quarta-feira, 16 de junho de 2021

O farpeio atual parece uma parcela da batalha de Aljubarrota

 

Estamos em ambiente pré-eleitoral e a persistente, variegada e recíproca emissão de farpas, ora bilateral, ora multilateral, faz lembrar o seguinte passo descritivo da batalha de Aljubarrota como Luís de Camões o “observou”:

Já pelo espesso ar os estridentes

Farpões, setas e vários tiros voam;

Debaixo dos pés duros dos ardentes

Cavalos treme a terra, os vales soam;

Espedaçam-se as lanças; e as frequentes

Quedas coas duras armas, tudo atroam;

Recrescem os amigos sobre a pouca

Gente do fero Nuno, que os apouca.

(Luís de Camões, Os Lusíadas, C IV, 31)

Não podemos esquecer que as eleições autárquicas serão as que mais intensa e extensivamente mobilizam o eleitorado, por via da gestão de proximidade. Por isso, alguns dos intervenientes no terreno, direta ou indiretamente implicados no próximo ato eleitoral aproveitam o ensejo para mandar aos adversários e mesmo ao governo central as suas farpas, muitas das quais em jeito de ajuste de contas e outras em jeito de afirmação de poder presente ou futuro.

Não sou aficionado do atual governo, mas também não lhe sou opositor. De resto, os governos que mais me apoquentaram na qualidade de professor e trabalhador na administração pública foram indubitavelmente o XV (liderado por Barroso), o XVII (liderado por Pinto de Sousa) e o XIX (liderado por Pedro Mamede) governos constitucionais.

Assim, dizer que o Governo de Costa é clientelar, pelo não reformou o país, é tão verdadeiro e inocente como o dizer de todos os opositores quando ainda não são governo ou quando o deixaram de ser, tal como o é a acusação do governo em exercício ao governo anterior.

O ex-presidente do Tribunal Constitucional (TC) acusou, em contexto de formação partidária, a Procuradora-Geral da República (PGR) de pretender intervir no processo criminal vendo tal atuação como “própria de um processo inquisitório” e “à revelia da Constituição e da lei”, tal como criticou o “currículo pouco recomendável” do poder dito político pelo afastamento da Procuradoria-Geral da República e Tribunal de Contas “pessoas reconhecidamente competentes e idóneas” (Joana Marques Vidal e Vítor Caldeira – caso explicado pelo PR). E sobre a atual PGR disse:

Assiste-se com complacência ao propósito declarado e formalizado pela Procuradora-Geral da República de pretender intervir ativamente no processo criminal escondendo depois a mão e apagando as pegadas dos seus passos, agindo como um agente encoberto inteiramente à revelia da Constituição e da lei”.

Referia-se à diretiva, contestada pelo sindicato dos magistrados do Ministério Público (MP), que reforça os poderes da hierarquia sobre a autonomia dos procuradores, prevendo que a hierarquia possa intervir nos processos-crime “modificando ou revogando decisões anteriores”.

Talvez esteja a olvidar que o MP goza de autonomia, que não de independência. Pela autonomia, o titular de topo é de nomeação do poder político executivo cimeiro e deve remeter ao Parlamento relatórios sobre a sua prestação. Não podendo a PGR imiscuir-se nos processos, deve enquanto líder de topo levar o MP à exclusiva defesa do interesse público, incitando à promoção dos processos atinentes a figuras menos relevantes e travando as tentações de protagonismo pessoal indevido, agendamento político e opção pela justiça-espetáculo.

Não é raro verem-se membros do Governo, deste como de outros, em rota de colisão uns com os outros e com elementos do seu partido ou com o autarca-mor de Lisboa, com sucessivas desautorizações por parte do Primeiro-Ministro, pelos vistos em nome da luta pela sucessão do atual líder partidário. Talvez devessem acordar em que há um tempo e um espaço para cada matéria, não valendo a pena a sobreposição ou o atropelamento de temas, o que só prejudica a governação e a administração.

Tema polémico é o da comunicação a entidades estrangeiras (via embaixada ou consulado) de dados pessoais de organizadores de manifestações políticas de nacionalidade estrangeira e residentes no país, opositoras ao regime político do país de origem. Fala-se agora com acuidade duma cidadã russa cujos dados pessoais foram transmitidos à respetiva embaixada pela Câmara de Lisboa. Pelos vistos, isso tem sucedido em relação a cidadãos de outros países e noutras ocasiões. Resta saber se o mesmo não tem acontecido com outras câmaras municipais (ninguém fala dos antigos governos civis). Só agora se levantou a questão, porque há eleições autárquicas…

Uns invocam um decreto-lei de 1974, segundo o qual os organizadores devem comunicar à autoridade administrativa respetiva (atualmente, câmara municipal) o objeto da manifestação a realizar com os respetivos detalhes e com os dados de identificação dos promotores. Tal decreto, porém, não obriga a entidade administrativa a comunicar tais dados a nenhuma outra entidade. Todavia, também não vale a pena invocar o RGPD ou a lei da CNPD. Com efeito, a lei determina sanções para quem transmita dados pessoais indevidamente, a menos que esteja em causa o interesse público. É óbvio que é lamentável que uma entidade que deve promover o bem-estar das populações e é obrigada, pela gestão de proximidade, a defender as liberdades dos cidadãos, se envolva em ato isolado ou iterativo de servilismo dos interesses internacionais.

