De acordo com o teor do respetivo comunicado e o das subsequentes
declarações do Primeiro-Ministro, o Conselho de Ministros, aprovou, a 2 de
junho, uma resolução em ordem à prossecução
da estratégia de levantamento de medidas de confinamento no âmbito do combate à
pandemia de covid-19, definindo novas etapas na estratégia de desconfinamento e
permitindo a continuação da garantia de estabilidade e previsibilidade.
Sem, no
fundo, proceder à revisão da matriz dos critérios para levantamento ou
suavização das restrições, como chegou a propor o Presidente da República, o
Governo preferiu atender a recomendação dos especialistas, que deram a entender
que era ainda cedo para a desejada revisão e sugeriram novas fases de
desconfinamento, o que não impediu alguns dos ajustes reivindicados há muito
tempo por alguns fazedores de opinião pública e por autarcas.
Assim, os
grandes critérios a considerar para a avaliação da situação epidemiológica continuam
a ser a matriz de risco da transmissibilidade do vírus e do nível de
incidência, embora, para alguns territórios, os valores a considerar da incidência
cumulativa a 14 dias se elevem para o dobro. E, sem prejuízo de se poderem aplicar
medidas mais restritivas, as novas fases aplicam-se aos municípios em função da
respetiva situação epidemiológica, designadamente àqueles cujo nível de
incidência seja inferior a 120 casos por 100 mil habitantes na avaliação
cumulativa a 14 dias, ou menos de 240 casos por 100 mil habitantes nos
territórios de baixa densidade.
Das novas
fases (a iniciar
a 14 de junho e 28 de junho, respetivamente) destacam-se as seguintes medidas:
A partir do dia 14 de junho (1.ª nova fase): teletrabalho
recomendado quando as atividades o permitam; restaurantes, cafés e pastelarias com
as atuais regras de lotação até às 0 horas para efeitos de admissão e
encerramento à uma hora; equipamentos culturais até à meia-noite para efeitos
de entrada e encerramento à uma hora, com redução da lotação até 50% de forma a
garantir um lugar de intervalo entre espetadores/coabitantes; comércio com o horário
do seu licenciamento; transportes coletivos em que só existem lugares sentados,
com lotação completa, e outros transportes coletivos, com 2/3 da lotação; táxis
e TVDE com lotação limitada aos bancos traseiros; e eventos desportivos com
público nos escalões de formação e modalidades amadoras com lugares marcados e
regras definidas pela DGS – em recintos desportivos, com 33% da lotação, e fora
de recintos desportivos, com lotação e regras a definir pela DGS.
A partir de
28 de junho até ao final de agosto (2.ª nova fase): eventos desportivos dos escalões profissionais ou
equiparados, com regras a definir pela DGS; lojas de cidadão sem marcação
prévia; transportes coletivos sem restrição de lotação; táxis e TVDE com
lotação limitada aos bancos traseiros.
Aos
concelhos com incidência superior a 120 casos por 100 mil habitantes (ou
>240/100.000 em alguns territórios) ou superior
a 240 casos por 100 mil habitantes (ou >480/100.000 em alguns
territórios)
correspondem, no essencial, respetivamente, os níveis de 19 de abril e de 1 de
maio.
Em geral, como frisou o
Primeiro-Ministro, nos meses de julho e agosto, há três restrições
fundamentais: encerramento dos bares e das discotecas; proibição das festas e das
romarias populares; condicionamento de casamentos, batizados, crismas e eventos
de natureza familiar a respeitar uma lotação de 50% dos recintos onde se
efetuam.
O Conselho de Ministros aprovou também uma
resolução que altera as medidas aplicáveis a determinados concelhos no âmbito
da situação de calamidade. Tomando por base os dados relativos à incidência por
concelho à data de 1 de junho e tendo em conta os critérios definidos para
alguns territórios, foram introduzidas as seguintes alterações no respeitante
aos municípios abrangidos por cada fase de desconfinamento: as medidas de 19 de
abril continuam a aplicar-se a Odemira e Golegã; aos restantes municípios do
território nacional continental aplicam-se as regras de 1 de maio, incluindo
Arganil e Montalegre, que seguem no desconfinamento; entram em alerta os
concelhos de Braga, Cantanhede, Castelo de Paiva, mantendo-se em alerta Lisboa,
Salvaterra de Magos e Vale de Cambra; e saem do estado de alerta Chamusca,
Tavira, Vila do Bispo e Vila Nova de Paiva.
***
O Presidente da República, apesar de ter
prometido respeitar a opinião dos especialistas, defendeu, na reunião do dia 28
de maio no Infarmed, a necessidade duma “legitimação pública” dos critérios
usados para que o país avance no desconfinamento e discordou dos peritos, que
sugeriram a manutenção dos mesmos critérios e que, apesar das dúvidas e reparos
presidenciais, não mudaram uma linha na proposta.
Marcelo
pedira que se mexesse na matriz dos critérios estribam as decisões de
desconfinamento (quadro a
verde, amarelo, vermelho, para avaliar a situação do país em relação à
incidência da doença e à velocidade a que se transmite a cada momento), porque “a vida tem de continuar”.
