sexta-feira, 21 de março de 2014

Vantagens possíveis de um preciosismo léxico-parlamentar

A senhora Presidenta da Assembleia da República não tem dificuldade em utilizar palavras que forma de pé para a mão e com elas espantar muitos dos ouvintes e cria mosquinhas nos olhos dos leitores. É o caso do “inconseguimento” e do “frustracional”.
Quero afirmar que, maior parte das vezes, a atual segunda figura do Estado forma as palavras nos termos usuais do enriquecimento do nosso léxico. O excecional da sua atuação lexical tem a ver com a abundância de mobilização de novos vocábulos na mesma hora discursiva ou na mesma peça escrita, sem esperar que o uso, norma suprema da fixação da língua logre tempo para incorporar tais novéis crias. No discurso oral, quando recorre a uma palavra ainda não dicionarizada, mas que está a “inventar” poderia socorrer-se de alguns dos bordões linguísticos hic et nunc legitimadores da “adveniência” do intruso, como: “digamos”, “passe a expressão”, “poderíamos dizer”, etc. E, no discurso escrito, resolveria o problema aspando, como no exemplo que dei da “adveniência”, que será diferente de “advento”. Advento (nome proveniente do latim adventus-us, que por sua vez provém de advenioad+venio – no particípio passado) significará chegada, vinda, aproximação (consumada ou que vai ser considerada como tal). Ao passo que “adveniência” a derivei do particípio presente do mesmo verbo e que desejo que signifique ação do que está em ativo processo de chegada, que pode ou não ser consumada. Poderíamos utilizar a palavra “adventício” (já existente no latim, adventicius), mas esta palavra indica a qualidade daquilo que é estranho, emprestado, que não necessariamente o processo de aproximação ou chegada.
Muitos formam palavras que enditam o léxico, nem sempre da melhor maneira e, por vezes, atribuindo ao neologismo uma semântica aberrante. No primeiro caso, temos, meramente a título de exemplo, palavras como oftalmologista (ofthalmós+lógos) e ginecologista (gynê+lógos). O oftalmologista seria o indivíduo que percebe de olhos (castanhos, azuis, pretos, verdes…). Lá temos, nessa especialidade, Camões e Almeida Garrett, para não falarmos de outros; ou os fisiólogos/biólogos que percebem as questões atinentes à natureza (celular e citológica dos diversos elementos do olho), composição, propriedades, funções, etc. O médico que debela, trata as doenças dos olhos e até é capaz de as curar seria com mais propriedade denominado “oftalmiatra” (ofthalmós+ iatér). Por outro lado, o indivíduo que percebe de mulheres poderá ser um qualquer Don Juan ou o fisiólogo/biólogo que seja perito nas propriedades do corpo da mulher. Já o médico que debela, trata as doenças das senhoras e até é capaz de as curar seria com mais propriedade denominado “giniatra” (gynê+iatér). Veja-se como temos a boa diferença entre o psicólogo e o psiquiatra, o pedagogo (o condutor da criança: pais-paidós, criança+ago, conduzo, guio) e o pediatra (pais-paidós, criança+iatér, médico). Referindo-nos ao segundo caso, o da semântica, só apresento o caso da “pedofilia” (pais-paidós, criança + filía-as, amizade, carinho), que deveria significar ternura, carinho, amizade, amor pela criança. E toda a gente sabe qual o significado do crime abjeto que lhe atribuíram.
Regra geral, Sua Excelência a Dra Assunção Esteves socorre-se da derivação sobre palavras já derivadas. Tal é o caso do “inconseguimento” (seguir-seguimento-conseguir-conseguimento-inconseguimento). Começamos pela palavra base “seguir”; com o sufixo -mento, ganhámos “seguimento”; com o prefixo com- (cum, com ou com – que significaria ação conjunta de várias pessoas ou de vários esforços ou meios), fizemos “conseguir”; a partir desta, com o sufixo -mento, obtivemos “conseguimento”; e com o prefixo in- (in, im ou i – que introduz a ideia de negação), obtivemos “inconseguir” e “inconseguimento”.
