestes, pois também quer ser beneficiária do poder do homem de Deus,
ser curada da sua doença que dura há 12 anos. Ela chega por detrás, toca as
suas vestes. O mesmo acontece com Jairo que se aproxima.
No meio da
multidão, Jesus está atento a estas pessoas concretas, manifesta uma
disponibilidade extraordinária. Jesus está atento a cada um. Ninguém fica
anónimo aos seus olhos. Está habitado pelo amor de Deus para com os seus
filhos. No Coração do Pai, Jesus é capaz de uma atenção extrema a cada angústia
do ser humano. Não interessa quem possa vir junto d’Ele ou qual é a situação:
Jesus dará sempre a sua atenção como se cada um estivesse sozinho no mundo com
Ele. Isto continua a ser assim, agora que Jesus está na plenitude da glória do
seu Pai.
***
Como referência à 1.ª leitura (Sb 1,13-15;
2,23-24), sempre é de sublinhar que o Livro da Sabedoria foi composto um pouco
antes da vinda de Jesus, sendo a sua doutrina mais serena que a dos livros mais
antigos, sobretudo no atinente à apresentação do rosto de Deus.
O
trecho em referência leva-nos a proclamar, com toda a força, que “não foi Deus
quem fez a morte”. Ao invés do que sugerem ideias ainda muito espalhadas, segundo
as quais agradaria a Deus fazer morrer o homem, é preciso afirmar, sem margem
para dúvidas, que Ele, o Deus da vida, cria a vida e dá-a à humanidade,
modelada à sua imagem; restaura a vida, quando esta está em perigo de se
apagar; e dá a vida quando está perdida, como se vê pelo passo evangélico desta
dominga. A Sabedoria otimiza o mundo com a
luz da misericórdia de Deus. E o mundo assim otimizado não pode conter em si
nem a origem do pecado nem a morte. É, pois, ao demónio, autor do mal e pai da
mentira, não à mulher (cf Sir 25,24) nem à
serpente que o Livro atribui a entrada do pecado no mundo (Sb 2,24). Por
isso, tem razão o salmista ao dizer ao Senhor “Vivificaste-me”. Com efeito, no seguimento da proclamação deste
excerto do Livro da Sabedoria, o Salmo 30 exprime a experiência de um Deus que
quer a vida dos seus fiéis. Por isso, nós cantamos: “Eu Te louvo, Senhor, porque me salvaste”. E sabemos que, em Jesus
ressuscitado, para todos os que n’Ele acreditam, a oração do salmo encontra
toda a sua verdade.
Este salmo –
ligado à Festa da Dedicação do Templo, quando Judas Macabeu entrou no Templo de
Jerusalém em 164 e o fez purificar após um longo período de ocupação e
paganização pelos selêucidas – configura uma bela Ação de Graças ao Deus que
liberta o orante da tristeza, da doença, do luto e da morte, e o faz exultar de
vida, alegria e saúde. Na verdade, Deus muda as nossas situações difíceis e,
por vezes, sem saída, largas rotas de paz e felicidade.
***
E, no
atinente à 2.ª leitura (2Cor
8,7-15), Paulo rasga-nos
o horizonte da caridade tecida nas primeiras comunidades cristãs, que praticaram
a entreajuda e a partilha, não apenas entre os seus membros, mas também para
com as outras comunidades, sobretudo as necessitadas.
O apóstolo tinha
organizado uma coleta (“logeía”) junto das comunidades que tinha fundado na Ásia Menor,
na Macedónia e na Acaia, em prol dos irmãos de Jerusalém que estavam em
dificuldades. A iniciativa correspondia às orientações da jovem Igreja, segundo
At 4,32-35.
Paulo
justifica esta ação de partilha pela generosidade de Cristo: esta é modelo para
os cristãos e eles próprios já beneficiaram dela. E Paulo, reconhecendo que os
Coríntios “abundam em tudo (vd 2Cor 8,7) – em
fé (“pístei”) e
palavra (“lógôi”) e conhecimento (“gnôsei”) e todo o afinco (“pásê
spoudêi”) e no nosso
amor para convosco” (“têi ex hêmôn en hymîn apapêi”) – exorta a que primem nesta graça (generosidade) (“en taútêi têi káriti”) para com os irmãos necessitados de Jerusalém. Fá-lo, não pela
via do mando, mas em nome da autenticidade da caridade dos Coríntios.
À imagem Cristo
que, “sendo rico se fez pobre, para nos enriquecer com a sua pobreza” (2Cor 8,9), Paulo, que é, segundo Bento XVI, “o
maior missionário de todos os tempos”, e, para São Paulo VI, o “modelo de cada
evangelizador”, norteou a sua missão pela bússola: “Nós só nos devíamos lembrar dos pobres” (Gl 2,10). E, porque a atenção para com os
pobres constitui o critério de validação da missão, Paulo empenhou-se na predita
coleta mobilizando todas as Igrejas que fundara. Tal coleta intereclesial
constitui fenómeno único (hápax phainómenon) no mundo antigo,
a concretizar realidades fundamentais na Igreja, como a comunhão (“koinonia”), o serviço (“diakonía”) e sobretudo a graça (“kháris”), a graça servida por nós, como refere exemplarmente Paulo
(2Cor 8,19), com vista à glória do Senhor.
E aqui fica a
forte interpelação às Igrejas de hoje. Na verdade, a causa da vida mobiliza-nos
face à doença com vista à cura, contra a morte iminente com vista à sua protelação
quanto possível e, sobretudo, não a causando a ninguém. Mas tudo começa na
procura de que todos tenham o suficiente para viverem condignamente almejando a
igualdade, pois, como está escrito, “quem muito recolheu não teve em superabundância
e aquele que recolheu pouco não teve falta de nada (2Cor 8,15; cf Ex 16,18).
É a vida. Para
que a tenhamos e a tenhamos em abundância é que Ele veio ao mundo (cf Jo 10,10).
2021.06.27 – Louro de Carvalho
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