domingo, 16 de março de 2014

O 16 de março


Passa hoje o 40.º aniversário do Levantamento das Caldas da Rainha, também referido como Intentona das Caldas, Revolta das Caldas ou Golpe das Caldas, que visava o derrube do regime português, cujo Chefe de Estado era o almirante Américo Tomás e o chefe do governo era o professor Marcelo Caetano – o Estado novo com os últimos esgares do estertor da moribunda agonia.
Trata-se de um evento prenunciador de novas e irreversíveis movimentações, havendo vários autores que o definem como o evento aglutinador do oficialato em torno do MFA (Movimento das Forças Armadas), que desembocou na Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974, e subsequentes ações revolucionárias  que levaram à instituição do regime constitucional vigente a partir de 25 de abril de 1976 e na plenitude da democracia formal com a lei constitucional n.º 1/82 de 30 de setembro, pela qual se procedeu à 1.ª revisão ao Constituição da República Portuguesa.
Sendo um marco importante de referência histórica, mas de inêxito inglório, folheei a imprensa hodierna e reparei que, além da evocação episódica desta efeméride, se abrem as fauces dos políticos da ordem a anunciar as comemorações da revolução abrilina e os quarenta anos da criação do PSD. Ora, como ainda não estamos em abril e o PSD não passa de um dos partidos a que a revolução deu abrigo (porque dois já vinham dantes e os outros tiveram sol de pouca dura), lembrei-me de perguntar por acontecimentos que de algum modo tenham ilustrado este dia. De entre os muitos que se me ofereceram à evocação, entendi dever fixar-me em três: o nascimento de Camilo Castelo Branco, em 1825; falecimento de Natália Correia, em 1993; e o referendo na Crimeia, hoje.
Começando por Camilo, há que acentuar o facto de ter sido o primeiro escritor português a viver exclusivamente dos seus escritos literários, o que, por necessidade, o levou à produção de uma enorme quantidade de obras, de que sobressai a novela, com um discurso fluente, estribado essencialmente nas classes gramaticais do nome e do verbo e sem grande aparato descritivo. Porém, apesar de ter de escrever para o grande e caprichoso público da segunda metade o século XIX, sujeitando-se assim aos ditames da moda, conseguiu manter uma escrita muito original, com um português genuinamente castiço, mergulhado na autenticidade das raízes lusas e inteligível para o comum dos leitores e das leitoras da época.
Não o sendo totalmente, a sua obra é predominantemente romântica. É certo que que o escritor gostaria de se situar acima das escolas literárias, como Miguel Torga, no século seguinte. No entanto, embora se tivesse deixado impressionar pela misteriosa e macabra literatura de Ann Radcliffe e as vicissitudes de sua vida altamente atribulada lhe condicionassem o teor e o dinamismo da escrita, os modelos clássicos tiveram sempre peso visível na sua produção literária. Foi imensamente influenciado pelo grande Almeida Garrett, o romântico por excelência, mas educado na pureza do classicismo de cariz eclesiástico, condimentado pelas xácaras, histórias, fantasias e romancinhos hauridos da tradição popular. Neste cruzamento de influências – a vida atribulada, a formação da roupagem clássica, a fidelidade à linguagem, o conhecimento dos costumes populares, o cheiro do torrão, o entranhado hábito da maledicência, o furor da polémica e a abertura à novidade – se vai desenvolver uma produção estético-literária de inquestionável qualidade, que o sistema educativo, ao nível do ensino não superior, teimou em obnubilar, nas últimas décadas. Salve-se a generosidade empresarialista da RTP e da Globo brasileira, que têm dado ao escritor algum relevo. A crítica literária tem assentado que, se por um lado Camilo, nas tramas novelísticas, com as suas peripécias mais ou menos rocambolescas, está claramente enquadrado na escola romântica, por outro lado, nas explanações psicológicas, no modo como analisa sentimentos, justifica ou explica os acontecimentos e critica a educação vigente, salta inequivocamente as malhas do romantismo.
