segunda-feira, 21 de junho de 2021

Teofania da tempestade interpela o medo e a pouca fé dos discípulos

 

 

No XII domingo do Tempo Comum no Ano B, é proclamada e meditada a passagem do Evangelho de Marcos (Mc 4,35-41) que o Papa Francisco escolheu para suporte da sua oração na solidão da Praça de São Pedro a 27 de março, no contexto da pandemia que aflige o mundo.

À palavra de ordem de Jesus ao cair daquela tarde, “Passemos para a outra margem(“diélthômen eis tò péran”), os discípulos, tendo deixado a multidão, tomam-No consigo (“paralambánousin autón), como estava (“hôs ên) no barco (“en tôi ploíôi), e outros barcos estavam com Ele. E acontece um grande turbilhão de vento e as ondas atiravam-se contra o barco, de modo a ficar cheio o barco. E Ele estava à popa (“ en têi prýmnai), dormindo (“katheúdôn) sobre a almofada (“epì tô proskephálaion). E despertam-No e dizem-Lhe: “Mestre, não Te importas de que vamos morrer?”. E, tendo acordado, ordenou ao vento e disse ao mar: ‘Cala-te! Refreia-te!’. E cessou o vento, e aconteceu grande bonança. E disse-lhes: ‘Porque sois medrosos? Como ainda não tendes fé?(“tí deiloí este hoútôs; pôs ouk ékhete pístin;”). E temeram (“ephobêthêsan) um temor grande (“phóbos mégas) (figura de estilo própria da prosa grega, mesmo em épocas anteriores, como anota Frederico Lourenço), e diziam uns para os outros: ‘Quem é, pois, este, que até o vento e o mar lhe obedecem?(“tís ára hoûtós estin, hóti kaì ho ánemos kaì hê talassa hypakoúei autôi;”).”.

Situar o barco com Jesus e os discípulos no mar ao anoitecer é colocá-los num ambiente hostil e perigoso, rodeados pelas forças que lutam contra Deus e contra a felicidade do homem. Por outro lado, a noite, como tempo das trevas, é conotadora de medo, desânimo e falta de perspetivas. Mar e noite definem a realidade de dificuldade, hostilidade, incompreensão.

Os discípulos lutam aflitos contra a tempestade que ameaça desfazer a frágil embarcação no mar encapelado. Estes barcos eram, segundo Dom António Couto, Bispo de Lamego, pequenas embarcações de pesca com cerca de 8 metros de comprimento por 2,5 de largura, pelo que se tornavam fácil presa das ondas. Em nítido contraste, Jesus, à popa (lugar de comando da embarcação), dormia deitado sobre a almofada. Porém, o barco é, na catequese cristã, símbolo da comunidade de Jesus que navega pela história. Jesus está no barco, mas são os discípulos que se encarregam da navegação, pois é a eles que é entregue a tarefa de conduzir a comunidade pelo mar da vida.

O barco, às ordens de Jesus, dirige-se “para a outra margem”, a terras dos pagãos – uma alusão à missão da comunidade, convidada por Jesus a ir ao encontro de todos os homens, também aos dos outros lados, para lhes levar Jesus e a proposta de salvação.

O sono de Jesus na viagem evocará a sua aparente ausência ao longo da viagem da comunidade pela história. Não raro os discípulos, ocupados em dirigir o barco, têm a sensação de estarem sós, abandonados à sua sorte, e de Jesus não estar com eles a enfrentar as vicissitudes da viagem. Ora, Jesus está com eles no barco, pois prometeu ficar com eles “até ao fim do mundo”.
A tempestade simboliza as dificuldades que o mundo opõe à missão. Provavelmente Marcos pensava numa “tempestade” concreta, como a perseguição de Nero aos cristãos de Roma, em que foram mortos Pedro e Paulo, bem como muitos outros cristãos
(anos 64-68: o Evangelho segundo Marcos terá aparecido nessa altura). Mas a tempestade abrange todos os momentos de crise (tal como o entendeu o Papa a 27 de março de 2020 no contexto da pandemia), perseguição e hostilidade que, ao longo da caminhada histórica até ao fim dos tempos, os discípulos enfrentam.

