No XII domingo do Tempo Comum no Ano B, é proclamada e
meditada a passagem do Evangelho de Marcos (Mc 4,35-41) que o Papa Francisco escolheu para
suporte da sua oração na solidão da Praça de São Pedro a 27 de março, no contexto
da pandemia que aflige o mundo.
À palavra de ordem de Jesus ao cair daquela tarde, “Passemos para a outra margem” (“diélthômen
eis tò péran”), os
discípulos, tendo deixado a multidão, tomam-No consigo (“paralambánousin autón”), como estava (“hôs ên”) no barco (“en tôi ploíôi”), e outros barcos estavam com Ele. E
acontece um grande turbilhão de vento e as ondas atiravam-se contra o barco, de
modo a ficar cheio o barco. E Ele estava à popa (“ en têi prýmnai), dormindo (“katheúdôn”) sobre a almofada (“epì tô proskephálaion”). E despertam-No e dizem-Lhe:
“Mestre, não Te importas de que vamos morrer?”. E, tendo acordado, ordenou ao
vento e disse ao mar: ‘Cala-te! Refreia-te!’.
E cessou o vento, e aconteceu grande bonança. E disse-lhes: ‘Porque sois medrosos? Como ainda não tendes
fé?’ (“tí deiloí este hoútôs; pôs ouk ékhete
pístin;”). E temeram
(“ephobêthêsan”) um temor grande (“phóbos mégas”) (figura de
estilo própria da prosa grega, mesmo em épocas anteriores, como anota Frederico
Lourenço), e diziam uns
para os outros: ‘Quem é, pois, este, que
até o vento e o mar lhe obedecem?’ (“tís ára hoûtós estin,
hóti kaì ho ánemos kaì hê talassa hypakoúei autôi;”).”.
Situar o barco com Jesus e os
discípulos no mar ao anoitecer é colocá-los num ambiente hostil e perigoso,
rodeados pelas forças que lutam contra Deus e contra a felicidade do homem. Por
outro lado, a noite, como tempo das trevas, é conotadora de medo, desânimo e
falta de perspetivas. Mar e noite definem a realidade de dificuldade, hostilidade,
incompreensão.
Os discípulos lutam aflitos contra a tempestade que
ameaça desfazer a frágil embarcação no mar encapelado. Estes barcos eram,
segundo Dom António Couto, Bispo de Lamego, pequenas embarcações de pesca com cerca
de 8 metros de comprimento por 2,5 de largura, pelo que se tornavam fácil presa
das ondas. Em nítido contraste, Jesus, à popa (lugar de comando da embarcação), dormia deitado sobre a almofada.
Porém, o barco é, na catequese cristã, símbolo
da comunidade de Jesus que navega pela história. Jesus está no barco, mas são
os discípulos que se encarregam da navegação, pois é a eles que é entregue a
tarefa de conduzir a comunidade pelo mar da vida.
O barco, às ordens de Jesus,
dirige-se “para a outra margem”, a terras dos pagãos – uma alusão à missão da
comunidade, convidada por Jesus a ir ao encontro de todos os homens, também aos
dos outros lados, para lhes levar Jesus e a proposta de salvação.
O sono de Jesus na viagem evocará a
sua aparente ausência ao longo da viagem da comunidade pela história. Não raro
os discípulos, ocupados em dirigir o barco, têm a sensação de estarem sós,
abandonados à sua sorte, e de Jesus não estar com eles a enfrentar as vicissitudes
da viagem. Ora, Jesus está com eles no barco, pois prometeu ficar com eles “até
ao fim do mundo”.
A tempestade simboliza as dificuldades que o
mundo opõe à missão. Provavelmente Marcos pensava numa “tempestade” concreta,
como a perseguição de Nero aos cristãos de Roma, em que foram mortos Pedro e
Paulo, bem como muitos outros cristãos (anos 64-68: o Evangelho segundo
Marcos terá aparecido nessa altura). Mas a tempestade abrange todos os momentos
de crise (tal
como o entendeu o Papa a 27 de março de 2020 no contexto da pandemia), perseguição e
hostilidade que, ao longo da caminhada histórica até ao fim dos tempos, os
discípulos enfrentam.