Jacinto do Prado Coelho, considerando-o “ideologicamente flutuante” e “um narrador de histórias românticas ou romanescas com lances empolgantes e situações humanas comoventes”, assegura que o seu romantismo é “em boa parte dominado, contido, classicizado”, pela observância quase permanente da justa medida, e que figura ao “lado do seu alto idealismo romântico a viril contenção da prosa, um bom senso ligado às tradições e a certo cânones clássicos, um realismo sui generis, de vocação pessoal que parece na razão direta da autenticidade do seu romantismo”.
Na resposta àqueles que, como Eça de Queirós, entendiam que o escritor, sentindo-se a perder terreno para os novos cultores da língua, seus potenciais émulos, enveredara pelo realismo em novelas como Eusébio Macário, A Corja e A Brasileira de Prazins, Camilo declara, no prefácio de Eusébio Macário, que não tencionou pôr a ridículo a escola realista e justifica-se: “[…] tenho sido realista sem o saber. Nada me impede de continuar”. E mais adiante: «Eu não conhecia Zola; foi uma pessoa da minha família que me fez compreender a escola com duas palavras: ‘É a tua velha escola com uma adjetivação de casta estrangeira, e uma profusão de ciência (…). Além disso, tens de pôr a fisiologia onde os românticos punham a sentimentalidade: derivar a moral das bossas, e subordinar à fatalidade o que, pelos velhos processos, se imputava à educação e à responsabilidade’ compreendi e achei eu, há vinte e cinco anos, já assim pensava, quando Balzac tinha em mim o mais inábil dos discípulos.”.
No que diz respeito a Natália, impõe-se apresentá-la como “aquela senhora” de vastíssima cultura, devida essencialmente ao seu convívio com intelectuais e à sua incansável atividade de leitora, detendo uma das melhores bibliotecas de Lisboa. Destaca-se como ativista social na luta antifascista, obreira do fervor nas instituições democráticas e escritora prolífera em diversas vertentes.
Jornalista, ensaísta, cronista, teatróloga, romancista é, no entanto, na poesia que se revela uma personalidade inquestionavelmente singular, projetando nela um erotismo contido, uma ânsia e arroubo irreverentemente libertários, um desafio deliberadamente iconoclástico, um apurado sentido do fantástico – tudo isto eivado de alguns ecos românticos e acentuadas marcas surrealistas.
A terminar esta minha reflexão, como deixei implícito acima, com o ato referendário na Crimeia, oferece-se-me dizer, para lá de todo o posicionamento do jornalismo de investigação, da diplomacia das chancelarias e da justiça internacional, que gostaria que surgissem boas peças literárias que, para lá da sua função lúdico-estética, satisfizessem a função crítica e interventiva de escalpelização do jogo de interesses, da contradição dos sistemas políticos, da hipocrisia dos Estados e das ambições inconfessadas dos blocos das tidas como grandes potências internacionais ao serviço do poder do dinheiro, que não já das ideologias – a emergência das economias da afirmação das novas hegemonias!
De um lado, o presidente russo afiançou hoje à chanceler alemã que o seu país vai respeitar a escolha do povo da Crimeia e manifestou preocupação com as tensões nas regiões da Ucrânia onde se fala russo; do outro, uma horda de manifestantes a favor da Rússia entraram em edifícios dos serviços especiais em Donetsk, cidade russófona do este da Ucrânia, no decorrer de uma iniciativa a favor do domínio russo (Mas o que está em jogo não é um referendo?). Campeia ou não a fórmula da hipocrisia e o jogo inconfessado dos interesses?!

Ora, já que a política se posiciona prevalentemente no mundo da hipocrisia e do jogo dos interesses, a nobre literatura, também agora neorrealista, mergulhada em raízes de genuinidade como a camiliana ou a cáustica e iconoclasta como a de Natália, poderá gritar serpentinamente ao mundo o inocente enunciado “O REI VAI NU”!

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