Porém, contrariado pelos peritos que sugeriram manter a matriz com os mesmos
critérios, o Presidente quis deixar clara a sua discordância por já não ser
“evidente” a primazia da saúde sobre a vida económica e social, pois há
direitos fundamentais em causa, o que postula uma “legitimação pública” dos
critérios.
O
Primeiro-Ministro nada disse, quer na fase pública nem, pelos vistos, na parte
privada do debate, tendo-se guardado para a comunicação ao país no dia 2, sem
afrontar o Chefe de Estado, mas continuando a preferir a recomendação dos
especialistas. Foi Marcelo quem apresentou dúvidas e observações ao trabalho
dos técnicos no debate à porta fechada. Na sua ótica, não estava a ser
ponderado o efeito das restrições na vida económica e social e no peso que isso
tem na vida das pessoas, ou seja, começava a “não ser evidente” que se continuem a primaziar
as questões de saúde em detrimento da economia e da sociedade. E, no final da
reunião, vincou:
“Desde
o início chamamos à atenção para o problema enfrentado pelos decisores
políticos e, sobretudo, pelo Governo, que é o de ter presente por um lado a
salvaguarda da vida e da saúde e do outro lado a pobreza, a insolvência, a
falência. São situações que atingem direitos fundamentais das pessoas.”.
Depois,
apontou o dedo ao que julga agora ser o mais importante:
“É evidente a primazia do
direito à vida e saúde quando se trata de riscos elevados de mortalidade e de
stresse sobre o Serviço Nacional de Saúde, mas já não é tão evidente e obriga a
uma ponderação mais cuidadosa quando a percepção é que esses riscos estão a
descer – não desce a incidência, mas sim a
incidência no SNS e na mortalidade – e existe um maior ou menos sacrifício em
termos de economia e sociedade”.
O
Presidente, que pedira mudança na matriz de risco, que serve de base para as
decisões de desconfinamento local e nacional, na reunião com os peritos notou
falhas e faltas de respostas a questões que levantara. Em sua opinião, não
houve ponderação pelos peritos entre a incidência e os casos de internamento e
de mortalidade, não houve “qualquer análise sobre a ligação que existe ou não
sobre o aumento de casos e a pressão que existe ou não no Serviço Nacional de
Saúde”. Enfim, o Presidente queria que a matriz que usa a incidência e o R(t)
considerasse outros critérios de avaliação da doença, o que não aconteceu. Para
tal lembrou que chegou a falar ao país, para justificar os estados de
emergência, de outros critérios “sufragados por peritos” que agora não são considerados,
como internamentos e internamentos em UCI, começando a ser difícil passar a
legitimação para a sociedade quando se vê “uma estabilização ou descida de
internamentos e de internamentos em UCI e não saber se há uma correlação entre
as realidades”. Parece esquecer que a incidência e o R(t)
(índice de transmissão) não estão em diminuendo
consolidado – estão num constante sobe e desce, embora de curta amplitude –, que o SNS precisa de folga para se dedicar a outras valências
também relevantes e que, ao menor descuido, podem
ficar saturados com a covid-19.
É certo que estamos todos cansados de restrições, mas quem sofreu
pesados e continuados estados de emergência, também será complacente com as
exigências que aqui e agora forem determinadas, desde que de forma equilibrada,
mesmo sem estar à espera que o exemplo venha de cima ou sem se impressionar com
os maus exemplos a norte ou a sul.
Para
Marcelo, há não só uma ponderação a fazer sobre a tal legitimação pública das ações
dos decisores públicos, mas também de valores: “em termos de legitimação
pública é muito importante... e de valores também” – disse.
Nas suas palavras nota-se um desconforto com decisões que podem estar excessivamente do lado
sanitarista e, havendo menos risco de saúde pública, seria necessário equilibrar
a balança e dar um maior peso do lado da economia e da vida social.
As
dúvidas do Presidente atingiram ainda os argumentos dos peritos para manter o
garrote apertado: variantes e vacinação. No âmbito das variantes, disse ter “dificuldade
em ver o peso imediato das variantes na sociedade”, mas os peritos revelaram
que a predominante continua a ser a variante do Reino Unido e que a indiana
representou em maio cerca de 4,6% das amostras. E, quanto à vacinação,
considerou que é necessária especial atenção às “bolsas de resistência”, pelo
que “deve ser feito um maior esforço para explicar a importância da vacinação”.
Os
especialistas ouviram e não mudaram a sua opinião, tentando rebater ponto por
ponto a argumentação do Presidente. Raquel Duarte, que apresentou o plano de
medidas, e Andreia Leite, que apresentou a sugestão de manutenção da matriz de
risco, defenderam que o risco da pandemia não tinha diminuído porque ainda há
várias incógnitas, nomeadamente sobre as novas variantes – e o avanço da
vacinação poder fazer nascer novas variantes mais resistentes –, mas também
sobre o tempo de imunização da vacinação. Ou seja, desmontaram a ideia de que
não estamos perante uma ameaça grave à saúde. Outro argumento dos especialistas
prendeu-se com as sequelas decorrentes da covid-19 que muitas pessoas estão a
desenvolver, mesmo que não tenham sido hospitalizadas no período agudo da
doença, peço que deve ser aplicado o princípio da precaução.
