segunda-feira, 7 de junho de 2021

Duas figuras de proa no cinquentenário da revolução abrilina

 

Nos termos da Resolução do Conselho de Ministros n.º 70/2021, de 4 de junho, que determina a realização das comemorações do 50.º aniversário da Revolução do 25 de Abril, abreviadamente designadas por “Comemorações” e cria a estrutura de missão que as promove e organiza, as “Comemorações” realizar-se-ão de 24 de março de 2022 a 12 de dezembro de 2026.

Considera o Governo que a maioria da população já nasceu depois da Revolução e está prestes a cumprir mais anos em democracia do que o tempo de duração da ditadura, importa “conciliar a celebração da memória da resistência e da Revolução com a capacidade de imaginar o futuro da democracia portuguesa”. E observa que a nossa experiência democrática é singular a vários títulos, nomeadamente por constituir “caso único de um país que celebra a transição de regime e o faz com uma dimensão popular” – não independentemente do modo integrador e pluralista que enformou “o processo de consolidação democrática” e que foi capaz de imprimir à causa da democracia “progressos notáveis nas mais diversas áreas das políticas públicas, responsáveis por transformações económicas, sociais e culturais profundas” – bem como por constituir o início, a partir da experiência portuguesa, de “uma nova vaga de democratização que moldou o final do século XX”, bem para lá do “contexto europeu”.

Enfatiza que a nossa sociedade “viveu a transição como uma epopeia coletiva não traumática, associada a transformações de longo alcance”, que acabou por conferir à democracia portuguesa (“indissociável das liberdades e do pluralismo, da descolonização e da pertença europeia e do progresso cultural, social e económico”) “uma estabilidade e fidelidade aos princípios democrático-liberais com poucos paralelos nos países da terceira vaga democrática”.

Por isso, o Governo entende que “perpetuar, regenerar e alargar este vínculo com o regime democrático” postula a construção de comemorações “a partir do chão-comum que une os portugueses em torno da conquista da liberdade”, o que deve ser feito “de forma inclusiva”. E, sendo a democracia “um dado adquirido” para a maioria da população, celebrar a democracia implica, segundo o Governo, “atualizar e relançar a própria ideia de comemorações”, juntando, “no mesmo ciclo, um arco democrático que se iniciou a 25 de abril de 1974 e que, ao longo do ano de 1976, passou pela aprovação da Constituição, pelas primeiras eleições legislativas, presidenciais e regionais e que culminou com as autárquicas no final desse mesmo ano”, pelo que “as celebrações devem valorizar os momentos evocativos da Revolução” e dar azo à impressão de “uma marca que associe o passado a uma projeção do futuro que perdure”.

Com este pano de fundo, o Executivo quer a organização das “Comemorações” em torno de três órgãos, com composições e funções distintas: a Comissão Nacional, “nomeada pelo Presidente da República”, que aprovará “o programa oficial das comemorações” e os respetivos “relatórios de atividades”; o Conselho Geral, “nomeado pelo Primeiro-Ministro, com a presença de individualidades de reconhecido mérito e ativismo em dimensões fulcrais na construção da democracia”, que se pronunciará sobre “o programa oficial das comemorações” e acompanhará a “execução, monitorizando o desenrolar das celebrações e formulando sugestões que alarguem e enriqueçam a vivência do cinquentenário da democracia”; e a Comissão Executiva, “nomeada pelo Primeiro-Ministro”, que elaborará e concretizará o programa oficial em articulação com o Conselho Geral, concertando a atividade com entidades relevantes da Administração central e da Administração local, sendo coadjuvada por uma estrutura de apoio técnico.

O Conselho Geral e a Comissão Executiva constituem a Estrutura de Missão (com mandato até 31 de dezembro de 2026) que o Governo criou pela predita Resolução, excluindo-se dela a Comissão Nacional, pela Declaração de Retificação n.º 17-A/2021, de 4 junho, pela qual se esclarece que, “a par da Estrutura de Missão, funciona, junto da Presidência da República, a Comissão Nacional, cuja composição é definida pelo Presidente da República, que designa o respetivo presidente e restantes membros”.

Para já, o Governo designou como comissário executivo Pedro Adão e Silva Cardoso Pereira, licenciado em sociologia (1997, ISCTE-IUL), doutorado em ciências sociais e políticas (2009 Instituto Universitário Europeu, Florença), professor auxiliar na Escola de Sociologia e Políticas Públicas do ISCTE-IUL, onde é diretor do programa de doutoramento em políticas públicas, vice-presidente do IPPS-IUL e membro da direção do laboratório colaborativo, CoLABOR, onde coordena a linha de investigação dedicada à proteção social e integra a equipa da plataforma “DataLabor”.

Por seu turno, segundo nota da Presidência da República, o Presidente da República, tendo sido publicada, a 4 de junho, no Diário da República a Resolução do Conselho de Ministros relativa às “Comemorações do 50.º aniversário da Revolução de 25 de abril de 1974”, convidou, no dia 5 de junho, “para presidir à respetiva Comissão Nacional o General António Ramalho Eanes que aceitou”.

O General António dos Santos Ramalho Eanes, terminados os estudos secundários, seguiu a carreira das armas entrando para o Exército em 1952; estudou tácticas militares na Escola do Exército, de 1952 a 1956; fez estágio no CIOE-Curso de Instrução de Operações Especiais, em 1962; foi instrutor de Ação Psicológica no Instituto de Altos Estudos Militares, em 1962; e frequentou o Instituto Superior de Psicologia Aplicada, durante três anos.

