Li, com
interesse, um artigo de Alexandrino Brochado no periódico diocesano do Porto, Voz Portucalense, de 19 de março,
subordinado ao título “alguns pecados atuais”. O articulista opina – e bem –
que, se nos fosse dado redigir um novo formulário catequético na Escola ou na
Igreja, teríamos de o redigir de forma bem diferente do que aprendemos e
deveríamos talvez acrescentar ao rol dos pecados tradicionais e aos mandamentos
ou às obras de misericórdia mais uns tantos, como os pecados da estrada, no primeiro caso, e arranjar trabalho a quem precisa de ganhar a vida, no segundo caso.
Refere Alexandrino
Brochado, com sua visão atenta, o que perpassa por este mundo de Cristo: uma
insensibilidade crassa a preceitos como guardar castidade, cultivar a
verdadeira beleza e apostar na seriedade e honestidade de vida; e a onda
difusora de modos de vida nada plausíveis. E citava, a este respeito, uma
revista de grande tiragem que, a propósito de alguém que interessava promover,
ostentava o slogan: “esta vedeta espalha beleza e sensualidade
em todo o mundo”. E comentava, com razão, a inutilidade de tal palavra de
ordem publicitária num mundo já eivado de impureza, sensualidade e podridão,
contraposto àquele que preza ainda a sanidade de costumes e tenta difundi-la
por todos os meios ao alcance.
Concordando com
a intenção e, por princípio, com o fluxo discursivo do autor do texto, gostava
de referir – não obviamente para o subscritor do texto, que disso não precisa,
mas genericamente para quem ler – que a doutrina tradicional da Igreja Católica
contém um referencial mais que suficiente para incorporarmos um moderno rol de
virtudes e pecados, a que hoje seremos mais sensíveis, ou um conjunto de
preceitos e recomendações, a cujo seguimento estaremos mais atreitos. Não me
alongarei se lembrar que o enunciado como pecado que brada ao céu “não pagar o
jornal a quem trabalha” se ajustou a uma nova redação “não pagar o salário
justo a quem trabalha”. E a sua leitura coeva, a partir de Leão XIII,
explicitou que o salário justo deve cobrir o trabalho efetivamente prestado e
constituir um contributo para satisfazer as responsabilidades para com a
família e precaver as situações previstas e imprevistas de carência futura ou
em caso de impossibilidade de trabalho. Não sei mesmo se arranjar trabalho a quem precisa de ganhar a vida não se incluirá
no 7.º preceito do decálogo lido à luz do Novo Testamento. É claro que os
mandamentos emoldurados pelo tom da misericórdia divina têm outra força e outro
sabor (deixam de ser um peso para o praticante de boa fé). Só que o vocábulo
“misericórdia” entrou no imaginário como pena, compaixão, favor, não imperativo
obrigatório – quando deveria imperar como compaixão, sim, mas assumida como
disponibilidade de sofrer com quem sofre, alegrar-se com quem se alegra. Já
agora, não é isto a “caridade” (por favor, não caridadezinha!), o contrário da
inveja, um dos pecados capitais?
“Dar emprego a
quem dele precisa” é obrigação de todo o empresário, de acordo com as suas
possibilidades, como é obrigação do trabalhador o desempenho de qualidade no
trabalho, cumprindo bem todas as tarefas, mais do que o horário (profissionalismo
– manda Francisco, o papa – com as notas de empenho, estudo e atualização). Isto
é, no primeiro caso a “liberalidade”, o contrário da “avareza”, outro pecado
capital; e no segundo, a “diligência”, o contrário da preguiça, mais outro
pecado capital! Porém, dispensem-me de pensar se os deveres/obrigações enunciados
obrigam sub gravi ou non sub gravi / sub levi (distinções como estas é que deram cabo de tudo).
Já se pode ver
como o não cumprimento do código de estrada pode compaginar um conjunto de
pecados: pôr em risco a vida dos outros é uma infração ao 5.º mandamento e pode
levar ao homicídio voluntário (pecado que brada aos céus). Coisa semelhante (ao
nível do 5.º, 6.º, 7.º e 8.º preceitos) se diga dos insultos/palavrões/calúnias
de estrada, danos voluntários nos bens (as colisões provocadas, derrube de
postes, fraude às seguradoras, etc.). E mais se poderia dizer. Só um outro
aspeto que fere – e com razão – as sensibilidades: a pedofilia e o abuso sexual
de menores, independentemente do sexo das vítimas ou da condição do infrator,
não são pecado contra o 6.º mandamento e, nalguns casos, pecado que brada aos
céus?
Quanto à
formulação da doutrina, recentemente foram editados já vários catecismos.
Lembro-me de O Novo Catecismo, (tradução
portuguesa das edições HERDER), conhecido como “o catecismo da Igreja de
Holanda”, elaborado logo a seguir ao concílio Vaticano II, que foi objeto de
tantas e injustas críticas. Outras formulações apareceram, como: Catecismo para Adultos – a Aliança de Deus,
dos Bispos de França, tradução portuguesa da Gráfica de Coimbra, com nota de
Dom João Alves; A Fé Explicada, de
Leo Trese, edições Quadrante, S. Paulo; o Libro
Básico del Creyente, das edições PPC, Madrid; e os dois volumes de Rey-Mermet,
A fé explicada aos jovens e adultos,
Edições Paulinas, 1980. João Paulo II mandou elaborar e publicar o Catecismo da Igreja Católica, na
sequência da formulação da doutrina conciliar, e Bento XVI fez coisa semelhante
com o Compêndio do Catecismo da Igreja
Católica. No entanto, em matéria atinente aos costumes, as formulações
continuam pouco felizes. Insistem muito no preceito pela negativa: “não dirás,
não farás…”. Seria mais positivo formular pela positiva, à semelhança do
próprio Código de Direito Canónico, cujo teor é usualmente mais positivo.
Como se pode
entender, apesar de haver já muito trabalho feito, muito de caminho ainda resta
para percorrer. No entanto, o mais necessário é refletir e tirar conclusões dos
materiais já elaborados, que têm muito que se lhes diga. E é necessário que as
formulações não constituam floresta anárquica onde o crente não saiba por que
jeito possa manobrar.
Resta
acrescentar que para haver pecado grave são necessárias três condições cumulativas:
matéria grave (atenção, que a matéria leve pode levar ao hábito de queda em
atos pecaminosos de matéria grave; por isso, nada como a ação pedagógica);
perfeito conhecimento e advertência – o que não dispensa de trabalhar pela
formação da consciência); e pleno consentimento (o que também não significa exigência
de declaração escrita com testemunhas perante notário ou sub iudice).
Posto isto, para
a frente e fé em Deus!
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