Passa hoje o
40.º aniversário do Levantamento das
Caldas da Rainha, também
referido como Intentona
das Caldas, Revolta
das Caldas ou Golpe das Caldas, que
visava o derrube do regime português, cujo Chefe de Estado era o almirante
Américo Tomás e o chefe do governo era o professor Marcelo Caetano – o Estado
novo com os últimos esgares do estertor da moribunda agonia.
Trata-se de um
evento prenunciador de novas e irreversíveis movimentações, havendo vários autores que o definem como o evento
aglutinador do oficialato em torno do MFA (Movimento das Forças Armadas), que
desembocou na Revolução dos Cravos,
em 25 de abril de 1974, e subsequentes ações revolucionárias que levaram à instituição do
regime constitucional vigente a partir de 25 de abril de 1976 e na plenitude da
democracia formal com a lei constitucional n.º 1/82 de 30 de setembro, pela qual
se procedeu à 1.ª revisão ao Constituição da República Portuguesa.
Sendo um marco
importante de referência histórica, mas de inêxito inglório, folheei a imprensa
hodierna e reparei que, além da evocação episódica desta efeméride, se abrem as
fauces dos políticos da ordem a anunciar as comemorações da revolução abrilina
e os quarenta anos da criação do PSD. Ora, como ainda não estamos em abril e o
PSD não passa de um dos partidos a que a revolução deu abrigo (porque dois já
vinham dantes e os outros tiveram sol de pouca dura), lembrei-me de perguntar
por acontecimentos que de algum modo tenham ilustrado este dia. De entre os
muitos que se me ofereceram à evocação, entendi dever fixar-me em três: o
nascimento de Camilo Castelo Branco, em 1825; falecimento de Natália Correia,
em 1993; e o referendo na Crimeia, hoje.
Começando por
Camilo, há que acentuar o facto de ter sido o primeiro escritor português a
viver exclusivamente dos seus
escritos literários, o que, por necessidade, o levou à produção de uma enorme
quantidade de obras, de que sobressai a novela, com um discurso fluente,
estribado essencialmente nas classes gramaticais do nome e do verbo e sem
grande aparato descritivo. Porém, apesar de ter de escrever para o grande e
caprichoso público da segunda metade o século XIX, sujeitando-se assim aos
ditames da moda, conseguiu manter uma escrita muito original, com um português
genuinamente castiço, mergulhado na autenticidade das raízes lusas e
inteligível para o comum dos leitores e das leitoras da época.
Não o sendo
totalmente, a sua obra é predominantemente romântica. É certo que que o
escritor gostaria de se situar acima das escolas literárias, como Miguel Torga,
no século seguinte. No entanto, embora se tivesse deixado impressionar pela misteriosa
e macabra literatura de Ann Radcliffe e as vicissitudes de sua vida altamente
atribulada lhe condicionassem o teor e o dinamismo da escrita, os
modelos clássicos tiveram sempre peso visível na sua produção literária. Foi
imensamente influenciado pelo grande Almeida Garrett, o romântico por
excelência, mas educado na pureza do classicismo de cariz eclesiástico, condimentado pelas
xácaras, histórias, fantasias e romancinhos hauridos da tradição popular.
Neste cruzamento de influências – a vida atribulada, a formação da roupagem
clássica, a fidelidade à linguagem, o conhecimento dos costumes populares, o
cheiro do torrão, o entranhado hábito da maledicência, o furor da polémica e a
abertura à novidade – se vai desenvolver uma produção estético-literária de
inquestionável qualidade, que o sistema educativo, ao nível do ensino não
superior, teimou em obnubilar, nas últimas décadas. Salve-se a generosidade
empresarialista da RTP e da Globo brasileira, que têm dado ao escritor algum
relevo. A crítica literária tem assentado que, se por um lado
Camilo, nas tramas novelísticas, com as suas peripécias mais ou menos
rocambolescas, está claramente enquadrado na escola romântica, por outro lado,
nas explanações psicológicas, no modo como analisa sentimentos, justifica ou explica
os acontecimentos e critica a educação vigente, salta inequivocamente as malhas
do romantismo.