Esquecidos de que, muitas vezes, também na tempestade Se manifesta Deus a pessoas por Si escolhidas a transmitir mensagem importante para todo o povo, os discípulos, na sua maioria pescadores, não contavam agora com qualquer teofania. Ao invés, estranhavam que Jesus permanecesse no comando do barco dormindo, gravemente descuidado das normas de segurança no mar. O Mestre que prometeram seguir estava indiferente à aflição dos amigos.

Jesus, despertado pelos discípulos, acalma a fúria do mar e do vento, com a sua Palavra imperativa e dominadora.

E aqui haveria motivo para se perceber a teofania. Na teologia judaica, só Deus é capaz de dominar o mar e as forças hostis que se albergavam no mar. Jesus aparece, pois, como o Deus que acompanha a difícil caminhada dos discípulos pelo mundo e que cuida deles no meio das dificuldades e da hostilidade do mundo. Mas os discípulos não estavam a atingir. Por isso, depois de acalmar vento e mar, Jesus repreende a pusilanimidade e a falta de fé dos discípulos. Estes, na verdade, tendo já caminhado com Jesus, deviam saber que Ele nunca está ausente, nem alheado da vida da comunidade. Não podiam esquecer que, em todas as circunstâncias, Jesus vai com eles no mesmo barco, pelo que nada têm a temer. A comunidade tem de estar consciente de que Jesus está sempre presente e que, portanto, as tempestades da história não poderão impedi-la de concretizar no mundo a missão que lhes foi confiada.

O trecho termina com o grande temor dos discípulos e a pergunta que eles fazem uns aos outros, “Quem é, pois, este, que até o vento e o mar lhe obedecem?”, que é sinal da abertura dos discípulos à descoberta de Jesus, o Cristo, o Filho de Deus.

O temor carateriza o estado de espírito do homem diante da divindade. No universo bíblico, este temor não é de pânico ou de medo servil, mas encerra um misterioso poder de atração que se traduz em obediência, entrega, confiança, entusiasmo. Tal atitude deriva da experiência que o crente israelita tem de Deus: Javé é um Deus presente, que guia o Povo com paternal e maternal solicitude. Por isso, o crente, se tem consciência da omnipotência de Deus, também sente que pode confiar incondicionalmente Nele e entregar-se-Lhe nas mãos. Logo, o temor dos discípulos significa que reconhecem em Jesus o Deus presente no meio dos homens e a quem os homens são convidados a aderir, a confiar, a obedecer com total entrega. Marcos propõe-nos, portanto, uma catequese sobre a caminhada dos discípulos em missão no mundo, garantindo que Jesus está sempre connosco, mesmo quando parece ausente ou distraído. Nada temos a temer, porque Cristo vai connosco e ajuda-nos a vencer as forças que se opõem à vida dos homens.

Dom António Couto enfatiza que Marcos descreve três travessias do mar da Galileia. Além da que vem relatada na passagem evangélica em causa (Mc 4,35-41), são de salientar as de Marcos 6,45-52 e 8,13-21. Carateriza-as o facto comum de a precedê-las estar o afastamento das multidões deixando Jesus a sós com os discípulos no barco, possibilitando-lhes uma experiência pessoal com Ele. O barco delimita, assim, um espaço privilegiado que Jesus compartilha partilha somente com os discípulos, de modo que, ainda que o solicite, mais ninguém entra nessa embarcação (vd Mc 5,18).

Na travessia em referência, levantou-se violenta tempestade que encheu de água o barco e de medo os discípulos, os quais, aflitos, acusavam Jesus por dormir tranquilamente deitado sobre a almofada, julgando que estava desinteressado da vida dos que seguiam com Ele.

