Nota prévia sobre a noção de “igreja”
A noção de “igreja” não cabe numa só
ideia, não se exprime num só vocábulo. A hebraica “qahal”, a grega “ecclesía”
(,Εκκλησία) ou a latina “ecclesia”
não esgotam todo o conteúdo da mensagem que o “Cristo” inseriu no mandato
apostólico.
A assembleia veterotestamentária, ou
seja, o povo reunido (constituído por todas
as pessoas chamadas por Deus ou em seu nome) escuta a Palavra, a que
habitualmente responde Amen (ou
positivamente aos reptos que o líder em exercício lhe faz em nome de Deus), e
assiste ao holocausto que o Sumo Sacerdote oferece por si e pelo povo, sendo
este aspergido com uma porção do sangue das vítimas.
Na antiga Grécia, a assembleia (ecclesía, termo que provém do verbo kaléo, chamo, convoco) é a principal assembleia da democracia ateniense. É a assembleia do povo (démos, povoação, povo, assembleia, cidadãos,
e laós, massa, povo, militantes) –
com poderes de legislar, de designar e destituir os detentores do poder
executivo, de superintender na administração da justiça e de fiscalizar a
atividade de todos os que ocupam cargos públicos – aberta a todos os cidadãos
do sexo masculino, com mais de dezoito anos que tenham prestado pelo menos 2
anos de serviço militar e que sejam filhos de pai natural da pólis (a partir do ano de 452 a.C. também a mãe o terá de ser). Trata-se de uma instituição seletiva.
Em Roma, originariamente terá sido
a designação dada ao “curral” ou “abrigo” de ovelhas (não esqueçamos que os
romanos eram um povo de marcada feição agrícola e pastorícia – marcas a que
fazem jus duas obras poéticas de Vergílio, Bucólicas
e Geórgicas – e uma das tarefas do
pastor é chamar, chamar as ovelhas). O poder legislativo residia nos comitia, assembleias de cidadãos romanos. Estas assembleias, que em fase posterior da
República também contavam com o concilium
plebis, depois que foi reconhecida à plebe, cujos componentes não tinham o
estatuto de cidadania, mas também não eram escravos, a capacidade de saber (o
que deu origem ao plebiscito – plebes+scito – saiba o povo), também elegiam os magistrados e possuíam alguns poderes judiciais.
Diferentemente dos órgãos legislativos modernos, que funcionam na base da
representação, na Roma Antiga considerava-se
que as assembleias romanas reuniam sobretudo o povo e exerciam, portanto,
poderes legislativos supremos, como aprovar as leis depois de serem apresentadas pelos
magistrados, e cominar a pena
capital sem julgamento. Eram assembleias seletivas, pois eram constituídas por
cidadãos e, mais tarde, havia também a dos membros da plebe, mas que funcionavam
só no masculino e excluíam escravos e servos.
A eclésia do novo testamento ou Igreja
é a assembleia dos irmãos e irmãs (sem diferença de estatuto: cidadãos, não
cidadãos, livres e escravos, judeus e não judeus). Recebe a tradição das
assembleias do Antigo testamento (de todos, povo convocado), para a orar,
escutar o ensino dos apóstolos e participar na fração do pão (que tornava
presente o novo sacrifício, o de Cristo, de que se alimentavam todos e não só
os sacerdotes – agapê ) – cf act
2,42-47; Gl 3,26-28. Recolhe a força da pluralidade da assembleia grega ou
romana, mas não exige o grande número – bastam dois ou três que se reúnam em
nome de Cristo (cf Mt 18,20) – e não exclui quem quer que seja, desde que tenha
recebido o batismo e assume a familiaridade acurada e pressurosa do pastor com
as ovelhas. Efetivamente, o Mestre dos apóstolos
intitula-se de pastor, e Bom Pastor, que conhece as suas ovelhas, chama por
elas e elas ouvem a sua voz. Conhecem-no e ele dá a vida por elas (Jo 10,11-16).
E confiou a Pedro o encargo de apascentar os cordeiros e as ovelhas (Jo
21,15-17).