Não obstante, como não creio que o RGPD ditado pela UE seja vaca sagrada da Índia, pergunto-me o que estabelecem os acordos, expressos ou tácitos, inerentes às relações diplomáticas, as quais se estabelecem para evitar ou suavizar os conflitos e estabelecer formas de cooperação. Neste âmbito, recordo o servilismo que presidiu em tempos à relação com Angola e a forma incrível e desajeitada como o MP português reagiu declarando que Angola não tinha capacidade para julgar determinado processo, tal como o servilismo aos EUA com a passagem de prisioneiros de Guantánamo pelos nossos ares. E recordo que era usual os governos acolhedores de exilados políticos estabelecerem que estes não deviam participar em atividades políticas contra o país de origem. Por isso, pedir a demissão de quem quer que seja por estes motivos não será apostura política mais eficaz, antes a estratégia certa para ganhar o lugar.

Outra questão que faz zurzir farpões de algumas oposições tem a ver com as comemorações do cinquentenário da revolução abrilina. Não me comove o facto de o presidente ser um socialista. Os demais governos nomearam para eventos importantes personalidades da sua confiança política. Ora, como o mandato ultrapassa a legislatura, o novo governo pode reformular a composição da comissão executiva, como fez Guterres com a Expo 98.

De resto, constituindo a revolução um conjunto de atos que decorreram de 1972 – com o grupo dos ditos 200 oficiais, passando pela transformação do movimento dos capitães de golpista a revolucionário, culminando com a madrugada de 25 de abril de 1974, ziguezagueando pelo 28 de setembro de 1974 e pelo 11 de março de 1975, eleições para a Constituinte a 25 de abril de 1975 e o 25 de novembro de 1975 – até à promulgação da Constituição a 2 de abril de 1976, primeira ronda de eleições em 1976, sob a égide da Constituição: legislativas, a 25 de abril; presidenciais, a 27 de junho; regionais, a 27 de junho; e autárquicas, a 12 de dezembro. Por isso, querer reduzir as comemorações a um ano significa não ter lido a respetiva Resolução do Conselho de Ministros e revela contradição da parte de quem tem bradado lamentos por não se comemorar o 25 de novembro, que não foi em 1974. Assim, não contestando o tempo do mandato da Estrutura de Missão era bom que houvesse grande participação partidária, sob a égide do Parlamento, bem como uma forte componente militar e judicial. E, no fim, a rigorosa e ampla prestação de contas sobre toda a atividade (planeada, omissa, desenvolvida e não realizada).       

***

Por último, acho graça às farpas ou abraços envenenados de Marcelo a Costa e Governo, sobretudo neste segundo mandato presidencial – igual ao primeiro, só que mudaram os tempos e as realidades! Têm sido vários. Quem não se lembra de o Presidente da República (PR) se ter demarcado do processo de vacinação contra a covid-19, para depois se colar a ele? Ou da demarcação do processo de desconfinamento, para depois dizer bem dele a partir de Roma? Das dúvidas que levantou aos especialistas, que discordaram da sua ideia de alteração da matriz dos critérios (tendo prometido respeitar a opinião dos especialistas) que levaram ao desconfinamento gradual, para depois vir declarar que a decisão do Governo fez a média entre dois fundamentalismos? Da crítica à festa do Sporting, à bolha ou não bolha dos adeptos ingleses no Porto?

Entretanto, nestes dias, a coisa fiou mais fino e PR chegou a puxar pelos galões constitucionais.

Falando da evolução da pandemia e do processo de desconfinamento e colocando-se a hipótese de novo confinamento geral e novos confinamentos locais, sobretudo na região de Lisboa e Vale do Tejo, o PR declarou que, no que depender de si, não haverá novo confinamento.

Entretanto, o Primeiro-Ministro, escutando os especialistas, disse que ninguém – nem mesmo o Presidente da República – pode garantir que não haverá recuo no desconfinamento.

Aos jornalistas que lhe acenaram com a desautorização do Presidente por parte do Primeiro-Ministro (PM), respondeu que o Presidente nunca é desautorizado pelo PM, pois é o Presidente que o nomeia. Ora isso não é novidade, nem o Presidente tem tanta autoridade sobre o Governo como se poderia pensar. Com efeito, nomeia o PM, ouvidos os partidos e tendo em conta os resultados das eleições. Porém, só o exonera no caso de ele pedir a demissão ou o Governo cair por fim de mandato ou por ação do Parlamento. É certo que pode demitir o PM se estiver em causa o regular funcionamento das instituições democráticas, o que é difícil provar. Só Eanes demitiu um PM por iniciativa presidencial, mas ainda a redação da Constituição era a de 1976. Por isso, os PR têm optado pela dissolução do Parlamento se a governação anda em roda livre.

