quinta-feira, 3 de junho de 2021

Desconfinamento em junho de 2021, no 2.º ano de pandemia de covid-19

 

De acordo com o teor do respetivo comunicado e o das subsequentes declarações do Primeiro-Ministro, o Conselho de Ministros, aprovou, a 2 de junho, uma resolução em ordem à prossecução da estratégia de levantamento de medidas de confinamento no âmbito do combate à pandemia de covid-19, definindo novas etapas na estratégia de desconfinamento e permitindo a continuação da garantia de estabilidade e previsibilidade.

Sem, no fundo, proceder à revisão da matriz dos critérios para levantamento ou suavização das restrições, como chegou a propor o Presidente da República, o Governo preferiu atender a recomendação dos especialistas, que deram a entender que era ainda cedo para a desejada revisão e sugeriram novas fases de desconfinamento, o que não impediu alguns dos ajustes reivindicados há muito tempo por alguns fazedores de opinião pública e por autarcas.

Assim, os grandes critérios a considerar para a avaliação da situação epidemiológica continuam a ser a matriz de risco da transmissibilidade do vírus e do nível de incidência, embora, para alguns territórios, os valores a considerar da incidência cumulativa a 14 dias se elevem para o dobro. E, sem prejuízo de se poderem aplicar medidas mais restritivas, as novas fases aplicam-se aos municípios em função da respetiva situação epidemiológica, designadamente àqueles cujo nível de incidência seja inferior a 120 casos por 100 mil habitantes na avaliação cumulativa a 14 dias, ou menos de 240 casos por 100 mil habitantes nos territórios de baixa densidade.

Das novas fases (a iniciar a 14 de junho e 28 de junho, respetivamente) destacam-se as seguintes medidas:

A partir do dia 14 de junho (1.ª nova fase): teletrabalho recomendado quando as atividades o permitam; restaurantes, cafés e pastelarias com as atuais regras de lotação até às 0 horas para efeitos de admissão e encerramento à uma hora; equipamentos culturais até à meia-noite para efeitos de entrada e encerramento à uma hora, com redução da lotação até 50% de forma a garantir um lugar de intervalo entre espetadores/coabitantes; comércio com o horário do seu licenciamento; transportes coletivos em que só existem lugares sentados, com lotação completa, e outros transportes coletivos, com 2/3 da lotação; táxis e TVDE com lotação limitada aos bancos traseiros; e eventos desportivos com público nos escalões de formação e modalidades amadoras com lugares marcados e regras definidas pela DGS – em recintos desportivos, com 33% da lotação, e fora de recintos desportivos, com lotação e regras a definir pela DGS.

A partir de 28 de junho até ao final de agosto (2.ª nova fase): eventos desportivos dos escalões profissionais ou equiparados, com regras a definir pela DGS; lojas de cidadão sem marcação prévia; transportes coletivos sem restrição de lotação; táxis e TVDE com lotação limitada aos bancos traseiros.

Aos concelhos com incidência superior a 120 casos por 100 mil habitantes (ou >240/100.000 em alguns territórios) ou superior a 240 casos por 100 mil habitantes (ou >480/100.000 em alguns territórios) correspondem, no essencial, respetivamente, os níveis de 19 de abril e de 1 de maio.

Em geral, como frisou o Primeiro-Ministro, nos meses de julho e agosto, há três restrições fundamentais: encerramento dos bares e das discotecas; proibição das festas e das romarias populares; condicionamento de casamentos, batizados, crismas e eventos de natureza familiar a respeitar uma lotação de 50% dos recintos onde se efetuam.

O Conselho de Ministros aprovou também uma resolução que altera as medidas aplicáveis a determinados concelhos no âmbito da situação de calamidade. Tomando por base os dados relativos à incidência por concelho à data de 1 de junho e tendo em conta os critérios definidos para alguns territórios, foram introduzidas as seguintes alterações no respeitante aos municípios abrangidos por cada fase de desconfinamento: as medidas de 19 de abril continuam a aplicar-se a Odemira e Golegã; aos restantes municípios do território nacional continental aplicam-se as regras de 1 de maio, incluindo Arganil e Montalegre, que seguem no desconfinamento; entram em alerta os concelhos de Braga, Cantanhede, Castelo de Paiva, mantendo-se em alerta Lisboa, Salvaterra de Magos e Vale de Cambra; e saem do estado de alerta Chamusca, Tavira, Vila do Bispo e Vila Nova de Paiva.

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O Presidente da República, apesar de ter prometido respeitar a opinião dos especialistas, defendeu, na reunião do dia 28 de maio no Infarmed, a necessidade duma “legitimação pública” dos critérios usados para que o país avance no desconfinamento e discordou dos peritos, que sugeriram a manutenção dos mesmos critérios e que, apesar das dúvidas e reparos presidenciais, não mudaram uma linha na proposta.

