Quando os
portugueses, sem qualquer via referendária em nenhuma das suas fases de
evolução, foram levados a aderir à então CEE (comunidade económica europeia),
que passou a CE (comunidade europeia) e cristalizou como UE (União europeia),
foi-lhes acenado com o binómio nevrálgico do dinamismo da organização que
passámos a integrar: subsidariedade e solidariedade.
Quanto à
primeira, cedo os portugueses a entenderam como “subsidiariedade”, que
celeremente se transformou em “subsidiodependência”, muitas vezes concretizada
por meios nada genuínos e pasto de abusos deploráveis, uns detetados a tempo,
outros nem tanto. No que à segunda diz respeito, não sei se foram os cidadãos
que ensinaram as autoridades europeias a inobservá-la ou se foi ao contrário.
Restaria ainda indagar se a inobservância é matéria que não se ensina ou se é
conteúdo que se aprende pelo mero exercício. O certo é que, se a subsidariedade
consiste em cada um, cada estrutura de um determinado nível se encarregar de
fazer tudo o que está ao seu alcance fazer e, subsidiariamente solicitar a
entidade superior (ou seja com maiores possibilidades e recursos) e dela
aceitar o apoio de que necessite, o qual, por princípio, não deveria ser negado
nem dificultado caprichosamente, tal desiderato só terá sido conseguido quando
autoridades nacionais, encarregadas de encaminhar e apadrinhar projetos, faziam
orelhas moucas e caneta buliçosa a criar empecilho, ou a negar a
comparticipação nacional. Tais situações, ao invés de criarem solidez na
relação Estados-Europa e Europa-cidadãos, geraram desconfiança, espírito
inquisidor, fraude, gestão de legalidade duvidosa. E a solidariedade entre
cidadãos, entre Europa e cidadãos e entre Europa e Estados ficou a ver navios,
como os franceses em Portugal quando a Corte da louca D. Maria I e do “brioso”
D, João VI fugiu para o Brasil.
E, como
consequência, os cidadãos deixaram de se interessar pelas matérias europeias e
passaram a aproveitar as “euroeleições” para lançamento de umas vaias aos
governos nacionais. Hoje “quem tem boca (não) vaia Roma”, mas vaia governo. A
propósito, quem é que sabe a versão originária do provérbio “quem tem boca vaia
Roma” (do verbo vaiar, gente!)? Hoje dava para vaiar Bruxelas, Estrasburgo ou
Berlim. Mas os ministros preferem lá ir, mostrar os projetos, pedir o conselho,
agradecer o apoio (a esmola, que é bem suadinha!)…
Porém, D.
Manuel Linda, vogal da Comissão Episcopal da Pastoral Social e Mobilidade
Humana, passa por cima deste discurso, para o qual não dispõe de tempo, e, como
refere a agência Ecclesia, em 23 de
março, na homilia da celebração eucarística a presidiu, exortou os católicos a
que “promovam a partilha de bens e trabalho” (trabalho também é um bem; e
“trabalho acumulado” chama-se “capital”).
No dia
Nacional da Cáritas de 2014, o Bispo das Forças Armadas e de Segurança fala com
a humildade do servo de Deus e a delicadeza do pobre:
“Queria, da
minha parte, deixar apenas um apelo: que a luta contra a fome, sempre que
possível, passe pela oferta de trabalho”.
E eu alvitro
que o ouçam todos: os empresários, para que, em vez do lucro pelo lucro, se
decidam a redimensionar “positivamente” as empresas, a ver se podem obter
mais-valias, integrando mais colaboradores (Quando se fala em redimensionamento
ou reestruturação, costuma ser somente para abater efetivos ao contingente de
empresa!), não se valham facilmente da declaração de insolvência para abrir
outra unidade empresarial a seguir, em seu nome ou em nome de outrem; os
trabalhadores, para que não mascarem a situação a aproveitarem a condição de
desemprego e se entregarem à "biscataria" ou estenderem abusivamente a mão à
caridade. E todos ouçam o prelado que nos avisa com palavras de sabedoria: quem
foge despudoradamente aos impostos; quem deve fiscalizar e não o faz ou se faz
cúmplice de quem não cumpre, fechando os olhos, por vezes a troco de luvas; e
os que nos desgovernam por não encontrarem outra maneira de gerir a coisa
pública e de satisfazer encargos com a Europa, senão à custa do assalto useiro
e vezeiro à bolsa de reformados e trabalhadores públicos.
