Estamos em ambiente pré-eleitoral e a persistente,
variegada e recíproca emissão de farpas, ora bilateral, ora multilateral, faz
lembrar o seguinte passo descritivo da batalha de Aljubarrota como Luís de
Camões o “observou”:
“Já
pelo espesso ar os estridentes
Farpões,
setas e vários tiros voam;
Debaixo
dos pés duros dos ardentes
Cavalos
treme a terra, os vales soam;
Espedaçam-se
as lanças; e as frequentes
Quedas
coas duras armas, tudo atroam;
Recrescem
os amigos sobre a pouca
Gente
do fero Nuno, que os apouca.”
(Luís de Camões, Os
Lusíadas, C IV, 31)
Não podemos esquecer que as eleições
autárquicas serão as que mais intensa e extensivamente mobilizam o eleitorado,
por via da gestão de proximidade. Por isso, alguns dos intervenientes no
terreno, direta ou indiretamente implicados no próximo ato eleitoral aproveitam
o ensejo para mandar aos adversários e mesmo ao governo central as suas farpas,
muitas das quais em jeito de ajuste de contas e outras em jeito de afirmação de
poder presente ou futuro.
Não sou aficionado do atual governo, mas também
não lhe sou opositor. De resto, os governos que mais me apoquentaram na
qualidade de professor e trabalhador na administração pública foram
indubitavelmente o XV (liderado por Barroso), o XVII (liderado por Pinto de Sousa) e o XIX (liderado por Pedro Mamede) governos constitucionais.
Assim, dizer que o Governo de Costa é
clientelar, pelo não reformou o país, é tão verdadeiro e inocente como o dizer
de todos os opositores quando ainda não são governo ou quando o deixaram de
ser, tal como o é a acusação do governo em exercício ao governo anterior.
O ex-presidente do Tribunal Constitucional (TC) acusou, em
contexto de formação partidária, a Procuradora-Geral
da República (PGR) de pretender intervir no processo
criminal vendo tal atuação como “própria de um processo inquisitório” e “à
revelia da Constituição e da lei”, tal como criticou o “currículo pouco
recomendável” do poder dito político pelo afastamento da Procuradoria-Geral da
República e Tribunal de Contas “pessoas reconhecidamente competentes e idóneas”
(Joana
Marques Vidal e Vítor Caldeira – caso explicado pelo PR). E sobre a atual PGR disse:
“Assiste-se com complacência ao
propósito declarado e formalizado pela Procuradora-Geral da República de
pretender intervir ativamente no processo criminal escondendo depois a mão e
apagando as pegadas dos seus passos, agindo como um agente encoberto
inteiramente à revelia da Constituição e da lei”.
Referia-se à
diretiva, contestada pelo sindicato dos magistrados do Ministério Público (MP), que reforça os poderes da hierarquia sobre a
autonomia dos procuradores, prevendo que a hierarquia possa intervir nos
processos-crime “modificando ou revogando decisões anteriores”.
Talvez
esteja a olvidar que o MP goza de autonomia, que não de independência. Pela
autonomia, o titular de topo é de nomeação do poder político executivo cimeiro
e deve remeter ao Parlamento relatórios sobre a sua prestação. Não podendo a PGR
imiscuir-se nos processos, deve enquanto líder de topo levar o MP à exclusiva
defesa do interesse público, incitando à promoção dos processos atinentes a
figuras menos relevantes e travando as tentações de protagonismo pessoal indevido,
agendamento político e opção pela justiça-espetáculo.
Não é raro
verem-se membros do Governo, deste como de outros, em rota de colisão uns com
os outros e com elementos do seu partido ou com o autarca-mor de Lisboa, com
sucessivas desautorizações por parte do Primeiro-Ministro, pelos vistos em nome
da luta pela sucessão do atual líder partidário. Talvez devessem acordar em que
há um tempo e um espaço para cada matéria, não valendo a pena a sobreposição ou
o atropelamento de temas, o que só prejudica a governação e a administração.
Tema polémico é o da comunicação a entidades
estrangeiras (via embaixada ou consulado) de dados pessoais de
organizadores de manifestações políticas de nacionalidade estrangeira e
residentes no país, opositoras ao regime político do país de origem. Fala-se
agora com acuidade duma cidadã russa cujos dados pessoais foram transmitidos à
respetiva embaixada pela Câmara de Lisboa. Pelos vistos, isso tem sucedido em
relação a cidadãos de outros países e noutras ocasiões. Resta saber se o mesmo
não tem acontecido com outras câmaras municipais (ninguém
fala dos antigos governos civis). Só agora se levantou a questão, porque há eleições autárquicas…
Uns invocam um decreto-lei de 1974, segundo o
qual os organizadores devem comunicar à autoridade administrativa respetiva (atualmente, câmara municipal) o objeto da manifestação a realizar com os respetivos detalhes e com os
dados de identificação dos promotores. Tal decreto, porém, não obriga a
entidade administrativa a comunicar tais dados a nenhuma outra entidade.