Marcelo pedira que se mexesse na matriz dos critérios estribam as decisões de desconfinamento (quadro a verde, amarelo, vermelho, para avaliar a situação do país em relação à incidência da doença e à velocidade a que se transmite a cada momento), porque “a vida tem de continuar”. Porém, contrariado pelos peritos que sugeriram manter a matriz com os mesmos critérios, o Presidente quis deixar clara a sua discordância por já não ser “evidente” a primazia da saúde sobre a vida económica e social, pois há direitos fundamentais em causa, o que postula uma “legitimação pública” dos critérios.

O Primeiro-Ministro nada disse, quer na fase pública nem, pelos vistos, na parte privada do debate, tendo-se guardado para a comunicação ao país no dia 2, sem afrontar o Chefe de Estado, mas continuando a preferir a recomendação dos especialistas. Foi Marcelo quem apresentou dúvidas e observações ao trabalho dos técnicos no debate à porta fechada. Na sua ótica, não estava a ser ponderado o efeito das restrições na vida económica e social e no peso que isso tem na vida das pessoas, ou seja, começava a não ser evidente que se continuem a primaziar as questões de saúde em detrimento da economia e da sociedade. E, no final da reunião, vincou:

Desde o início chamamos à atenção para o problema enfrentado pelos decisores políticos e, sobretudo, pelo Governo, que é o de ter presente por um lado a salvaguarda da vida e da saúde e do outro lado a pobreza, a insolvência, a falência. São situações que atingem direitos fundamentais das pessoas.”.

Depois, apontou o dedo ao que julga agora ser o mais importante: 

“É evidente a primazia do direito à vida e saúde quando se trata de riscos elevados de mortalidade e de stresse sobre o Serviço Nacional de Saúde, mas já não é tão evidente e obriga a uma ponderação mais cuidadosa quando a percepção é que esses riscos estão a descer – não desce a incidência, mas sim a incidência no SNS e na mortalidade – e existe um maior ou menos sacrifício em termos de economia e sociedade”.

O Presidente, que pedira mudança na matriz de risco, que serve de base para as decisões de desconfinamento local e nacional, na reunião com os peritos notou falhas e faltas de respostas a questões que levantara. Em sua opinião, não houve ponderação pelos peritos entre a incidência e os casos de internamento e de mortalidade, não houve “qualquer análise sobre a ligação que existe ou não sobre o aumento de casos e a pressão que existe ou não no Serviço Nacional de Saúde”. Enfim, o Presidente queria que a matriz que usa a incidência e o R(t) considerasse outros critérios de avaliação da doença, o que não aconteceu. Para tal lembrou que chegou a falar ao país, para justificar os estados de emergência, de outros critérios “sufragados por peritos” que agora não são considerados, como internamentos e internamentos em UCI, começando a ser difícil passar a legitimação para a sociedade quando se vê “uma estabilização ou descida de internamentos e de internamentos em UCI e não saber se há uma correlação entre as realidades”. Parece esquecer que a incidência e o R(t) (índice de transmissão) não estão em diminuendo consolidado – estão num constante sobe e desce, embora de curta amplitude –, que o SNS precisa de folga para se dedicar a outras valências também relevantes e que, ao menor descuido, podem ficar saturados com a covid-19.

É certo que estamos todos cansados de restrições, mas quem sofreu pesados e continuados estados de emergência, também será complacente com as exigências que aqui e agora forem determinadas, desde que de forma equilibrada, mesmo sem estar à espera que o exemplo venha de cima ou sem se impressionar com os maus exemplos a norte ou a sul.  

Para Marcelo, há não só uma ponderação a fazer sobre a tal legitimação pública das ações dos decisores públicos, mas também de valores: em termos de legitimação pública é muito importante... e de valores também” – disse.

Nas suas palavras nota-se um desconforto com decisões que podem estar excessivamente do lado sanitarista e, havendo menos risco de saúde pública, seria necessário equilibrar a balança e dar um maior peso do lado da economia e da vida social.

As dúvidas do Presidente atingiram ainda os argumentos dos peritos para manter o garrote apertado: variantes e vacinação. No âmbito das variantes, disse ter “dificuldade em ver o peso imediato das variantes na sociedade”, mas os peritos revelaram que a predominante continua a ser a variante do Reino Unido e que a indiana representou em maio cerca de 4,6% das amostras. E, quanto à vacinação, considerou que é necessária especial atenção às “bolsas de resistência”, pelo que “deve ser feito um maior esforço para explicar a importância da vacinação”.

Os especialistas ouviram e não mudaram a sua opinião, tentando rebater ponto por ponto a argumentação do Presidente. Raquel Duarte, que apresentou o plano de medidas, e Andreia Leite, que apresentou a sugestão de manutenção da matriz de risco, defenderam que o risco da pandemia não tinha diminuído porque ainda há várias incógnitas, nomeadamente sobre as novas variantes – e o avanço da vacinação poder fazer nascer novas variantes mais resistentes –, mas também sobre o tempo de imunização da vacinação. Ou seja, desmontaram a ideia de que não estamos perante uma ameaça grave à saúde. Outro argumento dos especialistas prendeu-se com as sequelas decorrentes da covid-19 que muitas pessoas estão a desenvolver, mesmo que não tenham sido hospitalizadas no período agudo da doença, peço que deve ser aplicado o princípio da precaução.