Jacinto do
Prado Coelho, considerando-o
“ideologicamente flutuante” e “um narrador de histórias românticas ou
romanescas com lances empolgantes e situações humanas comoventes”, assegura que
o seu romantismo é “em boa parte dominado, contido, classicizado”, pela
observância quase permanente da justa medida, e que figura ao “lado do seu alto
idealismo romântico a viril contenção da prosa, um bom senso ligado às
tradições e a certo cânones clássicos, um realismo sui
generis, de vocação pessoal que parece na razão direta da autenticidade do
seu romantismo”.
Na resposta
àqueles que, como Eça de Queirós, entendiam que o escritor, sentindo-se a perder terreno para os novos
cultores da língua, seus potenciais émulos, enveredara pelo realismo em novelas
como Eusébio Macário, A Corja e A Brasileira de Prazins, Camilo declara, no prefácio de Eusébio
Macário, que não tencionou pôr a ridículo a escola realista e
justifica-se: “[…] tenho sido realista sem o saber. Nada me impede de
continuar”. E mais adiante: «Eu não conhecia Zola; foi uma pessoa da minha
família que me fez compreender a escola com duas palavras: ‘É a tua velha
escola com uma adjetivação de casta estrangeira, e uma profusão de ciência (…).
Além disso, tens de pôr a fisiologia onde os românticos punham a
sentimentalidade: derivar a moral das bossas, e subordinar à fatalidade o que,
pelos velhos processos, se imputava à educação e à responsabilidade’ compreendi
e achei eu, há vinte e cinco anos, já assim pensava, quando Balzac tinha
em mim o mais inábil dos discípulos.”.
No que diz
respeito a Natália, impõe-se apresentá-la como “aquela senhora” de vastíssima cultura, devida essencialmente ao seu convívio com
intelectuais e à sua incansável atividade de leitora, detendo uma das melhores
bibliotecas de Lisboa. Destaca-se como ativista social na luta antifascista, obreira do fervor nas instituições
democráticas e escritora prolífera em diversas vertentes.
Jornalista, ensaísta, cronista, teatróloga,
romancista é, no entanto, na poesia que se revela uma personalidade
inquestionavelmente singular, projetando nela um erotismo contido, uma ânsia e
arroubo irreverentemente libertários, um desafio deliberadamente iconoclástico,
um apurado sentido do fantástico – tudo isto eivado de alguns ecos românticos e
acentuadas marcas surrealistas.
A terminar esta minha reflexão, como deixei implícito
acima, com o ato referendário na Crimeia, oferece-se-me dizer, para lá de todo
o posicionamento do jornalismo de investigação, da diplomacia das chancelarias
e da justiça internacional, que gostaria que surgissem boas peças literárias
que, para lá da sua função lúdico-estética, satisfizessem a função crítica e
interventiva de escalpelização do jogo de interesses, da contradição dos
sistemas políticos, da hipocrisia dos Estados e das ambições inconfessadas dos
blocos das tidas como grandes potências internacionais ao serviço do poder do
dinheiro, que não já das ideologias – a emergência das economias da afirmação
das novas hegemonias!
De um lado, o presidente
russo afiançou hoje à chanceler alemã que o seu país vai respeitar a escolha do
povo da Crimeia e manifestou preocupação com as tensões nas regiões da Ucrânia
onde se fala russo; do outro, uma horda de manifestantes a favor da Rússia
entraram em edifícios dos serviços especiais em Donetsk, cidade russófona do
este da Ucrânia, no decorrer de uma iniciativa a favor do domínio russo (Mas o
que está em jogo não é um referendo?). Campeia ou não a fórmula da hipocrisia e
o jogo inconfessado dos interesses?!
Ora, já que a política se posiciona prevalentemente
no mundo da hipocrisia e do jogo dos interesses, a nobre literatura, também
agora neorrealista, mergulhada em raízes de genuinidade como a camiliana ou a
cáustica e iconoclasta como a de Natália, poderá gritar serpentinamente ao
mundo o inocente enunciado “O REI VAI NU”!
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