Porém, Jesus levanta-se e mostra um modo novo de fazer: primeiro, volta-se para o vento e para o mar e manda calar e acalmar; depois, feita a bonança, interpela os discípulos sobre o medo que se apoderou deles e sobre a falta de fé que ainda manifestavam. É curioso anotar que Jesus dá ordens ao vento e ao mar, ao passo que aos discípulos interpela-os com duas perguntas. Os discípulos não respondem, mas exprimem a sua reação face a tudo o que viram Jesus fazer e ouviram Jesus dizer, com uma pergunta de admiração e espanto: “Quem é, pois, este, que até o vento e o mar lhe obedecem?”.

Já antes, em Cafarnaum, Jesus dera ordens a um espírito impuro, que obedeceu (vd Mc 1,26-27), o que evidencia que forças da natureza e espíritos impuros, não reagindo a palavras humanas, seguem à letra as ordens de Jesus, ao passo que os discípulos, interrogando-se mutuamente, passam dum temor natural para um temor maior, que é reverencial, pois resulta da experiência do poder divino, sobre-humano (cf Ex 14,31). Tal como o perigo, a salvação do perigo é superior ao homem e vence a incapacidade humana. O temor novo daqueles discípulos mostra-lhes o sentido do ver nascer do fazer divino de Jesus e exprime o seu espanto face à pergunta de Jesus, que pressupõe que os devia possuir uma fé sem medida. Em relação a um homem vulgar tal fé seria impossível. Assim, a pergunta que os discípulos se fazem entre si é dupla: Quem é este que faz tais coisas e que pede uma fé sem medida? A pergunta, que não é de dúvida, mas espanto e descoberta, acompanhá-los-á doravante no seu caminho com Jesus.

Insiste Dom António Couto na verificação de que a iniciativa de entrar no barco é de Jesus, mas também anota que os discípulos “pegam em Jesus, assim como estava” e conclui que nós pegamos em Jesus como Ele estava da mesma forma que Ele, que nos fez entrar no barco, “pega em nós assim como estamos: impotentes, desarmados, cheios de medo”.

***

Previamente à susodita passagem evangélica, a liturgia desta dominga faz-nos meditar uma passagem do Livro de Job (Jb 38,1.8-11), um clássico da literatura universal pela beleza literária, e pela abordagem de questões que tocam o âmago da vida humana, servindo a história desta personagem de pretexto para reflexão em torno de temas fundamentais sobre as quais o homem se interroga sempre e em toda a parte, tais como o sofrimento do inocente, a situação do homem diante de Deus e a atitude de Deus face ao homem.

Job, homem bom e justo é repentinamente atingido por um vendaval de desgraças que lhe rouba a riqueza, a família e a saúde. Face a esta dramática situação, interroga-se acerca da origem do sofrimento que o atingiu e do papel de Deus no seu drama pessoal. Amigos de Job respondem com base na explicação da teologia oficial: o sofrimento é o resultado do pecado do homem, pelo que, se o homem sofre, é porque pecou. Mas o sofrente Job rejeita, com a força da paz de consciência, tal explicação e arrasa a doutrina oficial por incapaz de explicar este drama pessoal. Com fino sentido crítico, Job desmonta os dogmas fundamentais da fé de Israel e recusa o Deus contabilista que Se limita a registar as ações boas e más do homem e pagar em conformidade. Deus não é isso, como este caso concreto o prova.

Por isso, Job dirige-se diretamente ao próprio Deus, o único que lhe pode dar a resposta. No seu discurso, cruzam-se atitudes negativas (animosidade, violência, queixas, inconformismo, dúvida, revolta) com a esperança, a fé e a confiança em Deus. E Deus recorda a Job a sua condição de criatura, finita, mostrando-lhe como só Ele conhece as leis que regem o universo e a vida, bem como é grande a sua preocupação e o seu amor com cada ser criado, e convidando-o a ocupar o seu lugar de criatura e a não pôr em causa os desígnios de Deus para o mundo, pois tais desígnios ultrapassam a capacidade de compreensão e de entendimento de qualquer criatura. Com efeito, a lógica e o desígnio superam aquilo que cada homem poderá entender.