A
maternidade da Igreja na tradição eclesiástica
Ora dada
a complexidade que a riqueza da noção de Igreja comporta, esta tem sido
apresentada a modo de imagens. E, como releva o papa Francisco, “entre as
imagens que o Concílio Vaticano II escolheu
para nos levar a compreender melhor a natureza da Igreja, existe a da «mãe»: a
Igreja é a nossa mãe na fé, na vida sobrenatural” (cf. LG 6.14.15.41.42).
É uma
das imagens mais apresentadas pela tradição eclesiástica, apesar de o meu primeiro
professor de direito canónico dizer que ela, às vezes, parecia antes, madrasta.
Todavia, Tertuliano, que terá morrido herege, considera a Igreja como mãe, numa expressão de extremo
respeito e veneração. Tal como Eva foi
formada da costela de Adão adormecido, também a Igreja teve a sua origem na
chaga do lado de Cristo morto na Cruz (cf Gn 2,21-22; Jo 19,34). E, como Eva é
a mãe dos viventes, também a Igreja, figurada na mulher do Apocalipse, é a mãe
dos novos viventes, os filhos da nova criação (Ap 12,1-6; 21,1-5), a prole
piedosa da oração tradicional: “Nos cum prole
pia benedicat Virgo Maria” (A Virgem Maria nos abençoe com o povo – o conjunto
dos filhos – piedoso). São Cipriano de Cartago afirma que “não pode ter Deus por pai, quem não tem a
Igreja por mãe” (De
cathol. Ecc. Unitate, 6).
Para S. Agostinho, “a Igreja é realmente mãe dos
cristãos” (De moribus Ecclesiae, I, 30, 62-63:PL 32, 1336).
O símbolo da fé de Santo
Epifânio, bispo de Salamina, na sua forma mais longa refere a Igreja católica e
apostólica como “a mãe de todos vós e de todos nós” (ê méter ymôn kai te êmôn); a interpretação hermeneia do mesmo símbolo na forma mais longa apresenta a
designação de “mãe apostólica de nós” (êmôn)
ou nossa e Igreja católica (cf DS. Enchiridion
Symbolorum…45.47). São Gregório Magno, no De baptismo et ordinibus sacris haereticorum, contém a expressão ad sinum matris Ecclesiae (id et ib,
478): ao seio da mãe Igreja. O concílio IV de Latrão, na Constituição De Trinitate (id et ib, 807), refere a
Igreja, por disposição divina (disponente
Domino), como mãe e mestra de todos os fiéis (cunctorum fidelium mater est et magistra). O Concílio Tridentino,
no decretum de vulgata editione bibliorum…,
designa-a por sancta mater Ecclesia (id et ib, 1507), expressão que passou para
a profissão de fé tridentina (id et ib, 1863) e para a profissão de fé católica
antimodernista, ainda vigente (cf CIC, 1917). A constituição apostólica pela
qual Bento XV promulga o código de Direito Canónico, de 1917, inicia-se com a
expressão Providentissima Mater Ecclesia.
Pio XII, em 2 de fevereiro de 1947, publicou uma constituição apostólica
sobre institutos seculares de vida consagrada em que designa a Igreja como mãe
providente (provida mater). A cada passo se fala da Igreja como
mãe ou madre. “Alegra-se a Santa Mãe Igreja” –
proclamava João XXIII, no seu discurso de abertura do Concílio Vaticano II, a
11 de outubro de 1962; no rito de ordenação a apresentação do candidato
inicia-se com a expressão “Pede a Santa Mãe Igreja que…” (vd Pontifical Romano); os cristãos cada
passo cantam “Igreja nossa mãe”. Cristo fazer incidir a maternidade de si mesmo
em quem escuta a sua palavra e a põe em prática (cf Lc, 8,21; Mc 3,35; Mt 12,50).
E, se do império romano herdámos a província,
o distrito e o município, na tradição eclesiástica construímos a freguesia, o
território e o conjunto dos filhos da Igreja (filii ecclesiae), e a paróquia, o espaço e o conjunto dos que vivem
em redor da casa do Pai (para+oikía tû patrós). E os comerciantes têm, por apropriação,
os seus fregueses e a sua freguesia e os sociólogos criticam pejorativamente a
mentalidade paroquial dos políticos.
