Vem este
apontamento a propósito do discurso proferido por Francisco aos três bispos da
Conferência Episcopal de Timor Leste em visita “ad limina apostolorum”, no dia
17 de março.
Como é do
conhecimento geral, os bispos de cada província eclesiástica (em Portugal temos
as de Braga, Lisboa e Évora) ou de uma conferência episcopal devem elaborar
relatório quinquenal sobre o estado pastoral de cada uma das suas dioceses, enviá-lo
à Santa Sé e, em data aprazada, fazer a visita protocolar a Sua Santidade, a
quem o presidente do grupo dirige uma palavra de saudação ao Pontífice e de
síntese do estado das dioceses que integram o grupo respetivo (“pôr à ‘sua apreciação’ o vosso serviço à causa do Evangelho”
– cf. Gl 1, 18; 2, 2 – vd discurso do papa). Se uma diocese
não está integrada numa província eclesiástica, depende diretamente da Santa Sé
e será tratada como tal ou se junta a um grupo maior afim ou mais próximo. Entretanto,
o papa dirige aos presentes palavras de agradecimento da saudação, de resposta
sobre o status das dioceses
implicadas e de incentivo a futura ação estribada na doutrina e no contexto
pastoral.
A designação
“ad limina apostolorum” ou, abreviadamente, “ad limina”, resulta do facto de ela
ter como destinatário o papa, que reside junto à Basílica de S. Pedro, onde
supostamente se encontra o túmulo do apóstolo do mesmo nome, e na cidade onde
também fora martirizado o apóstolo Paulo, a quem foi dedicada uma basílica
“extra muros” (fora da antiga muralha). Por outro lado, como o fazem inúmeros
peregrinos, os bispos em visita a Sua Santidade costumam ajoelhar junto ao
túmulo do apóstolo e satisfazer algumas das necessidades e curiosidades
inerentes à sua deslocação à Cidade Eterna.
Quanto a
Timor Leste, o papa salienta “o crescimento admirável” das comunidades e “o seu
anseio” de fidelidade ao Evangelho, ao mesmo tempo que evoca “a sementeira da Boa Nova de Jesus”, que, iniciada naquela
terra “há quase quinhentos anos, cresceu e frutificou num povo que, desde a
grande provação do último quartel do século XX, decidida e corajosamente se
confessa católico”. Há aqui a verificação de uma fidelidade à doutrina e à
própria História e uma alusão latente à faina apostólica ocidental.
Por
outro lado, Timor Leste evoluiu também ao nível das estruturas eclesiais. De
uma só diocese, a de Dili, depois da independência, passou a contar também com
a diocese de Baucau e, nos princípios de 2010, foi criada ainda mais uma
diocese, a de Maliana, o que permitiu que, nos fins de 2011, fosse instituída a
Conferência Episcopal Timorense (formada
pelo mínimo de três bispos). Esta estruturação comporta, na expressão de
Francisco “sinais positivos da obra que o Senhor iniciou entre vós e quer levar
a bom termo (cf. Flp 1, 6)”. Mas o Bispo de Roma, que tem o encargo
de confirmar os irmãos na fé (cf Lc, 22,32), não deixa de registar a caminhada
evolutiva encetada com o momento da independência da Pátria Timorense: “Ao
longo destes anos que vos separam da última visita ad
limina – realizada em outubro de 2002,
ou seja, poucos meses depois do suspirado e venturoso nascimento da vossa
Pátria –, não faltaram dolorosas surpresas de ajustamento nacional, com a Igreja
a recordar as bases necessárias duma sociedade que pretenda ser digna do homem
e do seu destino transcendente”. Para tal verificação apoia-se em documentação,
que revela as caraterísticas do povo timorense e dos seus líderes, nomeadamente
os pastores: “Pelos vossos relatórios quinquenais e demais notícias, pude
dar-me conta do espírito fraterno
que anima o povo timorense e os seus líderes na construção duma nação livre, solidária e justa para todos”.
Porém,
a comunidade não pode parar, novas responsabilidades a espreitam, pois, os
sinais que “exprimem a radicação da Igreja em Timor” exigem de todos “um
testemunho alto de vida cristã” e “um redobrado esforço de evangelização para
levarem a Boa Nova a todos os estratos da sociedade, transformando-a a partir
de dentro (cf. Exort. ap. Evangelii nuntiandi,
18)”. E os bispos e os sacerdotes devem continuar a “desempenhar a função de
consciência crítica da nação, mantendo para isso a devida independência do
poder político numa colaboração equidistante que lhe deixe a responsabilidade
de cuidar e promover o bem comum da sociedade”. É a crença na autonomia das
realidades terrestres: dar César o que é de César.
O
papa recorda que a única coisa que a Igreja exige à sociedade é “a liberdade de
anunciar o Evangelho de modo integral, mesmo quando vai contra corrente
defendendo valores que ela recebeu e a que deve permanecer fiel” – tarefa que é
responsabilidade de todos os cristãos: dar a Deus o que é de Deus. Por outro
lado, a ação apostólica deve ir ao encontro de todos e a todos dar testemunho
da ternura e da misericórdia (perspetiva recorrente nos discursos deste papa),
mas a partir das culturas existentes, que é preciso evangelizar, apesar da
limitação das linguagens. Cita, a propósito, as palavras do Beato João Paulo II
na Carta de fundação do Conselho Pontifício da Cultura,
a 20 de maio de 1982: “uma fé que não se torna cultura é uma fé não plenamente
acolhida, não inteiramente pensada e não fielmente vivida”. E os obreiros de evangelização,
na linha da “revolução da ternura”, de que não se pode ter medo, devem ter a capacidade
“de aquecer o coração das pessoas, de caminhar na noite com elas, de dialogar
com as suas ilusões e desilusões, de recompor as suas desintegrações”.
Finalmente,
ficamos a conhecer mais um título de invocação à Mãe de Jesus. Em Timor, predomina
a designação de “Virgem de Aitara”,
sob cuja proteção Francisco coloca a tríplice missão que reclama para os bispos
de Timor Leste: a sua contribuição como consciência crítica da nação (requisito
em que insiste); a promoção de uma Igreja que sai em missão (do centro às periferias);
e a expressão da Boa Nova nas línguas
locais (uma vertente da incarnação do Verbo de Deus). E recorre à imagem da
peregrinação do povo a santuários marianos sob a guia dos bispos (que não
domínio ou comando), para definir a tríplice posição que o bispo pode ocupar no
cortejo peregrinante (podem até distribuir os lugares estratégicos pelos três
bispos!): à frente, para indicar o caminho; no meio, para manter unido o povo e
neutralizar debandadas; ou atrás, para evitar que alguém se atrase ou desgarre –
mas na convicção de que o próprio rebanho é dotado do sentido da fé (sensus fidei), ou seja, do olfato para
encontrar novas vias e rotas.
Depois
de ler o discurso feito perante três personalidades e sobretudo no momento em
que termino este apontamento epidermicamente circunstancial, pergunto-me se aquela
familiar lição, prestada a um grupo pequeno com destino a um povo recentemente
guindado à independência, embora dotado de uma fé antiga, mas remoçada pelo
tempo e pela vitalidade de homens e mulheres imersos naquela cultura “asiolusa”,
deverá ficar circunscrita àqueles mesmos destinatários. Não se tornará útil uma
sua leitura pelas Igrejas entontecidas do pó constantiniano, cristalizadas num
consumismo descartante, amigadas com o capitalismo sem rosto aniquilador da
evangélica simplicidade das pombas e da prudência das serpentes?
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