Por fim, Job percebe o seu lugar, reconhece a transcendência de Deus e a incompreensibilidade do seu desígnio e entrega-se nas mãos de Deus com humildade e confiança.

O trecho em referência insere-se no discurso da resposta de Deus a Job (cf Jb 38,1-40,2), em que Deus levanta uma série de questões sobre a terra, o mar, os mistérios da natureza e da vida, não para concitar respostas de Job, mas para lhe fazer perceber os limites e a incapacidade para entender o mistério insondável de Deus e do seu desígnio para o mundo e para os homens.

No quadro habitual das teofanias (cf Ex 19,16) e segundo o teor do trecho em referência, Deus responde a Job “do meio da tempestade”. A tempestade emoldura a manifestação aos homens do Deus todo-poderoso, o soberano de toda a terra. Quem não se lembra, na aldeia, de, em tempo de relâmpagos, trovões e chuva torrencial, com ou sem granizo, a pessoas mais velhas dizerem que Deus estava a ralhar?

Portanto, o Senhor, “do meio da tempestade”, manifesta-Se a Job para lhe responder às questões por ele levantadas e lhe fazer perceber a insensatez das suas críticas. Depois de se apresentar como o grande arquiteto que fez a terra (cf Jb 38,4-7), refere-se ao seu papel de controlador o mar. Foi Ele quem “encerrou o mar entre dois batentes” e que lhe “fixou os limites” (cf Pr 8,29; Jr 5,22).

As antigas lendas mesopotâmicas da criação apresentavam as “águas salgadas” (representadas pela deusa Tiamat) como um monstro criador do caos e da desordem; e, na luta para organizar o cosmos, Marduk, o deus da ordem, lutou contra o mar, venceu-o e pôs-lhe limites.

O Povo bíblico, influenciado pelos mitos mesopotâmicos, viu no mar a realidade assustadora, indomável, onde residiam os poderes caóticos que o homem não controlava. Não obstante, os catequistas de Israel asseguraram que a Palavra criadora de Javé impôs às águas tumultuosas do mar, de uma vez para sempre, os seus limites (“Deus disse: ‘reúnam-se as águas que estão sob os céus num único lugar, a fim de aparecer a terra seca’. E assim aconteceu” – Gn 1,9). Javé não precisou de lutar furiosamente contra o mar, mas organizou o mundo impondo às águas um limite que elas não poderão atravessar sem ordem divina. O mar, encerrado nos seus limites naturais, testemunha o poder supremo de Deus e o seu perfeito domínio sobre toda a criação.

Ao recordar a sua ação criadora sobre o mar, Javé apresenta-Se intocável na sua transcendência e mostra que tem para a criação um plano estável, consolidado, irrevogável. Assim, quem é Job ou qualquer um de nós para pôr em causa os desígnios de Deus criador que, pela sua Palavra, controlou o mar? Há, pois, que aceitar o Deus de quem depende toda a criação, que até submete o mar, cuida da criação com cuidados de pai e tem uma solução para os problemas e dramas do homem. E o homem, na sua situação de criatura finita e limitada, é que nem sempre consegue perceber o alcance e o sentido último do desígnio de Deus.

***

Javé e Jesus revelam-Se no meio da tempestade. Porém, Javé fala mais que Jesus, como Job barafusta, enquanto os discípulos só “acusam” o Mestre por estarem aflitos e lhes parecer que Ele não se importa de que eles morram. O quadro do livro de Job é premonitório: Jesus tem o mesmo poder que Javé. Porém, em vez de muitas explicações sobre o seu poder, Jesus exerce-o sobre o vento e o mar, dando-lhes ordens a que eles obedecem. E interpela os discípulos pela falta de fé, o que os leva a interrogarem-se entre si a abrir o caminho da fé. É a certeza de que, em vez do questionamento desnecessário, se adore o Criador e se sigam os passos do Redentor em clima de amor e ação de graças e no dinamismo da renovação constante (cf 2Cor 5,14-17).

2021.06.20 – Louro de Carvalho

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