Esquecidos de que, muitas vezes, também na tempestade
Se manifesta Deus a pessoas por Si escolhidas a transmitir mensagem importante
para todo o povo, os discípulos, na sua maioria pescadores, não contavam agora com
qualquer teofania. Ao invés, estranhavam que Jesus permanecesse no comando do
barco dormindo, gravemente descuidado das normas de segurança no mar. O Mestre
que prometeram seguir estava indiferente à aflição dos amigos.
Jesus, despertado pelos discípulos,
acalma a fúria do mar e do vento, com a sua Palavra imperativa e dominadora.
E aqui haveria motivo para se
perceber a teofania. Na teologia judaica, só Deus é capaz de dominar o mar e as
forças hostis que se albergavam no mar. Jesus aparece, pois, como o Deus que
acompanha a difícil caminhada dos discípulos pelo mundo e que cuida deles no
meio das dificuldades e da hostilidade do mundo. Mas os discípulos não estavam
a atingir. Por isso, depois de acalmar vento e mar, Jesus repreende a
pusilanimidade e a falta de fé dos discípulos. Estes, na verdade, tendo já
caminhado com Jesus, deviam saber que Ele nunca está ausente, nem alheado da
vida da comunidade. Não podiam esquecer que, em todas as circunstâncias, Jesus
vai com eles no mesmo barco, pelo que nada têm a temer. A comunidade tem de
estar consciente de que Jesus está sempre presente e que, portanto, as
tempestades da história não poderão impedi-la de concretizar no mundo a missão
que lhes foi confiada.
O trecho termina com o grande temor
dos discípulos e a pergunta que eles fazem uns aos outros, “Quem é, pois, este, que até o vento e o mar lhe obedecem?”, que é sinal da
abertura dos discípulos à descoberta de Jesus, o Cristo, o Filho de Deus.
O temor carateriza o estado de
espírito do homem diante da divindade. No universo bíblico, este temor não é de
pânico ou de medo servil, mas encerra um misterioso poder de atração que se
traduz em obediência, entrega, confiança, entusiasmo. Tal atitude deriva da
experiência que o crente israelita tem de Deus: Javé é um Deus presente, que
guia o Povo com paternal e maternal solicitude. Por isso, o crente, se tem
consciência da omnipotência de Deus, também sente que pode confiar
incondicionalmente Nele e entregar-se-Lhe nas mãos. Logo, o temor dos
discípulos significa que reconhecem em Jesus o Deus presente no meio dos homens
e a quem os homens são convidados a aderir, a confiar, a obedecer com total
entrega. Marcos propõe-nos, portanto, uma catequese sobre a caminhada dos
discípulos em missão no mundo, garantindo que Jesus está sempre connosco, mesmo
quando parece ausente ou distraído. Nada temos a temer, porque Cristo vai connosco
e ajuda-nos a vencer as forças que se opõem à vida dos homens.
Dom António Couto enfatiza que Marcos descreve três
travessias do mar da Galileia. Além da que vem relatada na passagem evangélica
em causa (Mc 4,35-41), são de salientar as de Marcos
6,45-52 e 8,13-21. Carateriza-as o facto comum de a precedê-las estar o
afastamento das multidões deixando Jesus a sós com os discípulos no barco,
possibilitando-lhes uma experiência pessoal com Ele. O barco delimita, assim,
um espaço privilegiado que Jesus compartilha partilha somente com os discípulos,
de modo que, ainda que o solicite, mais ninguém entra nessa embarcação (vd Mc 5,18).
Na travessia em referência, levantou-se violenta
tempestade que encheu de água o barco e de medo os discípulos, os quais,
aflitos, acusavam Jesus por dormir tranquilamente deitado sobre a almofada,
julgando que estava desinteressado da vida dos que seguiam com Ele.