Quanto ao adjetivo “frustracional”, temos de buscar a sua origem no advérbio latino frustra (que alguns relacionam com fraus-fraudis, engano, logro), que significa em vão, inutilmente, enganosamente. Da sua família, temos frustrabilis-e (que é facilmente enganado), frustratio-onis (deceção, esperança vã, ação de iludir, pretexto, escapatória), frustratorius-a-um (vão, enganador), frustratus-a-um (enganado, iludido), frustratus-us (ação de enganar), frustro-avi-atum (enganar), frustror-atus sum (enganar, frustrar, tornar vão ou sem efeito). Em português temos frustrar, frustrado, frustrador, frustração, frustratório – com significados análogos aos dos correspondentes latinos – e frusto (do italiano frusto), medalha ou moeda gasta pelo tempo, e frustrâneo, frustrado ou inútil (diz-se da planta cujos flósculos não produzem sementes). O “frustracional” do presidencial discurso é que terá um significado específico que a enunciadora não foi capaz de transmitir e a sua utilização, que poderia ser benéfica de futuro, constituiu um ruído comunicacional que redundou em ridicularização. E não havia necessidade! De resto, também eu não me cingi ao simples “comunicativo”, porque, se ruído existiu, não posso falar em ato ou processo tipicamente “comunicativo”. É ou utilizável também educacional, a par de educado e educativo? Matéria educacional pode não ser educativa e pode não tornar as pessoas educadas nem educantes ou educadoras. Por isso, tenho pena de que a Senhora da República vá perdendo ocasiões de republicanamente contribuir para o enriquecimento lexical do Português.
Já quando ela era presidente da 1.ª Comissão, lhe ouvi falar em “completude” e, como de discurso oral se tratava, fiquei a pensar se não quereria dizer “complexidade” (do verbo complector, abranger) ou “plenitude” (do verbo pleo, encher). Mas não: na ocasião, percebi que pelo contexto, queria dizer coisa diferente.
Note-se que nós temos formações tão complicadas no processo de lexicalização como as da senhora Presidenta. Vejam-se os casos de “infelicidade”, “desinfeliz” (des- habitualmente significa negação, mas aqui, junto a in- também negativista, temos o reforço da negação), “desconstrução”, “inconstitucional”, “inconstitucionalidade” (para não falar do brejeiro “inconstitucionalissimamente”) e microrradiografia, entre outros.
Deixei para este momento o significado do sufixo -mento, que já existia no latim em palavras (em que incorporou a noção de ação) como – “argumentum” (argumento, do verbo arguo), “augmentum” (aumento, do verbo augeo), “documentum” (documento, do verbo doceo), “impedimentum” (impedimento, do verbo impedio), “incrementum” (incremento, do verbo incresco), “excrementum” (excremento, do verbo excresco), “monumentum” ou “monimentum (monumento, do verbo moneo), “ornamentum” (ornamento, equipamento - do verbo orno), “pigmentum” (pigmento, do verbo pingo), “sedimentum” (sedimento, abaixamento - do verbo sedeo) e “testamentum” (testamento, dos verbos testo e testor) – que passaram para o português com um cunho de especialização e com significado diferente do que a mera ideia de ação conseguiria. Assim, “argumento”, justificação apodítica com uma intencionalidade de irrevogabilidade, difere da mera arguição (ação de arguir, contestar) e de argúcia ou subtileza; documento (informação, em princípio indelével, para ser permanentemente tida em conta e servir de prova e que origina as derivadas “documentar” e “documentação”) diverge da docência (ação de ensinar); excremento (coisa que cresce e sai sem poder retornar) é bem diferente de excrescência (coisa que cresce, está a mais e pode ser eliminada); monumento (objeto grande ou pequeno que testemunha para futuro um evento, uma necessidade, uma mentalidade) é diferente de monição (aviso, explicação pontual); sedimento diverge de sedição (seditio - motim, sublevação temporária); testamento é diferente de testemunho, atestação (testimonium, testatio, testificatio – declaração em ato per se de curta duração, momentâneo). O latim possuía as palavras impedimentum e impeditivo, com diferença de significado análogo ao que vimos referenciando.
A esta informação há que acrescentar o que referem os estudiosos, como se explica a seguir.
