terça-feira, 18 de março de 2014

A dimensão materna da Igreja

Nota prévia sobre a noção de “igreja”
A noção de “igreja” não cabe numa só ideia, não se exprime num só vocábulo. A hebraica “qahal”, a grega “ecclesía” (,Εκκλησία) ou a latina “ecclesia” não esgotam todo o conteúdo da mensagem que o “Cristo” inseriu no mandato apostólico.
A assembleia veterotestamentária, ou seja, o povo reunido (constituído por todas as pessoas chamadas por Deus ou em seu nome) escuta a Palavra, a que habitualmente responde Amen (ou positivamente aos reptos que o líder em exercício lhe faz em nome de Deus), e assiste ao holocausto que o Sumo Sacerdote oferece por si e pelo povo, sendo este aspergido com uma porção do sangue das vítimas.
Na antiga Grécia, a assembleia (ecclesía, termo que provém do verbo kaléo, chamo, convoco) é a principal assembleia  da democracia ateniense.  É a assembleia do povo (démos, povoação, povo, assembleia, cidadãos, e laós, massa, povo, militantes) – com poderes de legislar, de designar e destituir os detentores do poder executivo, de superintender na administração da justiça e de fiscalizar a atividade de todos os que ocupam cargos públicos – aberta a todos os cidadãos do sexo masculino, com mais de dezoito anos que tenham prestado pelo menos 2 anos de serviço militar e que sejam filhos de pai natural da pólis (a partir do ano de 452 a.C. também a mãe o terá de ser). Trata-se de uma instituição seletiva.
Em Roma, originariamente terá sido a designação dada ao “curral” ou “abrigo” de ovelhas (não esqueçamos que os romanos eram um povo de marcada feição agrícola e pastorícia – marcas a que fazem jus duas obras poéticas de Vergílio, Bucólicas e Geórgicas – e uma das tarefas do pastor é chamar, chamar as ovelhas). O poder legislativo residia nos comitia, assembleias de cidadãos romanos. Estas assembleias, que em fase posterior da República também contavam com o concilium plebis, depois que foi reconhecida à plebe, cujos componentes não tinham o estatuto de cidadania, mas também não eram escravos, a capacidade de saber (o que deu origem ao plebiscitoplebes+scito saiba o povo), também elegiam os magistrados e possuíam alguns poderes judiciais. Diferentemente dos órgãos legislativos modernos, que funcionam na base da representação, na Roma Antiga considerava-se que as assembleias romanas reuniam sobretudo o povo e exerciam, portanto, poderes legislativos supremos, como aprovar as leis depois de serem apresentadas pelos magistrados, e cominar a pena capital sem julgamento. Eram assembleias seletivas, pois eram constituídas por cidadãos e, mais tarde, havia também a dos membros da plebe, mas que funcionavam só no masculino e excluíam escravos e servos.
A eclésia do novo testamento ou Igreja é a assembleia dos irmãos e irmãs (sem diferença de estatuto: cidadãos, não cidadãos, livres e escravos, judeus e não judeus). Recebe a tradição das assembleias do Antigo testamento (de todos, povo convocado), para a orar, escutar o ensino dos apóstolos e participar na fração do pão (que tornava presente o novo sacrifício, o de Cristo, de que se alimentavam todos e não só os sacerdotes – agapê ) – cf act 2,42-47; Gl 3,26-28. Recolhe a força da pluralidade da assembleia grega ou romana, mas não exige o grande número – bastam dois ou três que se reúnam em nome de Cristo (cf Mt 18,20) – e não exclui quem quer que seja, desde que tenha recebido o batismo e assume a familiaridade acurada e pressurosa do pastor com as ovelhas. Efetivamente, o Mestre dos apóstolos intitula-se de pastor, e Bom Pastor, que conhece as suas ovelhas, chama por elas e elas ouvem a sua voz. Conhecem-no e ele dá a vida por elas (Jo 10,11-16). E confiou a Pedro o encargo de apascentar os cordeiros e as ovelhas (Jo 21,15-17).

