quarta-feira, 9 de junho de 2021

Não é preciso cavar muito para se verem mazelas no Banco Montepio

Em tempos, escrevi uma série de linhas de repúdio pela tentação da SCML (Santa Casa da Misericórdia de Lisboa) em querer participar no capital do Montepio, supostamente para ajudar a salvar o banco em abono das centenas de milhares de membros da AMMG (Associação Mutualista Montepio Geral) e dos legítimos interesses dos clientes (depositantes e investidores), que não podiam arcar com os reveses por que a instituição estava a passar e com os putativamente iminentes.

As razões que eu aduzia prendiam-se com a finalidade social da SCML ao invés da atividade financeira qua tali e à experiência de insucesso que a SCML teve na área financeira no passado. Era, pois, do meu ponto de vista, temerário e inético investir, sem garantia mínima de retorno, dinheiros dos cidadãos destinados a fins sociais para salvar quem não tinha salvação, mercê de gestão ineficaz, talvez porque insuficientemente profissional. 

Entretanto, a par de várias alterações estatutárias e procedimentais, a AMMG deixou de ser a única proprietária da Caixa Económica Montepio Geral (CEMG), passando a ser acompanhada em percentagens residuais pela SCML, algumas Misericórdias do país e algumas IPSS, separou-se a gestão da AMMG da gestão da CEMG, que mudou para “Banco Montepio” e passou a ser mais profissional e mais alinhada com os ditames da regulação e da supervisão. Porém, isto não obstou ao aparecimento de novos problemas internos ao nível dos gestores, à falta de solução para alguns problemas pendentes e mesmo ao espectro de falência desse grupo financeiro, que parece estar, como outros, em vias de objeto de participação do Estado.      

***

Agora, no âmbito das notícias do Montepio, a revista “Sábado” desta semana traz uma peça de António José Vilela intitulada “O plano ruinoso do Montepio no negócio dos navios”, em que dá conta dum negócio que nada abona da credibilidade do banco e que passo a comentar.   

Ainda sob a liderança de Tomás Correia, a CEMG usou como intermediário o empresário Rui Alegre, antigo genro de Américo Amorim, num plano de engenharia financeira para amenizar o passivo de cerca de 61 milhões de euros, prestes a tornar-se incobrável em 2012. Estava em jogo a compra de 4 barcos de cruzeiros, que veio a cavar “um buraco de mais 100 milhões”.

O fisco suspeitou de insolvência dolosa, mas os tribunais não lhe deram razão, já que a CEMG não se queixara. O montante do dito passivo era o total das dívidas do armador grego George Potamianos, cuja família estava radicada em Portugal, que em janeiro de 2013 passou para várias empresas abertas pelo tal intermediário na ZFM (Zona Franca da Madeira). Os contratos confidenciais do negócio, que envolveram créditos cruzados entre empresas para a exploração comercial dos navios, previam que o Montepio estaria disponível para novos empréstimos nada cobrando (capital e juros) ao empresário nos 3 anos seguintes à sua assinatura. Em contrapartida, Alegre entregaria como penhor as suas novas empresas (de capital social insignificante), as quais acabaram insolventes a partir de 2015, antes de serem obrigadas legalmente a pagar qualquer montante ao banco. E os barcos tiveram como destino a sucata ou a venda ao desbarato e o predito passivo do banco ultrapassou os 100 milhões.

A história do negócio consta de documentos internos do Montepio e de testemunhos ouvidos num processo que decorreu no Juízo de Comércio do Funchal, no Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, mercê de inquérito do MP (Ministério Público) após denúncia da AT (Autoridade Tributária) devido à suspeita de que a Island Cruises, Transportes Marítimos, L.da (titular do navio Athena, batizado Azores a partir de abril de 2013), uma das empresas de Alegre que participou no negócio, teria sido objeto de insolvência culposa que misturara o alegado desvio de cerca de 1 milhão de euros dos empréstimos do Montepio para contas no Panamá e no Mónaco. Porém, os tribunais (incluindo o Tribunal da Relação de Lisboa em agosto de 2020) concluíram que a insolvência não foi dolosa, mas fortuita, sendo justificados os gastos de dinheiro como pagamento a credores.