O sufixo -mento, de origem latina, mais propriamente do latim vulgar, coexistente com o latim culto, é usado na formação de nomes derivados de verbos com o sentido de ação (que embora sendo in fieri, tem em vista o in facto esse) ou resultado supostamente irreversível da ação. É também utilizado na formação de nome cuja noção de origem verbal se perdeu. É o caso, por exemplo, de: acompanhar, acompanhamento; bater, batimento; calcetar, calcetamento; casar, casamento; constranger, constrangimento; coroar, coroamento (no Português do Brasil; os portugueses têm a ideia de que a coroação não implica a permanência da coroa); correr, corrimento; crescer, crescimento; desenvolver, desenvolvimento; empobrecer/enriquecer, empobrecimento/enriquecimento; ensinar, ensinamento; esmagar, esmagamento; falecer, falecimento; impedir, impedimento; mover, movimento; passar, passamento; pensar, pensamento; polir, polimento; recolher, recolhimento.
É também utilizado na formação de nome cuja noção de origem verbal se perdeu. Exemplos que podemos apontar são: tormento (do verbo torqueo, torço), fragmento (do verbo frango, quebro, parto), ferramenta (coletivo; antigamente era plural – do verbo fero, levo, trago, uso), fermento (do verbo ferveo, fervo, levedo) e frumento (no latim, frumentum, do verbo fruor, gozo, desfruto, saboreio – da família de fruto, fruir), complemento (do verbo compleo, encho, preencho, completo) e suplemento e suprimento (do verbo suppleo, supro, completo, preencho).
É de notar que o sufixo –mento é aparentado com o termo latino “mentum”, que significa mento, queixo, barba, cimalha, goteira – que são a proa, a cambota, o suporte do mecanismo dos movimentos do rosto dos mamíferos, que lhes confere estabilidade/personalidade, ou o anteparo da cobertura do edifício e seu instrumento de drenagem de águas pluviais.
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Seja-me agora permitido um arrazoado parentético em torno da palavra “presidenta”. Como assegura Lúcia Vaz Pedro, a utilização da palavra ‘presidenta’ não é novidade trazida por Dilma Roussef. Alguns dicionários editados em 1944 (Augusto Moreno), em 1953 (Cândido de Figueiredo) e em 1989 (prático ilustrado da Lello) registam essa palavra, embora de cunho marcadamente popular e, algumas vezes, usada de forma irónica ou pouco abonatória.  
A par de "presidenta", surgem também no feminino outros nomes como “elefanta” (de elefante), “estudante” (popular, de estudante), “infanta” (de infante), “giganta” (de gigante), “governanta” (de governante), “hóspeda” (de hóspede), “mestra” (de mestre – embora as senhoras que acederam ao mestrado queiram ser mestres, como as magistradas judiciais querem ser juízes. Poderiam querer ser advogados, arquitetos, diretores, doutores, engenheiros, médicos, pais, professores, etc.), “monja” (de monge) e “parenta” (de parente).
Há, no entanto, a tendência generalizada de manter no feminino a forma igual à do masculino, tornando comuns-de-dois os nomes e uniformes os adjetivos provenientes do particípio presente latino, que não variava em género, a não ser no neutro para o nominativo, vocativo e acusativo, em que a foram é igual para os três casos. Vejam-se os exemplos: “amans”, “amantis” (o/a amante, que ama); “audiens”, “audientis” (o/a ouvinte, que ouve); “docens”, “docentes” (o/a docente, o que ensina); “dolens”, “dolentis” (o/a dolente, o/a doente, o que sofre); “legens”, “legentis” (o/a lente, que lê); “tenens”, “tenentis” (o/a tenente, que segura, que substitui para manter o lugar).
Assim, embora a sua prática não seja consensual, é tão legítimo hoje o “uso” formal de “o presidente”/ “a presidenta”, como o de “o presidente”/ “a presidente”.
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Finalmente, voltando ao discurso parlamento-presidencial (Olhai que rico composto morfológico!), só me penaliza que Sua Excelência não tenha explicado ao povo que a revolução abrilina nos permitiu a “consecução” das conquistas políticas, sociais, culturais e económicas, que julgávamos terem entrado na linha do “conseguimento”. Entretanto, alegadamente por causa da crise e por imposição da troika, despudoradamente aceite e assumida pelo governo, a querer governar além dela, entrámos na tenebrosa fase de “desconstrução” daquelas conquistas alcançadas com tanto labor até chegarmos ao momento da sua “inconsecução” que irá, se nada se fizer contra isso, cristalizar no “inconseguimento”. Coisa semelhante se diga contra a política europeia, luso-alemã da irónica “solidariedade” para com os povos e os eurocidadãos (nunca “eurocidadões”: atenção à etimologia e sobretudo ao uso legitimante!).

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