Todavia, também não vale a pena invocar o RGPD ou a lei da CNPD. Com efeito, a
lei determina sanções para quem transmita dados pessoais indevidamente, a menos
que esteja em causa o interesse público. É óbvio que é lamentável que uma
entidade que deve promover o bem-estar das populações e é obrigada, pela gestão
de proximidade, a defender as liberdades dos cidadãos, se envolva em ato
isolado ou iterativo de servilismo dos interesses internacionais.
Não obstante, como não creio que o RGPD ditado
pela UE seja vaca sagrada da Índia, pergunto-me o que estabelecem os acordos,
expressos ou tácitos, inerentes às relações diplomáticas, as quais se
estabelecem para evitar ou suavizar os conflitos e estabelecer formas de
cooperação. Neste âmbito, recordo o servilismo que presidiu em tempos à relação
com Angola e a forma incrível e desajeitada como o MP português reagiu
declarando que Angola não tinha capacidade para julgar determinado processo,
tal como o servilismo aos EUA com a passagem de prisioneiros de Guantánamo
pelos nossos ares. E recordo que era usual os governos acolhedores de exilados
políticos estabelecerem que estes não deviam participar em atividades políticas
contra o país de origem. Por isso, pedir a demissão de quem quer que seja por
estes motivos não será apostura política mais eficaz, antes a estratégia certa
para ganhar o lugar.
Outra questão que faz zurzir farpões de algumas
oposições tem a ver com as comemorações do cinquentenário da revolução
abrilina. Não me comove o facto de o presidente ser um socialista. Os demais
governos nomearam para eventos importantes personalidades da sua confiança
política. Ora, como o mandato ultrapassa a legislatura, o novo governo pode
reformular a composição da comissão executiva, como fez Guterres com a Expo 98.
De resto, constituindo a revolução um conjunto
de atos que decorreram de 1972 – com o grupo dos ditos 200 oficiais, passando
pela transformação do movimento dos capitães de golpista a revolucionário,
culminando com a madrugada de 25 de abril de 1974, ziguezagueando pelo 28 de setembro
de 1974 e pelo 11 de março de 1975, eleições para a Constituinte a 25 de abril
de 1975 e o 25 de novembro de 1975 – até à promulgação da Constituição a 2 de
abril de 1976, primeira ronda de eleições em 1976, sob a égide da Constituição:
legislativas, a 25 de abril; presidenciais, a 27 de junho; regionais, a 27 de
junho; e autárquicas, a 12 de dezembro. Por isso, querer reduzir as comemorações
a um ano significa não ter lido a respetiva Resolução do Conselho de Ministros
e revela contradição da parte de quem tem bradado lamentos por não se comemorar
o 25 de novembro, que não foi em 1974. Assim, não contestando o tempo do
mandato da Estrutura de Missão era bom que houvesse grande participação partidária,
sob a égide do Parlamento, bem como uma forte componente militar e judicial. E,
no fim, a rigorosa e ampla prestação de contas sobre toda a atividade (planeada, omissa, desenvolvida e não realizada).
***
Por último, acho graça às farpas ou abraços
envenenados de Marcelo a Costa e Governo, sobretudo neste segundo mandato
presidencial – igual ao primeiro, só que mudaram os tempos e as realidades! Têm
sido vários. Quem não se lembra de o Presidente da República (PR) se ter demarcado
do processo de vacinação contra a covid-19, para depois se colar a ele? Ou da demarcação
do processo de desconfinamento, para depois dizer bem dele a partir de Roma? Das
dúvidas que levantou aos especialistas, que discordaram da sua ideia de alteração
da matriz dos critérios (tendo prometido respeitar a
opinião dos especialistas) que levaram ao desconfinamento gradual, para depois vir declarar que a
decisão do Governo fez a média entre dois fundamentalismos? Da crítica à festa
do Sporting, à bolha ou não bolha dos adeptos ingleses no Porto?
Entretanto, nestes dias, a coisa fiou mais fino
e PR chegou a puxar pelos galões constitucionais.
Falando da evolução da pandemia e do processo
de desconfinamento e colocando-se a hipótese de novo confinamento geral e novos
confinamentos locais, sobretudo na região de Lisboa e Vale do Tejo, o PR
declarou que, no que depender de si, não haverá novo confinamento.
Entretanto, o Primeiro-Ministro, escutando os
especialistas, disse que ninguém – nem mesmo o Presidente da República – pode garantir
que não haverá recuo no desconfinamento.
Aos jornalistas que lhe acenaram com a desautorização
do Presidente por parte do Primeiro-Ministro (PM), respondeu que o Presidente
nunca é desautorizado pelo PM, pois é o Presidente que o nomeia. Ora isso não é
novidade, nem o Presidente tem tanta autoridade sobre o Governo como se poderia
pensar. Com efeito, nomeia o PM, ouvidos os partidos e tendo em conta os resultados
das eleições. Porém, só o exonera no caso de ele pedir a demissão ou o Governo
cair por fim de mandato ou por ação do Parlamento. É certo que pode demitir o PM
se estiver em causa o regular funcionamento das instituições democráticas, o
que é difícil provar. Só Eanes demitiu um PM por iniciativa presidencial, mas
ainda a redação da Constituição era a de 1976. Por isso, os PR têm optado pela dissolução
do Parlamento se a governação anda em roda livre.
