sexta-feira, 28 de março de 2014

Pecados atuais, pecados velhos

Li, com interesse, um artigo de Alexandrino Brochado no periódico diocesano do Porto, Voz Portucalense, de 19 de março, subordinado ao título “alguns pecados atuais”. O articulista opina – e bem – que, se nos fosse dado redigir um novo formulário catequético na Escola ou na Igreja, teríamos de o redigir de forma bem diferente do que aprendemos e deveríamos talvez acrescentar ao rol dos pecados tradicionais e aos mandamentos ou às obras de misericórdia mais uns tantos, como os pecados da estrada, no primeiro caso, e arranjar trabalho a quem precisa de ganhar a vida, no segundo caso.
Refere Alexandrino Brochado, com sua visão atenta, o que perpassa por este mundo de Cristo: uma insensibilidade crassa a preceitos como guardar castidade, cultivar a verdadeira beleza e apostar na seriedade e honestidade de vida; e a onda difusora de modos de vida nada plausíveis. E citava, a este respeito, uma revista de grande tiragem que, a propósito de alguém que interessava promover, ostentava o slogan: “esta vedeta espalha beleza e sensualidade em todo o mundo”. E comentava, com razão, a inutilidade de tal palavra de ordem publicitária num mundo já eivado de impureza, sensualidade e podridão, contraposto àquele que preza ainda a sanidade de costumes e tenta difundi-la por todos os meios ao alcance.
Concordando com a intenção e, por princípio, com o fluxo discursivo do autor do texto, gostava de referir – não obviamente para o subscritor do texto, que disso não precisa, mas genericamente para quem ler – que a doutrina tradicional da Igreja Católica contém um referencial mais que suficiente para incorporarmos um moderno rol de virtudes e pecados, a que hoje seremos mais sensíveis, ou um conjunto de preceitos e recomendações, a cujo seguimento estaremos mais atreitos. Não me alongarei se lembrar que o enunciado como pecado que brada ao céu “não pagar o jornal a quem trabalha” se ajustou a uma nova redação “não pagar o salário justo a quem trabalha”. E a sua leitura coeva, a partir de Leão XIII, explicitou que o salário justo deve cobrir o trabalho efetivamente prestado e constituir um contributo para satisfazer as responsabilidades para com a família e precaver as situações previstas e imprevistas de carência futura ou em caso de impossibilidade de trabalho. Não sei mesmo se arranjar trabalho a quem precisa de ganhar a vida não se incluirá no 7.º preceito do decálogo lido à luz do Novo Testamento. É claro que os mandamentos emoldurados pelo tom da misericórdia divina têm outra força e outro sabor (deixam de ser um peso para o praticante de boa fé). Só que o vocábulo “misericórdia” entrou no imaginário como pena, compaixão, favor, não imperativo obrigatório – quando deveria imperar como compaixão, sim, mas assumida como disponibilidade de sofrer com quem sofre, alegrar-se com quem se alegra. Já agora, não é isto a “caridade” (por favor, não caridadezinha!), o contrário da inveja, um dos pecados capitais?
“Dar emprego a quem dele precisa” é obrigação de todo o empresário, de acordo com as suas possibilidades, como é obrigação do trabalhador o desempenho de qualidade no trabalho, cumprindo bem todas as tarefas, mais do que o horário (profissionalismo – manda Francisco, o papa – com as notas de empenho, estudo e atualização). Isto é, no primeiro caso a “liberalidade”, o contrário da “avareza”, outro pecado capital; e no segundo, a “diligência”, o contrário da preguiça, mais outro pecado capital! Porém, dispensem-me de pensar se os deveres/obrigações enunciados obrigam sub gravi ou non sub gravi / sub levi (distinções como estas é que deram cabo de tudo).
Já se pode ver como o não cumprimento do código de estrada pode compaginar um conjunto de pecados: pôr em risco a vida dos outros é uma infração ao 5.º mandamento e pode levar ao homicídio voluntário (pecado que brada aos céus). Coisa semelhante (ao nível do 5.º, 6.º, 7.º e 8.º preceitos) se diga dos insultos/palavrões/calúnias de estrada, danos voluntários nos bens (as colisões provocadas, derrube de postes, fraude às seguradoras, etc.). E mais se poderia dizer. Só um outro aspeto que fere – e com razão – as sensibilidades: a pedofilia e o abuso sexual de menores, independentemente do sexo das vítimas ou da condição do infrator, não são pecado contra o 6.º mandamento e, nalguns casos, pecado que brada aos céus?
Quanto à formulação da doutrina, recentemente foram editados já vários catecismos. Lembro-me de O Novo Catecismo, (tradução portuguesa das edições HERDER), conhecido como “o catecismo da Igreja de Holanda”, elaborado logo a seguir ao concílio Vaticano II, que foi objeto de tantas e injustas críticas. Outras formulações apareceram, como: Catecismo para Adultos – a Aliança de Deus, dos Bispos de França, tradução portuguesa da Gráfica de Coimbra, com nota de Dom João Alves; A Fé Explicada, de Leo Trese, edições Quadrante, S. Paulo; o Libro Básico del Creyente, das edições PPC, Madrid; e os dois volumes de Rey-Mermet, A fé explicada aos jovens e adultos, Edições Paulinas, 1980. João Paulo II mandou elaborar e publicar o Catecismo da Igreja Católica, na sequência da formulação da doutrina conciliar, e Bento XVI fez coisa semelhante com o Compêndio do Catecismo da Igreja Católica. No entanto, em matéria atinente aos costumes, as formulações continuam pouco felizes. Insistem muito no preceito pela negativa: “não dirás, não farás…”. Seria mais positivo formular pela positiva, à semelhança do próprio Código de Direito Canónico, cujo teor é usualmente mais positivo.
Como se pode entender, apesar de haver já muito trabalho feito, muito de caminho ainda resta para percorrer. No entanto, o mais necessário é refletir e tirar conclusões dos materiais já elaborados, que têm muito que se lhes diga. E é necessário que as formulações não constituam floresta anárquica onde o crente não saiba por que jeito possa manobrar.
Resta acrescentar que para haver pecado grave são necessárias três condições cumulativas: matéria grave (atenção, que a matéria leve pode levar ao hábito de queda em atos pecaminosos de matéria grave; por isso, nada como a ação pedagógica); perfeito conhecimento e advertência – o que não dispensa de trabalhar pela formação da consciência); e pleno consentimento (o que também não significa exigência de declaração escrita com testemunhas perante notário ou sub iudice).

Posto isto, para a frente e fé em Deus!

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