Porém, Jesus levanta-se e mostra um modo novo de
fazer: primeiro, volta-se para o vento e para o mar e manda calar e acalmar;
depois, feita a bonança, interpela os discípulos sobre o medo que se apoderou
deles e sobre a falta de fé que ainda manifestavam. É curioso anotar que Jesus
dá ordens ao vento e ao mar, ao passo que aos discípulos interpela-os com duas
perguntas. Os discípulos não respondem, mas exprimem a sua reação face a tudo o
que viram Jesus fazer e ouviram Jesus dizer, com uma pergunta de admiração e
espanto: “Quem é, pois, este, que até o
vento e o mar lhe obedecem?”.
Já antes, em Cafarnaum, Jesus dera ordens a um espírito
impuro, que obedeceu (vd
Mc 1,26-27), o que
evidencia que forças da natureza e espíritos impuros, não reagindo a palavras
humanas, seguem à letra as ordens de Jesus, ao passo que os discípulos,
interrogando-se mutuamente, passam dum temor natural para um temor maior, que é
reverencial, pois resulta da experiência do poder divino, sobre-humano (cf Ex 14,31). Tal como o perigo, a salvação do
perigo é superior ao homem e vence a incapacidade humana. O temor novo daqueles
discípulos mostra-lhes o sentido do ver nascer do fazer divino de Jesus e
exprime o seu espanto face à pergunta de Jesus, que pressupõe que os devia
possuir uma fé sem medida. Em relação a um homem vulgar tal fé seria impossível.
Assim, a pergunta que os discípulos se fazem entre si é dupla: Quem é este que
faz tais coisas e que pede uma fé sem medida? A pergunta, que não é de dúvida,
mas espanto e descoberta, acompanhá-los-á doravante no seu caminho com Jesus.
Insiste Dom António Couto na verificação de que a
iniciativa de entrar no barco é de Jesus, mas também anota que os discípulos “pegam
em Jesus, assim como estava” e conclui que nós pegamos em Jesus como Ele estava
da mesma forma que Ele, que nos fez entrar no barco, “pega em nós assim como
estamos: impotentes, desarmados, cheios de medo”.
***
Previamente à susodita passagem evangélica, a liturgia
desta dominga faz-nos meditar uma passagem do Livro de Job (Jb
38,1.8-11), um clássico
da literatura universal pela beleza literária, e pela abordagem de questões que
tocam o âmago da vida humana, servindo a história desta personagem de pretexto
para reflexão em torno de temas fundamentais sobre as quais o homem se
interroga sempre e em toda a parte, tais como o sofrimento do inocente, a
situação do homem diante de Deus e a atitude de Deus face ao homem.
Job, homem bom e justo é repentinamente atingido por um
vendaval de desgraças que lhe rouba a riqueza, a família e a saúde. Face a esta
dramática situação, interroga-se acerca da origem do sofrimento que o atingiu e
do papel de Deus no seu drama pessoal. Amigos de Job respondem com base na
explicação da teologia oficial: o sofrimento é o resultado do pecado do homem,
pelo que, se o homem sofre, é porque pecou. Mas o sofrente Job rejeita, com a
força da paz de consciência, tal explicação e arrasa a doutrina oficial por
incapaz de explicar este drama pessoal. Com fino sentido crítico, Job desmonta
os dogmas fundamentais da fé de Israel e recusa o Deus contabilista que Se
limita a registar as ações boas e más do homem e pagar em conformidade. Deus
não é isso, como este caso concreto o prova.
Por isso, Job dirige-se diretamente ao próprio Deus, o único
que lhe pode dar a resposta. No seu discurso, cruzam-se atitudes negativas (animosidade, violência, queixas,
inconformismo, dúvida, revolta) com a esperança, a fé e a confiança em Deus. E Deus recorda a Job a sua
condição de criatura, finita, mostrando-lhe como só Ele conhece as leis que
regem o universo e a vida, bem como é grande a sua preocupação e o seu amor com
cada ser criado, e convidando-o a ocupar o seu lugar de criatura e a não pôr em
causa os desígnios de Deus para o mundo, pois tais desígnios ultrapassam a
capacidade de compreensão e de entendimento de qualquer criatura. Com efeito, a
lógica e o desígnio superam aquilo que cada homem poderá entender.
