quarta-feira, 19 de março de 2014

Evolução de séculos – responsabilidades de hoje

Vem este apontamento a propósito do discurso proferido por Francisco aos três bispos da Conferência Episcopal de Timor Leste em visita “ad limina apostolorum”, no dia 17 de março.
Como é do conhecimento geral, os bispos de cada província eclesiástica (em Portugal temos as de Braga, Lisboa e Évora) ou de uma conferência episcopal devem elaborar relatório quinquenal sobre o estado pastoral de cada uma das suas dioceses, enviá-lo à Santa Sé e, em data aprazada, fazer a visita protocolar a Sua Santidade, a quem o presidente do grupo dirige uma palavra de saudação ao Pontífice e de síntese do estado das dioceses que integram o grupo respetivo (“pôr à ‘sua apreciação’ o vosso serviço à causa do Evangelho” – cf. Gl 1, 18; 2, 2 – vd discurso do papa). Se uma diocese não está integrada numa província eclesiástica, depende diretamente da Santa Sé e será tratada como tal ou se junta a um grupo maior afim ou mais próximo. Entretanto, o papa dirige aos presentes palavras de agradecimento da saudação, de resposta sobre o status das dioceses implicadas e de incentivo a futura ação estribada na doutrina e no contexto pastoral.
A designação “ad limina apostolorum” ou, abreviadamente, “ad limina”, resulta do facto de ela ter como destinatário o papa, que reside junto à Basílica de S. Pedro, onde supostamente se encontra o túmulo do apóstolo do mesmo nome, e na cidade onde também fora martirizado o apóstolo Paulo, a quem foi dedicada uma basílica “extra muros” (fora da antiga muralha). Por outro lado, como o fazem inúmeros peregrinos, os bispos em visita a Sua Santidade costumam ajoelhar junto ao túmulo do apóstolo e satisfazer algumas das necessidades e curiosidades inerentes à sua deslocação à Cidade Eterna.
Quanto a Timor Leste, o papa salienta “o crescimento admirável” das comunidades e “o seu anseio” de fidelidade ao Evangelho, ao mesmo tempo que evoca “a sementeira da Boa Nova de Jesus”, que, iniciada naquela terra “há quase quinhentos anos, cresceu e frutificou num povo que, desde a grande provação do último quartel do século XX, decidida e corajosamente se confessa católico”. Há aqui a verificação de uma fidelidade à doutrina e à própria História e uma alusão latente à faina apostólica ocidental.
Por outro lado, Timor Leste evoluiu também ao nível das estruturas eclesiais. De uma só diocese, a de Dili, depois da independência, passou a contar também com a diocese de Baucau e, nos princípios de 2010, foi criada ainda mais uma diocese, a de Maliana, o que permitiu que, nos fins de 2011, fosse instituída a Conferência Episcopal Timorense (formada pelo mínimo de três bispos). Esta estruturação comporta, na expressão de Francisco “sinais positivos da obra que o Senhor iniciou entre vós e quer levar a bom termo (cf. Flp 1, 6)”. Mas o Bispo de Roma, que tem o encargo de confirmar os irmãos na fé (cf Lc, 22,32), não deixa de registar a caminhada evolutiva encetada com o momento da independência da Pátria Timorense: “Ao longo destes anos que vos separam da última visita ad limina – realizada em outubro de 2002, ou seja, poucos meses depois do suspirado e venturoso nascimento da vossa Pátria –, não faltaram dolorosas surpresas de ajustamento nacional, com a Igreja a recordar as bases necessárias duma sociedade que pretenda ser digna do homem e do seu destino transcendente”. Para tal verificação apoia-se em documentação, que revela as caraterísticas do povo timorense e dos seus líderes, nomeadamente os pastores: “Pelos vossos relatórios quinquenais e demais notícias, pude dar-me conta do espírito fraterno que anima o povo timorense e os seus líderes na construção duma nação livre, solidária e justa para todos”.
Porém, a comunidade não pode parar, novas responsabilidades a espreitam, pois, os sinais que “exprimem a radicação da Igreja em Timor” exigem de todos “um testemunho alto de vida cristã” e “um redobrado esforço de evangelização para levarem a Boa Nova a todos os estratos da sociedade, transformando-a a partir de dentro (cf. Exort. ap. Evangelii nuntiandi, 18)”. E os bispos e os sacerdotes devem continuar a “desempenhar a função de consciência crítica da nação, mantendo para isso a devida independência do poder político numa colaboração equidistante que lhe deixe a responsabilidade de cuidar e promover o bem comum da sociedade”. É a crença na autonomia das realidades terrestres: dar César o que é de César.
O papa recorda que a única coisa que a Igreja exige à sociedade é “a liberdade de anunciar o Evangelho de modo integral, mesmo quando vai contra corrente defendendo valores que ela recebeu e a que deve permanecer fiel” – tarefa que é responsabilidade de todos os cristãos: dar a Deus o que é de Deus. Por outro lado, a ação apostólica deve ir ao encontro de todos e a todos dar testemunho da ternura e da misericórdia (perspetiva recorrente nos discursos deste papa), mas a partir das culturas existentes, que é preciso evangelizar, apesar da limitação das linguagens. Cita, a propósito, as palavras do Beato João Paulo II na Carta de fundação do Conselho Pontifício da Cultura, a 20 de maio de 1982: “uma fé que não se torna cultura é uma fé não plenamente acolhida, não inteiramente pensada e não fielmente vivida”. E os obreiros de evangelização, na linha da “revolução da ternura”, de que não se pode ter medo, devem ter a capacidade “de aquecer o coração das pessoas, de caminhar na noite com elas, de dialogar com as suas ilusões e desilusões, de recompor as suas desintegrações”.
Finalmente, ficamos a conhecer mais um título de invocação à Mãe de Jesus. Em Timor, predomina a designação de “Virgem de Aitara”, sob cuja proteção Francisco coloca a tríplice missão que reclama para os bispos de Timor Leste: a sua contribuição como consciência crítica da nação (requisito em que insiste); a promoção de uma Igreja que sai em missão (do centro às periferias); e a expressão da Boa Nova nas línguas locais (uma vertente da incarnação do Verbo de Deus). E recorre à imagem da peregrinação do povo a santuários marianos sob a guia dos bispos (que não domínio ou comando), para definir a tríplice posição que o bispo pode ocupar no cortejo peregrinante (podem até distribuir os lugares estratégicos pelos três bispos!): à frente, para indicar o caminho; no meio, para manter unido o povo e neutralizar debandadas; ou atrás, para evitar que alguém se atrase ou desgarre – mas na convicção de que o próprio rebanho é dotado do sentido da fé (sensus fidei), ou seja, do olfato para encontrar novas vias e rotas.

Depois de ler o discurso feito perante três personalidades e sobretudo no momento em que termino este apontamento epidermicamente circunstancial, pergunto-me se aquela familiar lição, prestada a um grupo pequeno com destino a um povo recentemente guindado à independência, embora dotado de uma fé antiga, mas remoçada pelo tempo e pela vitalidade de homens e mulheres imersos naquela cultura “asiolusa”, deverá ficar circunscrita àqueles mesmos destinatários. Não se tornará útil uma sua leitura pelas Igrejas entontecidas do pó constantiniano, cristalizadas num consumismo descartante, amigadas com o capitalismo sem rosto aniquilador da evangélica simplicidade das pombas e da prudência das serpentes?

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