Vai fazer, a 13 de março, um ano que o conclave elegeu Bergoglio como
Sumo Pontífice, que, em sinal de opção preferencial pelo mundo das periferias
(leia-se: dos mais débeis, deserdados, pobres, mergulhados na miséria ou para
ela empurrados, marginalizados pela sociedade e também pela “perfeita” sociedade
eclesial) assumiu o nome de Francisco, o poverello de Assis, que desposou a santa pobreza como virtude para se dedicar,
de forma liberta, à “reconstrução” da Igreja de Cristo. E Francisco I exprime
diante os cardeais que o elegeram, logo no dia seguinte, um tríplice desejo
programático: “Eu queria que, depois destes dias de
graça, todos nós tivéssemos a coragem, sim a coragem, de caminhar na presença do Senhor, com a Cruz do Senhor; de edificar a Igreja sobre o sangue do
Senhor, que é derramado na Cruz; e de confessar
como nossa única glória Cristo Crucificado. E assim a Igreja vai para diante”.
E, a 19 de março, na homilia da solene inauguração do seu exercício do
ministério petrino, expôs ante o mundo, em forma exortativa e mobilizadora, o
programa da Igreja toda e das pessoas de boa vontade: “Guardar Jesus com Maria,
guardar a criação inteira, guardar toda a pessoa, especialmente a mais pobre,
guardarmo-nos a nós mesmos: eis um serviço que o Bispo de Roma está chamado a
cumprir, mas para o qual todos nós estamos chamados, fazendo resplandecer a
estrela da esperança: guardemos com amor aquilo que Deus nos deu”!
Já tinha
dado, dois dias antes, a lição da crítica pelos opositores do Mestre pelo facto
de Este não ter condenado a mulher adúltera, uma vez que veio ao mundo, não
para condenar, mas para procurar e redimir.
Pela
postura, pelo estilo e pelas atitudes de acolhimento e caminhada ao encontro de
quem precise, o Papa
Francisco abraçou em cheio a simplicidade
e não se cansa de apelar à ternura, à misericórdia, à promoção da fé, através
do anúncio; ao invés, solicita que se rejeite o conforto do centro, a atitude fiscalizadora
dos comportamentos, a tarefa medidora da distância entre a doutrina e o mundo.
Abjura o carreirismo, a intriga e a maledicência; porém, exige a
profissionalidade, o serviço e a docilidade, articulados com a competência, o
estudo e a atualização. Ora, é então justo advertir que o papa terá a
simplicidade das pombas, mas também a prudência ou “astúcia” das serpentes (Mt
10,16). Nesse sentido, não deixa de cultivar o contributo dado pelo antecessor
à condução da Igreja, enaltecer o seu perfil, alimentar a sua amizade e
alimentar-se dela; aplica-se à reforma da Igreja no mundo, pela magistratura da
palavra e da influência e pelo testemunho pessoal de simplicidade; ambiciona a
reforma das estruturas de governo da Igreja, dos serviços da Santa Sé e dos
aspetos logísticos do Estado que chefia. Mas a sua ambição atinge a reforma da
Igreja que palpita pelos mais recônditos escaninhos da Terra. Diz-se que o
papa, o que não podia deixar de ser, é também um político extraordinariamente
astuto. Não podemos esquecer que é um jesuíta e jesuíta que não seja político
(no sentido de avaliar os contextos, selecionar as decisões a tomar e usar o
tacto necessário para que elas sejam eficazes e humanas) para poder andar entre
as ovelhas e se defender e as defender dos lobos, bem como para lutar estrenuamente
contra eles, não se poderá chamar verdadeiro jesuíta. E, assim, ele rodeou-se
de um conselho de cardeais pluricontinental para colaborarem na reforma da
cúria e demais estruturas, chamada a reforma da Constituição Apostólica Pastor Bonus; criou uma comissão para acompanhar a reformulação da instituição
financeira; recentemente criou uma secretaria com a categoria de ministério ou
dicastério equiparado à Secretaria de Estado, entregue à liderança de Pell e
composta por cardeais e leigos; deixou à Igreja e ao Mundo sinais de eloquente
exigência na prevenção, debelação e reparação dos atropelos à dignidade humana
cometidos por sacerdotes, mas não deixou de clamar que a Igreja foi quem mais
fez contra os crimes de abuso sexual; e sobretudo inaugurou um sistema de
audição das bases da Igreja e do mundo em que a Igreja se move, o que não é
despiciendo.
No entanto, não podemos ver em tudo sinais com significado específico e
intencional ou mesmo factos totalmente inéditos. Por exemplo, criou um novo ministério de economia e finanças para supervisionar todos os
departamentos vaticanos, sobretudo aqueles que lidam com dinheiro. A
composição, a extensão e o momento são inéditos; o facto em si, já foi tentado
e feita alguma coisa pelos antecessores. Pouco tempo antes da comunicação da sua
intenção de renúncia, o antecessor nomeara nova administração para o Instituto
de Obras Religiosas, liderada por um leigo não italiano. E em 30 de dezembro de
2010, publicou a Carta Apostólica sob forma de
‘Motu Proprio’ para a prevenção e o contraste das atividades ilegais em campo
financeiro e monetário. E em 7 de julho de 2009, publicou a Carta Apostólica sob forma de ‘Motu Proprio’ com a qual é aprovado o novo
estatuto do Ofício de Trabalho da Sé Apostólica (ULSA).
