domingo, 13 de junho de 2021

O BES qual cesto de fruta meio estragada e demais enormidades

 

Nas comissões parlamentares de inquérito (CPI) à gestão da banca, os deponentes mimam-nos com atoardas curiosas. E a atual, que tem em vista apurar o que se passou com a resolução do BES e a venda do Novo Banco (NB), não se constitui em exceção, antes pelo contrário.

Já quase estávamos esquecidos de edições anteriores em que Zeinal Bava não se lembrava de nada, Vítor Constâncio de quase nada se lembrava e Carlos Costa tinha memória seletiva, ou Joe Berardo fez do Parlamento uma sessão de gozo sobre os deputados da CPI.

Nesta CPI ao processo do BES/NB, o desfile continua com a mesma desvergonha. Um dos maiores devedores garantiu não dever nada; outro mostrou-se feliz por ser o segundo maior devedor e queria saber quem era o primeiro; outro nem sabia dizer quantas empresas geria ou se tinha contas em offshore; e outro garantia dizer toda a verdade, mas afirmava não dever nada, porque ia reestruturando sucessivamente os contratos de crédito.

Nos últimos tempos, aparece-nos o anterior Governador do BdP (Banco de Portugal) com a alegoria da cesta de fruta meio estragada e a tentar dar lições de economia aos deputados clamando:         

A economia é como um avião com quatro motores em que dois vão desacelerar”. (…) A solidez de cada árvore não garante a sustentabilidade de uma floresta. (…) Quem estaciona morre.”.

Nada mau: uma entrega à poesia nos tempos de reformado do BdP para quem se defende, de forma displicente, alegando que a supervisão do BES foi um pesadelo para o banco central ou que aguentou o sistema não deixando que ele não colapsasse!

Regista o “Jornal Económico” que, na década em que esteve à frente do BdP, Costa habituou-nos a metáforas, um tanto rebuscadas, para explicar as bases da economia ou o contexto da estabilidade financeira. Assim, o antigo governador do BdP na CPI às perdas do NB, atribuídas ao Fundo de Resolução (FdR), alinhou no estilo de quem tinha de explicar, lenta e simplesmente, como funcionam as coisas. Porém, a alegação de que gastara mais de 70 horas em audições parlamentares sobre o BES/NB, em vez de ser motivo de orgulho ou de mostra de cooperação, põe a nu que o facto de ter de ser convocado de novo quer dizer que o caso postula mais perguntas ou é sintoma de que as suas respostas foram insuficientes ou incompletas  

A referir que o BES/NB era um “cabaz de fruta que estava parcialmente apodrecida”, terá razão. De facto, aquela instituição bancária não passava da mescla de ativos bons, que o banco bom aproveitou e continuará a aproveitar, e de frutos tocados ou até podres que sobraram do antigo dono, o banco mau. Tanto assim é que a Lone Star, compradora do NB, não mostra os contratos de compra e venda do banco e, aquando dessa operação em 2017, contratou com o FdR, o então único acionista, o mecanismo de compensação para a fruta estragada, o tal “capital contingente” de 4 mil milhões. Não deu grande novidade o ex-governador, pois há anos que todos sabemos que somos nós, os contribuintes, a pagar a conta da fruta podre, a qual se comporta quase como o fermento a levedar toda a massa.

A alegoria da fruta foi a mais badalada, mas o curioso da audição de Costa foi vê-lo atacar João Costa Pinto, que liderou o relatório de seu nome, que critica a atuação do supervisor no acompanhamento ao BES, e que durante anos foi escondido dos portugueses. Isto é atacar o mensageiro, porque, se realmente Carlos Costa não teve complacência, reuniu com Ricardo Salgado 15 vezes e promoveu uma intervenção ativa do BdP, é difícil acreditar que não tenham sido cometidos erros e que o regulador-supervisor não se tenha apercebido de que algo ia mal. E dizer que defendeu o sistema e que este não colapsou sabe a muito pouco quando milhares de clientes foram lesados, tendo perdido muitos as poupanças duma vida inteira em aumentos de capital e emissões de papel comercial que eram desenhados, desde o início, para os enganar.

Não se esperava um mea culpa da parte do governador do banco central sobre o colapso dum banco, mas esperava-se que admitisse que nem tudo correu bem e que não tentasse fingir que de repente herdou um cabaz de fruta podre e que fez o melhor possível – até porque, em 2016, Carlos Costa esteve quase a admitir a sua responsabilidade por não ter visto a tempo o colapso das falências das empresas não-financeiras do GES, confessando sentir “a mesma frustração de um polícia que chega atrasado ao local do homicídio”. É óbvio que o polícia não teve culpa do homicídio, mas por ter chegado atrasado, já que era sua função acompanhar a situação.