Donde provém a maternidade da Igreja?
A Igreja torna-se mãe,
tomando Maria como modelo. Neste sentido e segundo o Concílio, a Igreja, ao contemplar
a sua santidade misteriosa, imitando a sua caridade e cumprindo fielmente a
vontade do Pai, torna-se também ela própria mãe. Ou seja, a partir da fiel receção
da Palavra de Deus, como Maria, gera efetivamente, pela pregação e pelo
Baptismo, para vida nova e imortal, os filhos concebidos por ação do Espírito
Santo e nascidos de Deus (cf LG,
64).
João Paulo II, na audiência geral de
13 agosto de 1997, enaltecendo a figura de Maria como modelo da maternidade eclesial, ensina:
A Igreja torna-se mãe na pregação da Palavra de Deus,
na administração dos sacramentos e em particular no Batismo, na celebração da
Eucaristia e no perdão dos pecados.
O papa Francisco,
na audiência geral de 11 de setembro de 2013, como já se referiu, escolheu a
imagem da mãe para caraterizar a
Igreja. E, para enquadrar a resposta à questão como se se torna mãe a Igreja,
analisa as funções da mãe:
Antes de tudo, a mãe gera para a vida, leva
no ventre por nove meses o filho e depois abre-o à vida, gerando-o. Assim é a
Igreja: gera-nos na fé, por obra do Espírito Santo que a torna fecunda, como a
Virgem Maria. Tanto a Igreja como a Virgem Maria são mães; o que se diz da
Igreja pode ser dito também de Nossa Senhora; e o que se diz de Nossa Senhora
pode ser dito inclusive da Igreja!
Depois, justifica a sua
tese com algumas das caraterísticas da fé: de ato pessoal “eu creio” (pistéo, credo), passa a ato comunitário, “nós cremos” (pistéomen, credimus):
O cristão não é uma ilha! Não nos tornamos
cristãos em laboratórios, não nos tornamos cristãos sozinhos e só com as nossas
forças, mas a fé é dádiva, dom de Deus que nos é concedido na Igreja e através
da Igreja. E a Igreja doa-nos a vida de fé no Baptismo: este é o momento em que
nos faz nascer como filhos de Deus, o instante em que nos concede a vida de
Deus, que como mãe nos gera.
E apresenta um exemplo da
epigrafia católica:
Se fordes ao Batistério de S. João de
Latrão, a Catedral do Papa, encontrareis a inscrição latina que reza mais ou
menos assim: «Aqui nasce um povo de estirpe divina, gerado pelo Espírito Santo
que fecunda estas águas; a Igreja-Mãe dá à luz seus filhos nestas ondas». Isto
leva-nos a entender algo importante: o nosso fazer parte da Igreja não é um
dado exterior e formal, preencher um papel que nos dão, mas é um gesto interior
e vital; não se pertence à Igreja como se pertence a uma sociedade, a um
partido ou a uma organização qualquer. O vínculo é vital, como aquele que temos
com a nossa mãe.
Mas o papa não se
contenta com a função geradora da mãe, a genitrix.
Entende-a também como nutrix (aquela que dá o alimento) e cultrix (a educadora
e mestra, a médica e enfermeira, providente como Deus):
A mãe não se limita a dar a vida, mas com
grande atenção ajuda os filhos a crescer, dá-lhes o leite, alimenta-os,
ensina-lhes o caminho da vida, acompanha-os sempre com as suas atenções, com o
seu carinho e com o seu amor, até quando são adultos. E nisto sabe também
corrigir, perdoar e compreender, sabe estar próxima na enfermidade e no
sofrimento. […] Como mãe boa, a Igreja faz o mesmo: acompanha o nosso
crescimento, transmitindo a Palavra de Deus, que é uma luz que nos indica o
caminho da vida cristã; administrando os Sacramentos. Alimenta-nos com a
Eucaristia, concede-nos o perdão de Deus através do Sacramento da Penitência e
apoia-nos na hora da doença com a Unção dos enfermos. A Igreja acompanha-nos
durante toda a nossa vida de fé.