Não obstante, sabe-se que o Montepio controlou sempre os passos do negócio e os respetivos gastos que incluíram a libertação de sucessivos créditos que avolumaram o montante da dívida global ao banco e que o Montepio não se queixou da atuação de Alegre, porque este se limitou a ser sua testa de ferro, cumprindo as instruções, não se sabendo a troco de quê.

A poucos meses da morte de Potamianos no fim de maio de 2012, o Montepio deparou-se com um problema financeiro expectável há muito. A família Potamianos (5 empresas) tinha, no fim de 2012, o “montante global de €61.261.684,21” de créditos por pagar. O setor dos cruzeiros estava em crise e as dívidas do armador acumulavam-se em Portugal e no estrangeiro, sendo tão grave situação que os 4 paquetes de Potamianos – Funchal, Princess Daphne, Athena e Arion – foram arrestados em vários portos da Europa com turistas a bordo. Pela iminente insolvência das empresas, o banco contratou como assessor o comandante António Caneco. E, como este refere, a engenharia financeira previa (entre outras medidas) a criação de nova estrutura empresarial composta por uma sociedade gestora de participações sociais, por 4 sociedades-filhas (cada uma dona de um dos 4 navios para dispersar o risco) e por uma outra sociedade-filha que teria geriria todas as atividades necessárias para operacionalizar os barcos. Só faltava alguém interessado em entrar no negócio com a tutela do Montepio. No tribunal ninguém explicou como o banco chegou a Alegre, que passou a ter, no arranque do negócio, o consultor Caneco como dono da quota de 1% nas empresas que abriu na ZFM seis dias antes da assinatura do contrato com o Montepio. E Alegre disse que aceitou a proposta do banco “em participar no negócio, por entender ser uma instituição credível e por se achar um gestor competente que geriu mais de 200 empresas, tendo muita experiência no ramo hoteleiro”. Porém, o MP sustentou que o empresário nunca pôs um pé nos navios antes de concretizar o negócio através das empresas Islands Cruises, Pearl Cruises, Coral Cruises e South Coast Cruises, todas só com o capital social de 500 euros.

Abertas na ZFM, estas empresas juntaram-se à recém-criada Portuscale Cruises, cujo diretor de operações foi Caneco (de abril de 2013 a maio de 2015), e que visava gerir operacionalmente o futuro negócio que ficou sob o chapéu da Cale, sociedade anónima de participações sociais (capital de 1,65 milhões) controlada por Alegre, com a empresa-mãe, Cale Finance, sediada no Luxemburgo.

A Cale, ainda existente, tinha, em 2019, tinha um ativo de 18,6 milhões e um passivo de 14 milhões. Entretanto, o negócio tinha tudo para ser inquinado, pois Alegre, empresário com interesses no turismo, imobiliário e agricultura, foi constituído arguido no caso Furacão por suspeita de fraude fiscal e branqueamento de capitais em negócios imobiliários e comércio de produtos agrícolas e cortiça do grupo Amorim, mas justificou que nada sabia dos esquemas de fuga ao fisco, pois assinara, sem ler, os documentos que a estrutura financeira central do grupo desenvolvia na sequência de decisões do respetivo Conselho de Administração.

Regularizado o caso Furacão após o pagamento de quase 3,8 milhões de euros pelo grupo Amorim, a 17 de janeiro de 2013, Alegre formalizou o negócio dos cruzeiros, que o Montepio financiou em mais de 64 milhões de euros depois de, a 20 de dezembro de 2012, assinar um acordo de promessa de regularização de dívida e de compra e venda dos navios com os dois filhos do armador grego que viviam em Caxias. O documento estipulava que as sociedades devedoras teriam de aceitar vender os navios pelo montante total da dívida (cerca de 61,2 milhões) e mais 3 milhões, sendo que só o primeiro valor reverteria para o Montepio, que atuou neste negócio quase em simultâneo como o credor inicial e o financiador das empresas de Alegre. E este, considerando que, se o negócio corresse mal, teria tudo a perder, mas vincou ”a certeza absoluta” de que o negócio não iria correr mal.