A maternidade da Igreja na tradição eclesiástica
Ora dada a complexidade que a riqueza da noção de Igreja comporta, esta tem sido apresentada a modo de imagens. E, como releva o papa Francisco, “entre as imagens que o Concílio Vaticano II escolheu para nos levar a compreender melhor a natureza da Igreja, existe a da «mãe»: a Igreja é a nossa mãe na fé, na vida sobrenatural” (cf. LG 6.14.15.41.42).
É uma das imagens mais apresentadas pela tradição eclesiástica, apesar de o meu primeiro professor de direito canónico dizer que ela, às vezes, parecia antes, madrasta. Todavia, Tertuliano, que terá morrido herege, considera a Igreja como mãe, numa expressão de extremo respeito e veneração. Tal como Eva foi formada da costela de Adão adormecido, também a Igreja teve a sua origem na chaga do lado de Cristo morto na Cruz (cf Gn 2,21-22; Jo 19,34). E, como Eva é a mãe dos viventes, também a Igreja, figurada na mulher do Apocalipse, é a mãe dos novos viventes, os filhos da nova criação (Ap 12,1-6; 21,1-5), a prole piedosa da oração tradicional: “Nos cum prole pia benedicat Virgo Maria” (A Virgem Maria nos abençoe com o povo – o conjunto dos filhos – piedoso). São Cipriano de Cartago afirma que “não pode ter Deus por pai, quem não tem a Igreja por mãe” (De cathol. Ecc. Unitate, 6). Para S. Agostinho, “a Igreja é realmente mãe dos cristãos” (De moribus Ecclesiae, I, 30, 62-63:PL 32, 1336).
O símbolo da fé de Santo Epifânio, bispo de Salamina, na sua forma mais longa refere a Igreja católica e apostólica como “a mãe de todos vós e de todos nós” (ê méter ymôn kai te êmôn); a interpretação hermeneia do mesmo símbolo na forma mais longa apresenta a designação de “mãe apostólica de nós” (êmôn) ou nossa e Igreja católica (cf DS. Enchiridion Symbolorum…45.47). São Gregório Magno, no De baptismo et ordinibus sacris haereticorum, contém a expressão ad sinum matris Ecclesiae (id et ib, 478): ao seio da mãe Igreja. O concílio IV de Latrão, na Constituição De Trinitate (id et ib, 807), refere a Igreja, por disposição divina (disponente Domino), como mãe e mestra de todos os fiéis (cunctorum fidelium mater est et magistra). O Concílio Tridentino, no decretum de vulgata editione bibliorum…, designa-a por sancta mater Ecclesia (id et ib, 1507), expressão que passou para a profissão de fé tridentina (id et ib, 1863) e para a profissão de fé católica antimodernista, ainda vigente (cf CIC, 1917). A constituição apostólica pela qual Bento XV promulga o código de Direito Canónico, de 1917, inicia-se com a expressão Providentissima Mater Ecclesia. Pio XII, em 2 de fevereiro de 1947, publicou uma constituição apostólica sobre institutos seculares de vida consagrada em que designa a Igreja como mãe providente (provida mater). A cada passo se fala da Igreja como mãe ou madre. “Alegra-se a Santa Mãe Igreja” – proclamava João XXIII, no seu discurso de abertura do Concílio Vaticano II, a 11 de outubro de 1962; no rito de ordenação a apresentação do candidato inicia-se com a expressão “Pede a Santa Mãe Igreja que…” (vd Pontifical Romano); os cristãos cada passo cantam “Igreja nossa mãe”. Cristo fazer incidir a maternidade de si mesmo em quem escuta a sua palavra e a põe em prática (cf Lc, 8,21; Mc 3,35; Mt 12,50).
E, se do império romano herdámos a província, o distrito e o município, na tradição eclesiástica construímos a freguesia, o território e o conjunto dos filhos da Igreja (filii ecclesiae), e a paróquia, o espaço e o conjunto dos que vivem em redor da casa do Pai (para+oikía tû patrós). E os comerciantes têm, por apropriação, os seus fregueses e a sua freguesia e os sociólogos criticam pejorativamente a mentalidade paroquial dos políticos.