No exército, seguiu a Arma de Infantaria. E, no âmbito da Guerra Colonial, realizou comissões na Índia Portuguesa, Macau, Moçambique, Guiné-Bissau e Angola. Encontrava-se ainda em serviço em Angola aquando da revolução de 25 de abril de 1974. Aderiu ao MFA (Movimento das Forças Armadas) e, regressado a Portugal, o Major Ramalho Eanes foi diretor de programas e nomeado presidente do conselho de administração da RTP, até março de 1975.

Em 1975, já com a patente de Tenente-coronel, dirigiu as operações militares do do 25 de Novembro, contra a fação mais radical da esquerda política do MFA. Depois, graduado em General do Exército, foi Chefe do Estado-Maior do Exército (CEME), até que passou o cargo ao General Vasco Joaquim Rocha Vieira, sendo que, de 14 de julho de 1976 a 16 de fevereiro de 1981, sucedendo a Francisco da Costa Gomes, foi o 10.º Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas de Portugal, no que foi sucedido pelo General Nuno Viriato Tavares de Melo Egídio. A 27 de junho de 1976 foi eleito o 16.º Presidente da República (sucedeu a Costa Gomes, que fora designado pela Junta de Salvação Nacional), cargo de que tomou posse a 14 de Julho, sendo reeleito em finais de 1980. Foi, com 41 anos ao começar o primeiro mandato, o mais jovem Presidente da República de sempre e também o primeiro Presidente da República eleito, logo a seguir ao 25 de Abril, tendo cumprido dois mandatos, entre 1976 e 1986.

Com o fim do 2.º mandato, a 9 de março de 1986, assumiu pouco depois a presidência do Partido Renovador Democrático, criado sob a sua égide a partir de Belém, vindo a demitir-se do cargo em 1987. Promovido a General de quatro estrelas em 24 de maio de 1978, passou à reserva, por sua iniciativa, em março de 1986. E, em 2000, recusou, por razões de princípio, a promoção a Marechal. É, atualmente, membro do Conselho de Estado e presidente do Conselho de Curadores do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa.

A 15 de novembro de 2006, apresentou na Universidade de Navarra, Espanha, a sua tese de doutoramento, sob o título “Sociedade civil e poder político em Portugal”, com 2000 páginas, que defendeu perante um júri composto por três catedráticos espanhóis e dois portugueses.

Eanes foi o primeiro Chefe de Estado que, ao deixar a Belém, iniciou um trabalho de investigação científica conducente à obtenção do grau de doutor, iniciativa pioneira, a nível nacional, desconhecendo-se inclusive casos idênticos na Europa.

Em 2008, não aceitou receber retroativos de cerca de um milhão de euros.

A 11 de Outubro de 2010, a Universidade de Lisboa por ocasião das comemorações do seu centenário, coincidindo com as comemorações do centenário da República (5 de outubro), fê-lo Doutor Honoris Causa.

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As “Comemorações” têm ao leme uma figura que bem pode representar ativa e inteligentemente a geração que nasceu (em 1974) com a revolução abrilina e uma outra figura, hoje quase consensual, que a nível superior estabeleceu o regresso das Forças Armadas aos quartéis nos termos da Constituição, que as tornou obreiras da defesa militar da República, e cooperou para a estabilização do regime democrático. O primeiro, com a mesma idade do regime democrático, bem pode coordenar uma plêiade de obreiros das “Comemorações” que satisfaçam o desígnio otimista plasmado na predita Resolução do Conselho de Ministros; o segundo, talvez o militar abrilino vivo mais velho, que teve participação, não tanto na génese da Revolução, mas no seu embarque e na estruturação do regime, pode, enquanto figura tutelar e simbólica da República, coordenar o grupo de senadores que tornarão credibilizadas as jornadas comemorativas.

Enquanto saúdo a Estrutura de Missão a funcionar junto do Governo, e a Comissão Nacional, a funcionar sob a égide do Presidente da República, reparo que nada está previsto a nível parlamentar nem a nível dos tribunais superiores. Ora, o Presidente representa a República, garante a unidade nacional, o cumprimento da Constituição, o regular funcionamento das instituições democráticas e é o comandante supremo das Forças Armadas; e o Governo, nomeado pelo Presidente, é o responsável pela condução da política do país e superintende na Administração Pública. Porém, o Parlamento é o espaço da máxima representação do povo e das suas diversas ordens de ideias e projetos, nele se debatem os grandes temas, se fazem as leis e se procede à fiscalização da atividade do Governo, que dele dimana; e os tribunais, enquanto órgão de soberania que afere a validade prática da lei e a conformação ou não dos comportamentos dos cidadãos com ela, são considerados o pilar fundamental da democracia e são o sintoma da boa ou menos boa evolução democrática. Não podem, assim, ficar a leste das “Comemorações”.

Por outro lado, é preciso contrapor ao otimismo do Governo a necessidade de criar as condições políticas, sociais, económicas e culturais que levem os saudosistas do antigo ou os criadores e alimentadores de projetos restauracionistas de regimes ditatoriais antigos, mesmo que reciclados em novas formulações, a não terem razão. Com efeito, temos de nos interrogar porque surgem com força movimentos e partidos de cariz populista, xenófobo, anti-imigrante (até invocando princípios cristãos) a prometer o paraíso messiânico por via totalitária. As “Comemorações” devem promover a saúde da democracia e corrigir os erros de tantos ditos democratas. Seja!

2021.06.07 – Louro de Carvalho

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