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Por seu turno, Vítor Constâncio, também antigo governador do BdP, disse muito recentemente à CPI que apenas assume responsabilidades gerais e que a perguntas concretas responde com a verdade. Mais disse que o supervisor atuou em 2009 face à exposição da ‘holding’ financeira do GES à parte não financeira, usando a “persuasão moral”, a qual foi insuficiente. E explicou:

Em janeiro de 2009, indo além do que estava na lei e usando a persuasão moral – instrumento de último recurso dos bancos centrais – o Banco de Portugal escreveu uma carta à Espírito Santo Financial Group [ESFG], estabelecendo e solicitando um plano de redução das exposições [à parte não financeira] com vista a assegurar inexistência de qualquer excesso até final de 2012”.

Vítor Constâncio tinha anteriormente explicado que, nos anos anteriores à crise financeira de 2008, apesar do constante aumento de exposição da parte financeira à não financeira do Grupo Espírito Santo (GES), esta era legal e constantemente coberta com capital. E pormenorizou:

Qualquer excesso era um direito estabelecido por força da lei, que os bancos podiam usar, qualquer excesso em relação aos 20% era abatido ao capital. E o resto do capital só se podia abater até ao rácio de capital ficar no mínimo legal.”.

Segundo Constâncio, a ESFG “nunca esteve abaixo dos 8%”, tirando num trimestre em que esteve nos 7,74%, valor que foi corrigido; e, em todo o período em que foi governador do BdP nunca lhe foi chamado à atenção, com significado, que havia, por essa razão, problema com esta exposição, pois “a lei era clara e, por força da lei, esse abatimento era feito e dada uma proteção de 100% sobre eventuais perdas em relação a esse excesso”.

E Constâncio, frisando que a exposição nunca existiu no BES, mas na holding ESFG, lembrou:

Tudo mudou em 2008, e esse excesso teve um aumento significativo no ano da crise, que atingiu o tipo de atividades não financeiras do grupo: construção, hotéis... tudo o que o grupo tinha em termos de real estate”.

Posteriormente, apesar dalgum alívio temporário do cumprimento de regras devido à crise, o BdP comunicou, em 2009, à ESFG a necessidade de reduzir a exposição à parte não financeira.

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Entretanto, Ricardo Mourinho Félix, antigo Secretário de Estado Adjunto do Tesouro e das Finanças, primeiro, e Secretário de Estado Adjunto e das Finanças, a seguir, no XXI Governo Constitucional, ouvido pela CPI, apontou falhas graves quanto à capitalização do NB e, em particular, ao BdP por se ter subjugado à antiga Ministra das Finanças Maria Luís Albuquerque quanto à capitalização inicial do NB. E não teve dúvidas ao dizer:

Se quem determinou o montante foi mesmo a senhora Ministra das Finanças, uma coisa fica clara: o Banco de Portugal, nesse momento, não atuou de forma independente. Fez o que a senhora Ministra das Finanças lhe mandou fazer. Subjugou-se, e isso é uma falha grave, muito, muito grave.”.

O também atual vice-presidente do Banco Europeu de Investimento (BEI) insistiu:

Nesta comissão, aquilo que era um segredo de polichinelo foi revelado pelo então governador do Banco de Portugal [Carlos Costa]. Não foi o Banco de Portugal que determinou o montante da injeção de capital no momento da resolução. Foi o Governo, através da senhora Ministra das Finanças.”.

Frisou que os ativos do balanço inicial do NB foram sobrevalorizados em 4 500 milhões e disse:

O banco era novo, mas não era bom. Os ativos estavam sobreavaliados, e o valor contabilístico dos ativos não refletia, por isso, o seu valor efetivo.”.

No entender do antigo Secretário de Estado, que teve o pelouro do Tesouro até 2017, capitalizar inicialmente o NB com 4.900 milhões de euros em vez de 10 mil milhões de euros “não foi um lapso nem foi um erro”; foi, segundo o que vincou, “a vontade de adiar a resolução de um problema, de simular uma saída limpa que deixava para trás um sistema financeiro numa situação frágil, com um banco que, primeiro, estava insolvente e que, depois de resolvido, continuava, na prática, insolvente”.

Mourinho Félix acusou ainda o Governo PSD/CDS-PP de não ter sido “por lapso, ou por apego a uma interpretação restrita das normas internacionais de contabilidade, que se fez por 4.900 milhões de euros uma resolução que deveria ter implicado uma injeção de sensivelmente o dobro do capital”. E sentenciou de forma contundente:

Decidir apenas pelos mínimos para garantir que, se algo correr mal, sempre se possa dizer que se cumpriu a lei, isso não é governar. Quem exerce o cargo assim não merece governar.”.

O atual vice-presidente do BEI, considerando que o Governo PSD/CDS-PP “tinha mentido” e “enganado os portugueses”, assegurou: 

Não está aqui em causa a legalidade do ato. Está em causa o impacto do ato. Teve um impacto reputacional sobre a República Portuguesa de proporções sísmicas.”.