Quanto a confinamento ou desconfinamento, nunca
tal depende do PR. Na verdade, o estado de sítio ou de emergência resultam da
iniciativa do PR, mas verificada a situação de calamidade declarada pelo
Governo. Mais: deve ser ouvido o Governo e obtida a autorização parlamentar. Assim,
é caso para perguntar: Um PR, tão ativo em quase todo o tempo de pandemia, se a
situação se agravar em termos pandémicos ou de ameaça exterior, deixará de
tomar a iniciativa de declarar o estado de emergência ou o estado de sítio se
for o caso. É certo e sabido que o PR deve evitar fazer declarações ao virar da
esquina, ouvir mais, falar menos e falar mais no fim.
Novos confinamentos à vista? De facto, o aumento dos internamentos e das mortes por covid-19
não é atualmente o maior dos riscos, mas os especialistas avisam que deixar
aumentar os casos tem outras consequências. E, se parece afastado um novo
confinamento geral, não será possível fugir ao endurecimento das medidas locais.
Manuel Carmo Gomes observa que, em Lisboa, os números são preocupantes desde há
um mês, sendo já visível o impacto nos hospitais. E está a alastrar (4,1%) a variante Delta. Por outro lado, a eficácia das
vacinas é inferior ao previsto, obrigando a que seja inoculada 90 ou 95% da
população para se chegar à imunidade de grupo.
Para Duarte Cordeiro, coordenador do Governo para a covid-19 em Lisboa e
Vale do Tejo (LVT), o concelho de Lisboa, com mais de
240 casos de contágio por 100 mil habitantes, está na zona de alerta, que torna
iminente um recuo nas medidas de desconfinamento.
O matemático Óscar Felgueiras admitiu que, estando os modelos matemáticos a
traduzir uma nova realidade no mapa epidemiológico nacional e olhando sobretudo
para a zona da capital, embora o aumento das mortes e dos internamentos não
seja o maior dos riscos, contudo há particularidades locais, sendo difícil no curto prazo “conter
esta subida sustentada de casos”.
Por isso, Carmo Gomes pergunta “como
foi possível olhar para os índices a subir desde há um mês e não perguntar o
que havia a fazer para quebrar a tendência”. Com efeito, segundo o
epidemiologista, alta testagem e rastreamento rápido “só funcionam até
determinado nível e, quando o crescimento é exponencial e ultrapassa os 500 casos/dia,
deixa de ser uma solução”.
O matemático Carlos Antunes salienta que, sendo verdade que “o avanço da
vacinação está a reduzir a gravidade” dos casos de infeção, “a positividade
está a aumentar”. Assim, sustenta que o desconfinamento tem de progredir “à
medida que a vacinação avança”, pois, mesmo com a questão dos internamentos e
óbitos “suavizada”, há riscos a considerar. E, quando a incidência aumenta,
temos de pensar que cresce o absentismo, o número de estudantes em isolamento (há dezenas
de milhar de estudantes em isolamento) – com
consequências para o rendimento escolar –, além dos custos associados à ‘long covid’. Em relação aos efeitos de
longo prazo, ainda está por perceber exatamente quais são. Ora, considerando a
situação na Grande Lisboa, onde há vários concelhos com o número de casos a
aumentar de forma preocupante, o matemático alerta para o risco de assumir
respostas tardias. E propõe “reduzir
contactos, restringindo a mobilidade” e “reforçar a proteção individual,
o distanciamento e aumentar a testagem”.
Sobre a vacinação, Carlos Antunes chama a atenção para a necessidade de
olhar os números com atenção. Quando se fala em população protegida, é preciso
distinguir os totais de pessoas vacinadas com o esquema completo ou apenas com
a 1.ª dose. Mais de 6,5 milhões de vacinas foram administradas, mas apenas 2,2 milhões de portugueses estão
completamente imunizados.
A efetividade vacinal é menor que a percentagem apurada nos testes. Estudos
britânicos recentes apontam para uma taxa na ordem dos 60 a 70%, o que tem
impacto na imunidade de grupo. Para a atingir será necessário ter mais gente
vacinada que o inicialmente previsto. A
meta passa a estar em 90 ou 95% da população e não os 70% propalados anteriormente.
Carmo Gomes lembra que os números começam a subir devagarinho e depois
disparam. Os relatórios britânicos que fundamentam o travão à reabertura do
país apontam à variante Delta uma transmissibilidade muito alta. Por isso, defende
que não se pode correr o risco de pensar que a situação está controlada ou que
não vai voltar a piorar e espera que o
fim das aulas permita desacelerar esta tendência de subida dos contágios.
Perante
esta perigosa tendência de subida, seja pelo Sporting, seja pela Champions League, seja pelo mau comportamento dos cidadãos, o PR continua a
afastar o confinamento? Tudo não passou dum equívoco, como aduz o paciente e hábil
Primeiro-Ministro, dizendo não ter desautorizado o PR? E não será melhor deixar
o farpeio, apresentar ideias e projetos, investigar e corrigir os erros?
2021.06.15 – Louro de Carvalho
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