Quanto a confinamento ou desconfinamento, nunca tal depende do PR. Na verdade, o estado de sítio ou de emergência resultam da iniciativa do PR, mas verificada a situação de calamidade declarada pelo Governo. Mais: deve ser ouvido o Governo e obtida a autorização parlamentar. Assim, é caso para perguntar: Um PR, tão ativo em quase todo o tempo de pandemia, se a situação se agravar em termos pandémicos ou de ameaça exterior, deixará de tomar a iniciativa de declarar o estado de emergência ou o estado de sítio se for o caso. É certo e sabido que o PR deve evitar fazer declarações ao virar da esquina, ouvir mais, falar menos e falar mais no fim.             

Novos confinamentos à vista? De facto, o aumento dos internamentos e das mortes por covid-19 não é atualmente o maior dos riscos, mas os especialistas avisam que deixar aumentar os casos tem outras consequências. E, se parece afastado um novo confinamento geral, não será possível fugir ao endurecimento das medidas locais. Manuel Carmo Gomes observa que, em Lisboa, os números são preocupantes desde há um mês, sendo já visível o impacto nos hospitais. E está a alastrar (4,1%) a variante Delta. Por outro lado, a eficácia das vacinas é inferior ao previsto, obrigando a que seja inoculada 90 ou 95% da população para se chegar à imunidade de grupo.

Para Duarte Cordeiro, coordenador do Governo para a covid-19 em Lisboa e Vale do Tejo (LVT), o concelho de Lisboa, com mais de 240 casos de contágio por 100 mil habitantes, está na zona de alerta, que torna iminente um recuo nas medidas de desconfinamento.

O matemático Óscar Felgueiras admitiu que, estando os modelos matemáticos a traduzir uma nova realidade no mapa epidemiológico nacional e olhando sobretudo para a zona da capital, embora o aumento das mortes e dos internamentos não seja o maior dos riscos, contudo há particularidades locais, sendo difícil no curto prazo “conter esta subida sustentada de casos”.

Por isso, Carmo Gomes pergunta “como foi possível olhar para os índices a subir desde há um mês e não perguntar o que havia a fazer para quebrar a tendência”. Com efeito, segundo o epidemiologista, alta testagem e rastreamento rápido “só funcionam até determinado nível e, quando o crescimento é exponencial e ultrapassa os 500 casos/dia, deixa de ser uma solução”.

O matemático Carlos Antunes salienta que, sendo verdade que “o avanço da vacinação está a reduzir a gravidade” dos casos de infeção, “a positividade está a aumentar”. Assim, sustenta que o desconfinamento tem de progredir “à medida que a vacinação avança”, pois, mesmo com a questão dos internamentos e óbitos “suavizada”, há riscos a considerar. E, quando a incidência aumenta, temos de pensar que cresce o absentismo, o número de estudantes em isolamento (há dezenas de milhar de estudantes em isolamento) – com consequências para o rendimento escolar –, além dos custos associados à ‘long covid’. Em relação aos efeitos de longo prazo, ainda está por perceber exatamente quais são. Ora, considerando a situação na Grande Lisboa, onde há vários concelhos com o número de casos a aumentar de forma preocupante, o matemático alerta para o risco de assumir respostas tardias. E propõe “reduzir contactos, restringindo a mobilidade” e “reforçar a proteção individual, o distanciamento e aumentar a testagem”.

Sobre a vacinação, Carlos Antunes chama a atenção para a necessidade de olhar os números com atenção. Quando se fala em população protegida, é preciso distinguir os totais de pessoas vacinadas com o esquema completo ou apenas com a 1.ª dose. Mais de 6,5 milhões de vacinas foram administradas, mas apenas 2,2 milhões de portugueses estão completamente imunizados.

A efetividade vacinal é menor que a percentagem apurada nos testes. Estudos britânicos recentes apontam para uma taxa na ordem dos 60 a 70%, o que tem impacto na imunidade de grupo. Para a atingir será necessário ter mais gente vacinada que o inicialmente previsto. A meta passa a estar em 90 ou 95% da população e não os 70% propalados anteriormente.

Carmo Gomes lembra que os números começam a subir devagarinho e depois disparam. Os relatórios britânicos que fundamentam o travão à reabertura do país apontam à variante Delta uma transmissibilidade muito alta. Por isso, defende que não se pode correr o risco de pensar que a situação está controlada ou que não vai voltar a piorar e espera que o fim das aulas permita desacelerar esta tendência de subida dos contágios.

Perante esta perigosa tendência de subida, seja pelo Sporting, seja pela Champions League, seja pelo mau comportamento dos cidadãos, o PR continua a afastar o confinamento? Tudo não passou dum equívoco, como aduz o paciente e hábil Primeiro-Ministro, dizendo não ter desautorizado o PR? E não será melhor deixar o farpeio, apresentar ideias e projetos, investigar e corrigir os erros?

2021.06.15 – Louro de Carvalho

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