Donde provém a maternidade da Igreja?
A Igreja torna-se mãe, tomando Maria como modelo. Neste sentido e segundo o Concílio, a Igreja, ao contemplar a sua santidade misteriosa, imitando a sua caridade e cumprindo fielmente a vontade do Pai, torna-se também ela própria mãe. Ou seja, a partir da fiel receção da Palavra de Deus, como Maria, gera efetivamente, pela pregação e pelo Baptismo, para vida nova e imortal, os filhos concebidos por ação do Espírito Santo e nascidos de Deus (cf LG, 64).
João Paulo II, na audiência geral de 13 agosto de 1997, enaltecendo a figura de Maria como modelo da maternidade eclesial, ensina:
A Igreja torna-se mãe na pregação da Palavra de Deus, na administração dos sacramentos e em particular no Batismo, na celebração da Eucaristia e no perdão dos pecados.

O papa Francisco, na audiência geral de 11 de setembro de 2013, como já se referiu, escolheu a imagem da mãe para caraterizar a Igreja. E, para enquadrar a resposta à questão como se se torna mãe a Igreja, analisa as funções da mãe:
Antes de tudo, a mãe gera para a vida, leva no ventre por nove meses o filho e depois abre-o à vida, gerando-o. Assim é a Igreja: gera-nos na fé, por obra do Espírito Santo que a torna fecunda, como a Virgem Maria. Tanto a Igreja como a Virgem Maria são mães; o que se diz da Igreja pode ser dito também de Nossa Senhora; e o que se diz de Nossa Senhora pode ser dito inclusive da Igreja!

Depois, justifica a sua tese com algumas das caraterísticas da fé: de ato pessoal “eu creio” (pistéo, credo), passa a ato comunitário, “nós cremos” (pistéomen, credimus):
O cristão não é uma ilha! Não nos tornamos cristãos em laboratórios, não nos tornamos cristãos sozinhos e só com as nossas forças, mas a fé é dádiva, dom de Deus que nos é concedido na Igreja e através da Igreja. E a Igreja doa-nos a vida de fé no Baptismo: este é o momento em que nos faz nascer como filhos de Deus, o instante em que nos concede a vida de Deus, que como mãe nos gera.

E apresenta um exemplo da epigrafia católica:
Se fordes ao Batistério de S. João de Latrão, a Catedral do Papa, encontrareis a inscrição latina que reza mais ou menos assim: «Aqui nasce um povo de estirpe divina, gerado pelo Espírito Santo que fecunda estas águas; a Igreja-Mãe dá à luz seus filhos nestas ondas». Isto leva-nos a entender algo importante: o nosso fazer parte da Igreja não é um dado exterior e formal, preencher um papel que nos dão, mas é um gesto interior e vital; não se pertence à Igreja como se pertence a uma sociedade, a um partido ou a uma organização qualquer. O vínculo é vital, como aquele que temos com a nossa mãe.

Mas o papa não se contenta com a função geradora da mãe, a genitrix. Entende-a também como nutrix (aquela que dá o alimento) e cultrix (a educadora e mestra, a médica e enfermeira, providente como Deus):
A mãe não se limita a dar a vida, mas com grande atenção ajuda os filhos a crescer, dá-lhes o leite, alimenta-os, ensina-lhes o caminho da vida, acompanha-os sempre com as suas atenções, com o seu carinho e com o seu amor, até quando são adultos. E nisto sabe também corrigir, perdoar e compreender, sabe estar próxima na enfermidade e no sofrimento. […] Como mãe boa, a Igreja faz o mesmo: acompanha o nosso crescimento, transmitindo a Palavra de Deus, que é uma luz que nos indica o caminho da vida cristã; administrando os Sacramentos. Alimenta-nos com a Eucaristia, concede-nos o perdão de Deus através do Sacramento da Penitência e apoia-nos na hora da doença com a Unção dos enfermos. A Igreja acompanha-nos durante toda a nossa vida de fé.