Quanto ao mais, Raquel Duarte respondeu que os peritos estão a ter em atenção a necessidade de devolver a vida social às pessoas, tanto que sugeriram novos níveis de desconfinamento.

O Primeiro-Ministro ficou calado, como tem acontecido em grande parte das reuniões. E, em face da divergência entre o Presidente e os peritos, reservou a palavra para o momento de decidir sobre a proposta entregue pelos especialistas, sendo certo que fora o próprio quem lhes pediu uma nova forma de avaliar a pandemia, que tivesse em conta o processo de vacinação.

À saída da reunião, a Ministra da Saúde fez a síntese disse que a matriz de risco servia como alerta, deixando a dúvida se esta matriz deixaria de ser usada como obrigatória para os avanços no desconfinamento. Desde março há indexação à matriz de risco e o Governo mantém-na.  

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Entretanto, neste dia 2, Marcelo considerou as medidas ora aprovadas pelo Governo uma tentativa de equilíbrio entre dois fundamentalismos: o sanitário; e o que quer maior abertura.

Em declarações aos jornalistas na Embaixada de Portugal em Sófia, no final duma visita oficial de três dias à Bulgária, o Presidente da República defendeu que “não se pode negar a realidade”, que é diferente da que se vivia antes da vacinação contra a covid-19. E explanou:

Verdadeiramente há uma tentativa – e ontem foi o caso – de encontrar um equilíbrio e evitar dois fundamentalismos, um fundamentalismo sanitário, que não reconhece que vivemos hoje numa situação diferente [...], um fundamentalismo em termos de abertura, que ignora que há padrões europeus que são adotados pelos países que nos rodeiam”.

E alertou que, se Portugal atingir alguns desses indicadores “sem ser concertado com a Europa”, terá “custos na mobilidade e no turismo”.

Questionado se as medidas aprovadas em Conselho de Ministros – que mantêm a atual matriz de risco, mas diferenciam os territórios de baixa densidade populacional – conseguem esse equilíbrio, Marcelo respondeu que vão nesse caminho, esclarecendo:

Eu acho que as medidas que ontem foram conhecidas e estão a ser adotadas em vários países europeus são uma tentativa de encontrar um equilíbrio entre dois extremos. E estão sempre sujeitas a atualização. Elas apontam para final de agosto, mas todas as semanas há avaliações.”.

Para o Presidente da República, “é fundamental não voltar atrás, não recuar”, pelo que apela a que haja “bom senso” para a abertura gradual da economia e da sociedade.

E, num discurso realizado na Embaixada de Portugal, perante cerca de 30 convidados, entre os quais a Secretária de Estado dos Assuntos Europeus, Ana Paula Zacarias, que tem acompanhado a visita, o Presidente defendeu que ainda “mais urgente que a recuperação económica, é a recuperação social e psicológica”. E avisou:

Primeiro, é preciso que a economia recupere, arranque rápido, para além daquela que aguentou, que trabalhou sempre. Mas, depois, é preciso que chegue à vida das pessoas. Uma coisa é arrancar a economia; outra é chegar dinheiro ao bolso das pessoas.”.

Só nessa fase, considerou, as pessoas sentirão “que estão outra vez com maior esperança no futuro e a sarar as suas feridas” – o que “demora muito tempo”, pois a recuperação económica é sempre muito mais lenta do que a recuperação social”.

***

Continuo a considerar excessivo o intervencionismo presidencial, como o seria mesmo se fosse especialista em saúde e/ou em matéria económica. É ao Governo que nos termos constitucionais compete a condução da política geral do país e a supervisão da administração pública (vd CRP, art.º 182.º). Pior ainda é a tentativa de, em privado e em público, forçar a nota para a sua visão junto dos especialistas, como o é, desta feita, a presunção de congraçamento entre dois fundamentalismos, que não existem, por parte do Governo. Decerto, como dizem na minha terra, “cada macaco no seu galho”: que o Presidente exerça as funções presidenciais, que não passam pela governança; que o Parlamento discuta, legisle e faça a fiscalização da atividade do Governo e das demais instituições nos termos em que for legítimo e necessário; que o Governo que governe o país e dirija a administração da coisa pública, obedecendo no essencial às leis aprovadas no Parlamento e acatando as indicações que resultem da fiscalização parlamentar sobre os atos do Governo; e que a oposição, não o Presidente, discuta franca e aguerridamente a linha política e a atuação do Governo e do partido que o sustenta. E, por fim, que se ouça a ciência, não por mera cortesia ou obrigação, mas para a eficácia da ação política.

2021.06.03 – Louro de Carvalho

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