Saibam os que
dizem que nos governam duas coisinhas: primeiro, não nos entregámos à Europa
pela mão de Mário Soares para sermos “bons alunos” (nem a Europa é propriamente
uma escola decente), mas para praticarmos a subsidariedade e a solidariedade,
sob o olhar ético dos zeladores do desígnio europeu, que falharam redondamente,
impondo-nos gastos excessivos, crédito fácil e agora, em nome da “dívida
soberana”, alegando que vivemos acima das nossas possibilidades, termos de
pagar tudinho, “custe o que custar” e, se possível, hoje; segundo, têm de
aprender quanto antes com o papa Francisco (já que o admiram tanto) a lição de
Moisés (que negociava com Deus e lhe refilava em favor do povo), ou seja, tal
como o homem que não seja capaz de negociar e refilar com Deus por causa do
povo não pode ser bispo, também quem não é capaz de negociar e refilar com
outrem (Europa, banqueiros, mercados…) em favor do seu povo não é digno de ser
governante da lusa Pátria.
Ora, a
Cáritas Nacional tem como lema ‘Unidos no amor, juntos contra a fome’,
associando-se à grande campanha da Cáritas Internacional pelo “direito
inalienável de todos à alimentação condigna”, para “combater a fome e lutar
contra o desperdício alimentar”. E D. Manuel Linda, na linha daquele necessário
lema, falou do “flagelo do desemprego” como “maior causador de empobrecimento
social”. E explicou-se, justificando e ensinando: “Por isso, um emprego não só
gera novas condições de vida para o próprio, mas também acaba por pôr a
economia a funcionar, pois o produtor transforma-se num consumidor com poder de
compra”.
Porém, o
prelado mostrou que não é ingénuo ao selecionar cirurgicamente os destinatários
do seu apelo: dirigiu-se em particular, aos “pequenos e médios investidores,
particularmente se cristãos”, partindo do princípio de que “não vale a pena
perder latim com quem dita as regras férreas do mercado e com quem não conhece
outra linguagem que não seja a do lucro”. Mas, por outro lado, o seu apelo é
lancinante: “Sede ousados na generosidade”.
Em sintonia
com a ideia de Francisco, que apresenta hoje a Igreja com a imagem do hospital
de campanha em prol de uma humanidade estilhaçada, ferida ou doente – razão
pela qual é preciso acudir aos seus órgãos vitais, com o risco de esquecer outros
aspetos também importantes – o bispo escalpeliza o “egoísmo” individual”. E
acusa-o de ter conduzido à construção coletiva de “uma cultura da indiferença,
da insolidariedade e da não responsabilização pelas condições de vida do
semelhante, do «salve-se quem puder»”. E uma Cáritas, que não foi criada
especificamente para colmatar situações de emergência e de calamidade, mas para
promover em regime de permanência, numa atitude de solidariedade, como marca da
ação pastoral da Igreja, a distribuição cristã dos bens – a repartição justa do
produto da terra ou do mar e do trabalho do homem – agora não pode entreter-se
no puritanismo da sua missão permanente, mas ir à luta pelo homem, mesmo com
armas enferrujadas, confiante em Deus e na Virgem.
Enfim, com
mais sentido ético firmado nos valores axiais da humanidade, com mais
solidariedade e menos solitariedade, com mais subsidariedade e menos
subsidiariedade, com mais justiça e menos avareza, mais trabalho e menos
diversão e mais sentido do outro, como “outro eu”, almejamos clamar ao mundo
dos homens e mulheres de boa vontade que a fé da Igreja, que nós professamos, é
indissociável daquele mandamento novo do Cristo “Amai-vos uns aos outros como
eu vos amei” o qual, no dizer do antístite, tem de se “traduzir em gestos de solidariedade
e de partilha”.
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