Referia-se à retransmissão de 6 séries de obrigações seniores do NB para o BES em liquidação, no valor de dois mil milhões – decisão que “implicou que os investidores deixassem de receber essa dívida, passando a ser credores comuns da massa falida do BES” e que fora percecionada como uma imposição do Governo ao BdP, uma alteração radical do rumo da política económica portuguesa. Por outro lado, informou que essa foi uma decisão do BdP contra a opinião do Governo. É certo que tal decisão foi “legítima”, “legal” e “tomada de forma independente”, mas teve consequências. E Mourinho Félix enumerou algumas:

Os juros da dívida portuguesa galgaram, passando os 4% passado pouco tempo. Os custos de financiamento dos bancos subiram. As condições de mercado deterioraram-se, diversos investidores institucionais abandonaram as emissões da dívida da república e dos bancos portugueses e o financiamento da economia foi comprometido, numa altura em que Portugal mais precisava dele.”.

E o ex-Secretário de Estado sublinhou que a perceção pelos investidores internacionais foi de que foram expropriados, por serem investidores institucionais e por não serem portugueses.

Naturalmente o PSD contrariou a versão do antigo Secretário de Estado relativamente às consequências da retransmissão de obrigações do NB para o BES em liquidação, atribuindo a subida dos juros ao Orçamento do Estado de 2016. E acusou o antigo governante socialista de dizer “coisas que contradizem os factos”. Fê-lo pela voz de Hugo Carneiro, que atribui a subida dos juros não à retransmissão de obrigações em 2015, mas ao momento da apresentação do Orçamento do Estado de 2016. Como exemplos, o deputado do PSD referiu que, em 20 de janeiro de 2016, houve uma emissão de dívida de 4.000 milhões de euros, com uma procura de 12 mil milhões, e outra com uma alocação de 1.250 milhões de euros, que registou uma procura de dois mil milhões de euros.

É caso para perguntar em que ficamos.

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Voltando ao mais recente ex-governador do BdP, é de assentar em que a alegoria do cesto de fruta só quer dizer que, ao fim ao cabo, as contas do BES nos últimos anos da sua atividade sempre foram falsas e o BdP sabia-o. É do conhecimento público que o BES renunciou à fatia que a troika disponibilizou para ajuda à banca, mas que, após a saída sita limpa, determinou um volumoso aumento de capital para poder resistir ao stresse, quando tanto o BdP como a CMVM sabiam da situação financeira do BES. Obviamente a responsabilidade é de Salgado e comparsas, mas também os reguladores, que aprovaram tal operação, sabendo que os investidores estavam a ser enganados, deveriam ser considerados cúmplices, pelo menos. Deveriam outrossim ser responsabilizados pelo facto de terem podido evitar essa fraude aos investidores, que tudo perderam, e não o fizeram.

Porém, com escreve Miguel Stock no n.º 1 do novo “Tal & Qual”, a velha máxima da decisão política é seguir a “linha de menos força”, que é, nestes casos, culpar os banqueiros por todo o mal que acontece na banca, sendo altamente arriscado mexer com os reguladores.

E Stock recorda o que se passou em Espanha em 2011. Ocorreu um fraudulento aumento de capital no Bankia, como o que viria a ocorrer entre nós em 2014. Os intervenientes não eram menos qualificados que Salgado ou Carlos Costa. O presidente do Bankia era ex-presidente do FMI e ex-ministro do governo de Espanha e o Governador do Banco de Espanha integrava uma das famílias mais influentes do PSOE. Porém, nada obstou a que um juiz de instrução criminal constituísse arguidos estas figuras de proa, bem como os respetivos colaboradores mais diretos. E daí resultou um banco central mais capaz e um sistema financeiro mais robusto.

Entre nós, é inadmissível que o Tribunal de Contas tenha vindo recentemente fazer um juízo negativo sobre a resolução do BES e o contrato de venda do NB – juízo negativo bem tardio – e que isso não tenha consequências na justiça sobre os responsáveis, os quais não sei se não terão prejudicado o país mais que aqueles que têm estado a ser objeto de megaprocessos. Ao contrário, a nossa justiça parece rejeitar liminarmente a apreciação do papel do BdP e da CMVM nos crimes financeiros. Ora, utilizando a lei do menor esforço, eivada dos vícios que aponta aos ditos políticos, serve mal o país rodomizando os supervisores, nomeadamente o BdP que tem uma cultura opaca, inimputável e sem prestação de contas.

Até quando ficaremos sem o julgamento social e político, já que a justiça institucional é lenta e fora de tempo, sobre o que efetivamente se passou com o aumento de capital no BES, em junho de 2014, as públicas declarações da boa saúde do banco, a resolução do BES e a criação do NB, em 3 de agosto do mesmo ano, e a “venda” atrabiliária (em que o vendedor paga para que lhe comprem o bem), em 2017?

Isto não vai lá com a persuasão moral. O Estado tem de utilizar o poder coercivo e punitivo, sempre que necessário. E, assim, ficaremos sempre na dúvida se a resolução era menos gravosa que a nacionalização ou que a falência do banco. Pelo sim, pelo não, os presumíveis culpados podem andar por aí. O respeitinho é muito bonito… E o povo irá votar nos mesmos de sempre!

2021.06.12 – Louro de Carvalho

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