O Montepio mantinha aberta a torneira do crédito, por os navios precisarem de obras urgentes e por haver um conjunto de despesas com a “tripulação residente” e contas inerentes à posse das naves. Por exemplo, só a primeira intervenção no Athena pelo Chantier Naval de Marseille, onde o barco ficou inicialmente arrestado, custou quase 2,4 milhões de euros, tendo o gasto total atingido 48,2 milhões de euros, disponibilizados pelo Montepio. Todos os empréstimos tinham um período de 36 meses em que não eram pagos a amortização do capital e os juros. E, ainda, houve empréstimos poucos meses antes de as empresas de Alegre se tornarem insolventes, entre fevereiro de 2015 e janeiro de 2016. Ora, o negócio arquitetado pelo banco pretendia proceder à remodelação dos navios, para os tornar mais apetecíveis no mercado, tendo o Montepio previsto um retorno financeiro do investimento no período de cerca de 8 anos.

Não cabendo ao tribunal, como disse a juíza, “avaliar a bondade da decisão económica tomada pelo banco”, tal avaliação coube à direção de auditoria e inspeção do Montepio que, em junho de 2015, fez um relatório sobre o ruinoso negócio dos barcos que terá consumido créditos avaliados em 145 milhões concedidos às sociedades de Alegre.  

Quanto às garantias bancárias, o cálculo da avaliadora apontou para a existência de 58 milhões de euros, incluindo os barcos. Porém, tal ativo foi tão desvalorizado que o Princess Daphne e o Arion (rebatizados Lisboa e Porto, respetivamente), vendidos por 3 milhões, foram desmantelados para sucata. O Funchal, imobilizado em janeiro de 2015, foi vendido em leilão por 3,9 milhões, contra os 22 milhões que o Montepio nele enterrara. E, ao invés da propalada transformação num hotel (em Inglaterra) ou do uso para cruzeiros e festas (em Ibiza), não saiu de Lisboa e o comprador Signature Living ficou insolvente em janeiro passado devido à crise no turismo. Só o Azores, rebatizado como Astoria, navega por contrato de aluguer de valor não divulgado.

No fim de 2018, questionado pela SIC sobre o negócio, Tomás Correia (deixou a liderança do banco em dezembro de 2019) recusou falar das relações do Montepio com clientes e disse desconhecer as conclusões da auditoria. Disse não conhecer Alegre a não ser como cliente do banco. Porém, em 2018 e em 2019, o Montepio pôs duas ações executivas em Entroncamento e em Pombal (cerca de 460 mil euros) a duas empresas de Alegre (a Sopro Exemplar, Plásticos e a Alegre, Sociedade Agrícola). E, em 2020, a Cinzento Glaciar (da Cale SGPS, dona das empresas dos navios) foi processada em Silves pelo Montepio, que reclamava o pagamento de 1,33 milhões de euros.

***

A ajuizar pelas notícias que têm vindo a lume sobre o passado remoto e recente, apesar da profissionalização da gestão do banco, da submissão às regras dos reguladores e supervisores financeiros e securitários, o banco navega à vista sem dar mostras eficazes de mudança de rumo.

A peça evocada é emblemática para se perceber que nada ou quase nada acontece aos autores de atos gestionários de prodigalidade na banca. Se o supervisor condena, os tribunais absolvem ou aliviam a carga. Se o fisco ou o MP veem insolvência culposa, os tribunais veem insolvência fortuita. E, os tribunais, que também deviam julgar da bondade económica dum negócio e da boa-fé e capacidade profissional dos intervenientes nele, chutam para as respetivas direções de auditoria e inspeção, que, tornadas juízas em causa própria, dificilmente serão imparciais. E, se entendem entregar a auditoria a empresa especializada, essa, porque paga para o efeito, proverá a que os danos tenham a menor visibilidade possível.

Não faz mal: o povo está involuntariamente disponível para pagar todos os desmandos, tal como paga as taxas e taxinhas por serviços prestados, de que são exemplo despótico as importâncias cobradas pela manutenção de conta à ordem e o levantamento de dinheiro ao balcão. É óbvio que nos sujeitamos, pois, a dependência com que a banca nos anestesiou, leva-nos a obedecer a todas as suas exigências sem reclamar, satisfeitos com a sua gestão de proximidade. Preferem que não vamos lá, mas até nos vêm receber à porta, telefonam, enviam SMS e e-mails e disponibilizam as máquinas, mesmo que às vezes sem dinheiro ou sem papel. Vendem-nos cartões de introduzir ou de encostar e sugerem adesão a aplicações. Que mais queremos?!

2021.06.09 – Louro de Carvalho


Sem comentários:

Enviar um comentário