E Francisco questiona a nossa participação na função maternal da Igreja:
Enquanto é mãe dos cristãos, enquanto «faz» cristãos, a Igreja é também «feita» de cristãos. […] S. Jerónimo escrevia: «A Igreja de Cristo outra coisa não é, senão as almas dos que acreditam em Cristo» (Tract. Ps 86: PL 26, 1084). Então, a maternidade da Igreja é vivida por todos nós, pastores e fiéis. […] Todos somos Igreja e todos somos iguais aos olhos de Deus! Todos somos chamados a colaborar para o nascimento de novos cristãos na fé, todos somos chamados a ser educadores na fé, a anunciar o Evangelho. […] Quando repito que amo uma Igreja não fechada no seu espaço, mas capaz de sair, de se mover até com riscos, para levar Cristo a todos, penso em todos, em mim, em ti, em cada cristão. Participamos todos na maternidade da Igreja, a fim de que a luz de Cristo alcance os extremos confins da Terra.

Que mãe é a Igreja preconizada por Francisco?
Para resposta, respiguemos algumas ideias da Evangelii Gaudium. É uma Igreja em saída em direção aos outros, de portas abertas, para chegar às periferias, mas sem correrias tontas, sendo necessário parar “para olhar nos olhos” e escutar. “Uma mãe de coração aberto” continua como o pai do pródigo “com as portas abertas para, quando este voltar, poder entrar sem dificuldade” (cf EG, 46).
Um dos sinais concretos desta abertura é ter, por todo o lado, as igrejas ou templos (é fácil, por sinédoque e metonímia, empregar o termo igreja por templo, onde se reúne a Igreja) com as portas abertas, para, se alguém quiser seguir uma moção do Espírito e se aproximar à procura de Deus, não esbarrar com a frieza da porta fechada. “Mas há outras portas que também não se devem fechar”: a participação de alguma forma na vida eclesial ou comunitária é acessível a todos, e nem as portas dos sacramentos se devem fechar por uma razão qualquer. Isto vale para o Batismo, sacramento que é a “porta”, e para a Eucaristia, que, embora constitua a plenitude da vida sacramental, não é prémio para os perfeitos, mas remédio generoso e alimento para os fracos – convicções estas que têm consequências pastorais a considerar com prudente audácia. Quando agimos como controladores da graça e não como facilitadores, fazemos da Igreja uma alfândega, que não a casa paterna, onde tem de haver lugar para todos (cf EG, 47).
Chegar a todos, sem exceção, é a tarefa missionária da Igreja, que deve privilegiar claramente, não tanto os amigos e vizinhos ricos, mas sobretudo os pobres e doentes, os que tantas vezes são desprezados e esquecidos, “aqueles que não têm com que te retribuir” (Lc 14, 14). Hoje e sempre, “os pobres são os destinatários privilegiados do Evangelho”, e a evangelização dirigida gratuitamente a eles é sinal do Reino de Deus. Inquestionavelmente, existe um vínculo indissolúvel entre a fé e os pobres, que jamais podemos deixar sozinhos! (cf EG, 47).
E o pontífice repete Urbi et Orbi o seu ditame construído a partir do labor argentino:
Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada, por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos. […]
Mais do que o temor de falhar, espero que nos mova o medo de nos encerrarmos nas estruturas que nos dão uma falsa proteção, nas normas que nos transformam em juízes implacáveis, nos hábitos em que nos sentimos tranquilos, enquanto lá fora há uma multidão faminta e Jesus repete-nos sem cessar: «Dai-lhes vós mesmos de comer» (Mc 6, 37).


Só resta, pois, que vivamos como verdadeiros fregueses que fazem com que a Igreja seja cada vez mais mãe extremosa de todos. 

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