Por fim, Job percebe o seu lugar, reconhece a transcendência
de Deus e a incompreensibilidade do seu desígnio e entrega-se nas mãos de Deus
com humildade e confiança.
O trecho em referência insere-se no discurso da resposta de
Deus a Job (cf Jb
38,1-40,2), em que Deus
levanta uma série de questões sobre a terra, o mar, os mistérios da natureza e
da vida, não para concitar respostas de Job, mas para lhe fazer perceber os limites
e a incapacidade para entender o mistério insondável de Deus e do seu desígnio para
o mundo e para os homens.
No quadro habitual das teofanias (cf Ex 19,16) e segundo o teor do trecho em
referência, Deus responde a Job “do meio da tempestade”. A tempestade emoldura
a manifestação aos homens do Deus todo-poderoso, o soberano de toda a terra. Quem
não se lembra, na aldeia, de, em tempo de relâmpagos, trovões e chuva
torrencial, com ou sem granizo, a pessoas mais velhas dizerem que Deus estava a
ralhar?
Portanto, o Senhor, “do meio da tempestade”, manifesta-Se a
Job para lhe responder às questões por ele levantadas e lhe fazer perceber a
insensatez das suas críticas. Depois de se apresentar como o grande arquiteto
que fez a terra (cf Jb
38,4-7), refere-se ao
seu papel de controlador o mar. Foi Ele quem “encerrou o mar entre dois
batentes” e que lhe “fixou os limites” (cf Pr 8,29; Jr 5,22).
As antigas lendas mesopotâmicas da criação apresentavam as
“águas salgadas” (representadas
pela deusa Tiamat) como
um monstro criador do caos e da desordem; e, na luta para organizar o cosmos, Marduk,
o deus da ordem, lutou contra o mar, venceu-o e pôs-lhe limites.
O Povo bíblico, influenciado pelos mitos mesopotâmicos, viu
no mar a realidade assustadora, indomável, onde residiam os poderes caóticos
que o homem não controlava. Não obstante, os catequistas de Israel asseguraram que
a Palavra criadora de Javé impôs às águas tumultuosas do mar, de uma vez para
sempre, os seus limites (“Deus
disse: ‘reúnam-se as águas que estão sob os céus num único lugar, a fim de
aparecer a terra seca’. E assim aconteceu” – Gn 1,9). Javé não precisou de lutar
furiosamente contra o mar, mas organizou o mundo impondo às águas um limite que
elas não poderão atravessar sem ordem divina. O mar, encerrado nos seus limites
naturais, testemunha o poder supremo de Deus e o seu perfeito domínio sobre
toda a criação.
Ao recordar a sua ação criadora sobre o mar, Javé
apresenta-Se intocável na sua transcendência e mostra que tem para a criação um
plano estável, consolidado, irrevogável. Assim, quem é Job ou qualquer um de
nós para pôr em causa os desígnios de Deus criador que, pela sua Palavra, controlou
o mar? Há, pois, que aceitar o Deus de quem depende toda a criação, que até
submete o mar, cuida da criação com cuidados de pai e tem uma solução para os
problemas e dramas do homem. E o homem, na sua situação de criatura finita e
limitada, é que nem sempre consegue perceber o alcance e o sentido último do
desígnio de Deus.
***
Javé e Jesus revelam-Se no meio da tempestade. Porém,
Javé fala mais que Jesus, como Job barafusta, enquanto os discípulos só “acusam”
o Mestre por estarem aflitos e lhes parecer que Ele não se importa de que eles
morram. O quadro do livro de Job é premonitório: Jesus tem o mesmo poder que
Javé. Porém, em vez de muitas explicações sobre o seu poder, Jesus exerce-o sobre
o vento e o mar, dando-lhes ordens a que eles obedecem. E interpela os discípulos
pela falta de fé, o que os leva a interrogarem-se entre si a abrir o caminho da
fé. É a certeza de que, em vez do questionamento desnecessário, se adore o
Criador e se sigam os passos do Redentor em clima de amor e ação de graças e no
dinamismo da renovação constante (cf 2Cor 5,14-17).
2021.06.20
– Louro de Carvalho
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