Quanto
ao mais, Raquel Duarte respondeu que os peritos estão a ter em atenção a
necessidade de devolver a vida social às pessoas, tanto que sugeriram novos
níveis de desconfinamento.
O
Primeiro-Ministro ficou calado, como tem acontecido em grande parte das
reuniões. E, em face da divergência entre o Presidente e os peritos, reservou a
palavra para o momento de decidir sobre a proposta entregue pelos especialistas,
sendo certo que fora o próprio quem lhes pediu uma nova forma de avaliar a
pandemia, que tivesse em conta o processo de vacinação.
À
saída da reunião, a Ministra da Saúde fez a síntese disse que a matriz de risco
servia como alerta, deixando a dúvida se esta matriz deixaria de ser usada como
obrigatória para os avanços no desconfinamento. Desde março há indexação à
matriz de risco e o Governo mantém-na.
***
Entretanto,
neste dia 2, Marcelo considerou as medidas ora aprovadas pelo Governo uma
tentativa de equilíbrio entre dois fundamentalismos: o sanitário; e o que quer
maior abertura.
Em
declarações aos jornalistas na Embaixada de Portugal em Sófia, no final duma
visita oficial de três dias à Bulgária, o Presidente da República defendeu que “não
se pode negar a realidade”, que é diferente da que se vivia antes da vacinação
contra a covid-19. E explanou:
“Verdadeiramente há uma tentativa –
e ontem foi o caso – de encontrar um equilíbrio e evitar dois fundamentalismos,
um fundamentalismo sanitário, que não reconhece que vivemos hoje numa situação
diferente [...], um fundamentalismo em termos de abertura, que ignora que há
padrões europeus que são adotados pelos países que nos rodeiam”.
E alertou que, se Portugal atingir
alguns desses indicadores “sem ser concertado com a Europa”, terá “custos na
mobilidade e no turismo”.
Questionado se as medidas aprovadas
em Conselho de Ministros – que mantêm a atual matriz de risco, mas diferenciam
os territórios de baixa densidade populacional – conseguem esse equilíbrio,
Marcelo respondeu que vão nesse caminho, esclarecendo:
“Eu acho que as medidas que ontem foram conhecidas e estão a ser adotadas em vários países europeus são uma tentativa de encontrar um equilíbrio entre dois extremos. E estão sempre sujeitas a atualização. Elas apontam para final de agosto, mas todas as semanas há avaliações.”.
Para o Presidente da República, “é fundamental não voltar atrás, não recuar”, pelo
que apela a que haja “bom senso” para a abertura gradual da economia e da
sociedade.
E, num discurso realizado na
Embaixada de Portugal, perante cerca de 30 convidados, entre os quais a Secretária
de Estado dos Assuntos Europeus, Ana Paula Zacarias, que tem acompanhado a
visita, o Presidente defendeu que ainda “mais urgente que a recuperação
económica, é a recuperação social e psicológica”. E avisou:
“Primeiro, é preciso que a
economia recupere, arranque rápido, para além daquela que aguentou, que
trabalhou sempre. Mas, depois, é preciso que chegue à vida das pessoas. Uma
coisa é arrancar a economia; outra é chegar dinheiro ao bolso das pessoas.”.
Só nessa fase, considerou, as pessoas
sentirão “que estão outra vez com maior esperança no futuro e a sarar as suas
feridas” – o que “demora muito tempo”, pois a recuperação económica é sempre
muito mais lenta do que a recuperação social”.
***
Continuo
a considerar excessivo o intervencionismo presidencial, como o seria mesmo se
fosse especialista em saúde e/ou em matéria económica. É ao Governo que nos termos
constitucionais compete a condução da política geral do país e a supervisão da
administração pública (vd
CRP, art.º 182.º). Pior
ainda é a tentativa de, em privado e em público, forçar a nota para a sua visão
junto dos especialistas, como o é, desta feita, a presunção de congraçamento entre
dois fundamentalismos, que não existem, por parte do Governo. Decerto, como
dizem na minha terra, “cada macaco no seu galho”: que o Presidente exerça as
funções presidenciais, que não passam pela governança; que o Parlamento discuta,
legisle e faça a fiscalização da atividade do Governo e das demais instituições
nos termos em que for legítimo e necessário; que o Governo que governe o país e
dirija a administração da coisa pública, obedecendo no essencial às leis
aprovadas no Parlamento e acatando as indicações que resultem da fiscalização
parlamentar sobre os atos do Governo; e que a oposição, não o Presidente, discuta
franca e aguerridamente a linha política e a atuação do Governo e do partido
que o sustenta. E, por fim, que se ouça a ciência, não por mera cortesia ou obrigação,
mas para a eficácia da ação política.
2021.06.03 – Louro de
Carvalho
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