Sobre
a dança das cadeiras de cardeais e monsenhores, tem havido de tudo, como há de
tudo: gente que falha e é substituída; pessoas que se indisponibilizam e
pessoas que aceitam continuar no mesmo ou noutro ofício; pessoas que atingem ou
vão atingir limite de idade; pessoas em cujo desempenho se confia mais e
pessoas em cujo desempenho se confia menos; pessoas a quem se dá nova oportunidade
e pessoas a quem essa hipótese não é concedida; e pessoas que pura e
simplesmente aceitam o sistema de rotatividade. Como exemplo, é de referir que,
a prazo, qualquer Secretário de Estado dará lugar a outro, e Bertone aproximava-se
dos 80 anos; ou deixar a Congregação para o Clero e ir para a Assinatura
Apostólica, para a Rota ou para a Penitenciaria, francamente que não dá para
saber onde haverá situações de maior responsabilidade e melindre. Restam as
linhas programáticas e de espiritualidade que o Pontífice deixa como repto a
todos os oficiais, membros e superiores dos dicastérios.
O
papa já explicou que qualquer das suas atitudes e gestos (abraçar, beijar,
afagar, viver em Santa Marta, transportar a própria maleta, escrever,
telefonar, usar trajes simples) que não são atos de vedetismo (e temos de
acreditar nele) – para os quais se terão inventado boatos, como o de ele andar
em pessoa de noite a distribuir bens aos sem-abrigo na cidade de Roma – são
exigências do seu temperamento: que é assim que se sente bem, com as pessoas.
As esmolas pontificais nas últimas décadas – é justo declará-lo – têm sido
frequentes, com maior ou menor visibilidade. Quem se lembra, por exemplo, de
que Paulo VI vendeu a tiara para dar o dinheiro aos pobres e passou a usar a
mitra normal do bispo e instituiu o chamado anel conciliar de fabrico simples e
aparato igualitário par dignitários eclesiásticos? Ou da simplicidade de Bento
XVI a explicar ao mundo o significado do anel, da férula e de cada elemento do
pálio, na inauguração solene do seu exercício do ministério petrino?
Sobre
o facto de o papa viver habitualmente em Santa Marta e utilizar o Palácio
Apostólico para os atos oficiais – vg receção aos embaixadores, sessões
consistoriais, reuniões protocolares, etc. – pergunto-me: Será que, em
Portugal, dos Presidentes da República eleitos na era pós-abrilina, Mário
Soares, Jorge Sampaio e Cavaco Silva não ocuparam diariamente o palácio de
Belém. Será por isso que foram ou são melhores ou piores do que Ramalho Eanes? E,
que eu saiba, somente um papa houve que se autoconsiderou prisioneiro do
Vaticano!
Depois,
acho muito redutor o juízo contrastivo e simplista, como o que ouvi no passado
domingo na TVI: Bento XVI foi um papa teólogo, um professor; Francisco é um
papa pastor. Ora bem, é certo que Bento XVI mostrava um perfil tímido, de homem
estudioso, bom conversador, apostado na articulação fé-razão. Porém, não deixa
de revelar forte sensibilidade pastoral. Pense-se nas viagens apostólicas,
algumas das quais de muita denúncia, todas de muita ternura e sobretudo de
muita oração e proximidade de Deus e das pessoas, nomeadamente os jovens. E não
me digam que o Ano Paulino, o Ano Sacerdotal e o Ano da Fé, além de iniciativas de promoção da doutrina, não
configuram momentos de ação pastoral. Quanto a Francisco, quem o rotula como
papa pastoral, tem lido ou ouvido as suas intervenções? Efetivamente, o seu
posicionamento não se espelha num pronunciamento sobre fé e costumes do alto do
trono ou ex cátedra solene e
majestoso. E não é crível que o teólogo tenha de laborar encerrado num gabinete
ou entretido num laboratório de ideias. Tão importante como o burilar dos
conteúdos teológicos é a sua “repartição em pedacinhos” para os “pobres
consumidores” e também (re)construtores do discurso teológico. Ora, qualquer
uma das intervenções do papa argentino, por mais breve ou extensa que seja,
escorre teologia forte, profunda e arejada. Mais: é teologia estruturada por
detrás da aparente informalidade e dos simpáticos apartes; as suas tiradas de
vergastação social, económica e política apresentam sempre um firme suporte
antropoteológico e uma coerente axiologia ética. É pena que nem sempre mareje
capilarmente em torno de quem a ouve, tantas vezes como ao sino que toca.
Aliás,
como seria possível falar de ternura do rosto de Deus e ir a todas as
periferias sem ter que dizer, anunciar, consolidar? Como promover, como
confortar, como agregar sem a escada, sem o bálsamo, sem o betume de Deus? Não
quero fazer de Francisco “a picareta falante”, mas o arauto e andarilho de Deus
que prega oportuna e inoportunamente (2 Tim 4,2) e vai aonde o Senhor mandar
(Jr 1,7).
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