E Francisco questiona a
nossa participação na função maternal da Igreja:
Enquanto é mãe dos cristãos, enquanto «faz»
cristãos, a Igreja é também «feita» de cristãos. […] S. Jerónimo escrevia: «A
Igreja de Cristo outra coisa não é, senão as almas dos que acreditam em Cristo»
(Tract. Ps 86: PL 26, 1084). Então, a maternidade da
Igreja é vivida por todos nós, pastores e fiéis. […] Todos somos Igreja e todos
somos iguais aos olhos de Deus! Todos somos chamados a colaborar para o
nascimento de novos cristãos na fé, todos somos chamados a ser educadores na
fé, a anunciar o Evangelho. […] Quando repito que amo uma Igreja não fechada no
seu espaço, mas capaz de sair, de se mover até com riscos, para levar Cristo a
todos, penso em todos, em mim, em ti, em cada cristão. Participamos todos na
maternidade da Igreja, a fim de que a luz de Cristo alcance os extremos confins
da Terra.
Que mãe é a Igreja
preconizada por Francisco?
Para resposta,
respiguemos algumas ideias da Evangelii
Gaudium. É uma Igreja em saída em direção aos outros, de portas abertas,
para chegar às periferias, mas sem correrias tontas, sendo necessário parar
“para olhar nos olhos” e escutar. “Uma
mãe de coração aberto”
continua como o pai do pródigo “com as portas abertas para, quando este voltar,
poder entrar sem dificuldade” (cf EG, 46).
Um dos sinais concretos
desta abertura é ter, por todo o lado, as igrejas ou templos (é fácil, por
sinédoque e metonímia, empregar o termo igreja
por templo, onde se reúne a Igreja) com as portas abertas, para, se
alguém quiser seguir uma moção do Espírito e se aproximar à procura de Deus,
não esbarrar com a frieza da porta fechada. “Mas há outras portas que também
não se devem fechar”: a participação de alguma forma na vida eclesial ou
comunitária é acessível a todos, e nem as portas dos sacramentos se devem
fechar por uma razão qualquer. Isto vale para o Batismo, sacramento que é a
“porta”, e para a Eucaristia, que, embora constitua a plenitude da vida
sacramental, não é prémio para os perfeitos, mas remédio generoso e alimento
para os fracos – convicções estas que têm consequências pastorais a considerar
com prudente audácia. Quando agimos como controladores da graça e não como
facilitadores, fazemos da Igreja uma alfândega, que não a casa paterna, onde tem
de haver lugar para todos (cf EG, 47).
Chegar a todos, sem
exceção, é a tarefa missionária da Igreja, que deve privilegiar claramente, não
tanto os amigos e vizinhos ricos, mas sobretudo os pobres e doentes, os que tantas
vezes são desprezados e esquecidos, “aqueles que não têm com que te retribuir”
(Lc 14, 14). Hoje e
sempre, “os pobres são os destinatários privilegiados do Evangelho”, e a
evangelização dirigida gratuitamente a eles é sinal do Reino de Deus.
Inquestionavelmente, existe um vínculo indissolúvel entre a fé e os pobres, que
jamais podemos deixar sozinhos! (cf EG, 47).
E o pontífice repete Urbi
et Orbi o seu ditame construído a partir do labor argentino:
Prefiro
uma Igreja acidentada,
ferida e enlameada, por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo
fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser
o centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos. […]
Mais
do que o temor de falhar,
espero que nos mova o medo de nos encerrarmos nas estruturas que nos dão uma
falsa proteção, nas normas que nos transformam em juízes implacáveis, nos
hábitos em que nos sentimos tranquilos, enquanto lá fora há uma multidão
faminta e Jesus repete-nos sem cessar: «Dai-lhes vós mesmos de comer» (Mc 6, 37).
Só resta, pois, que vivamos como verdadeiros fregueses que fazem
com que a Igreja seja cada vez mais mãe extremosa de todos.
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