terça-feira, 11 de março de 2014

A Reforma Vaticana


Vai fazer, a 13 de março, um ano que o conclave elegeu Bergoglio como Sumo Pontífice, que, em sinal de opção preferencial pelo mundo das periferias (leia-se: dos mais débeis, deserdados, pobres, mergulhados na miséria ou para ela empurrados, marginalizados pela sociedade e também pela “perfeita” sociedade eclesial) assumiu o nome de Francisco, o poverello de Assis, que desposou a santa pobreza como virtude para se dedicar, de forma liberta, à “reconstrução” da Igreja de Cristo. E Francisco I exprime diante os cardeais que o elegeram, logo no dia seguinte, um tríplice desejo programático: “Eu queria que, depois destes dias de graça, todos nós tivéssemos a coragem, sim a coragem, de caminhar na presença do Senhor, com a Cruz do Senhor; de edificar a Igreja sobre o sangue do Senhor, que é derramado na Cruz; e de confessar como nossa única glória Cristo Crucificado. E assim a Igreja vai para diante”. E, a 19 de março, na homilia da solene inauguração do seu exercício do ministério petrino, expôs ante o mundo, em forma exortativa e mobilizadora, o programa da Igreja toda e das pessoas de boa vontade: “Guardar Jesus com Maria, guardar a criação inteira, guardar toda a pessoa, especialmente a mais pobre, guardarmo-nos a nós mesmos: eis um serviço que o Bispo de Roma está chamado a cumprir, mas para o qual todos nós estamos chamados, fazendo resplandecer a estrela da esperança: guardemos com amor aquilo que Deus nos deu”!
Já tinha dado, dois dias antes, a lição da crítica pelos opositores do Mestre pelo facto de Este não ter condenado a mulher adúltera, uma vez que veio ao mundo, não para condenar, mas para procurar e redimir.
Pela postura, pelo estilo e pelas atitudes de acolhimento e caminhada ao encontro de quem precise, o Papa Francisco abraçou em cheio a simplicidade e não se cansa de apelar à ternura, à misericórdia, à promoção da fé, através do anúncio; ao invés, solicita que se rejeite o conforto do centro, a atitude fiscalizadora dos comportamentos, a tarefa medidora da distância entre a doutrina e o mundo. Abjura o carreirismo, a intriga e a maledicência; porém, exige a profissionalidade, o serviço e a docilidade, articulados com a competência, o estudo e a atualização. Ora, é então justo advertir que o papa terá a simplicidade das pombas, mas também a prudência ou “astúcia” das serpentes (Mt 10,16). Nesse sentido, não deixa de cultivar o contributo dado pelo antecessor à condução da Igreja, enaltecer o seu perfil, alimentar a sua amizade e alimentar-se dela; aplica-se à reforma da Igreja no mundo, pela magistratura da palavra e da influência e pelo testemunho pessoal de simplicidade; ambiciona a reforma das estruturas de governo da Igreja, dos serviços da Santa Sé e dos aspetos logísticos do Estado que chefia. Mas a sua ambição atinge a reforma da Igreja que palpita pelos mais recônditos escaninhos da Terra. Diz-se que o papa, o que não podia deixar de ser, é também um político extraordinariamente astuto. Não podemos esquecer que é um jesuíta e jesuíta que não seja político (no sentido de avaliar os contextos, selecionar as decisões a tomar e usar o tacto necessário para que elas sejam eficazes e humanas) para poder andar entre as ovelhas e se defender e as defender dos lobos, bem como para lutar estrenuamente contra eles, não se poderá chamar verdadeiro jesuíta. E, assim, ele rodeou-se de um conselho de cardeais pluricontinental para colaborarem na reforma da cúria e demais estruturas, chamada a reforma da Constituição Apostólica Pastor Bonus; criou uma comissão para acompanhar a reformulação da instituição financeira; recentemente criou uma secretaria com a categoria de ministério ou dicastério equiparado à Secretaria de Estado, entregue à liderança de Pell e composta por cardeais e leigos; deixou à Igreja e ao Mundo sinais de eloquente exigência na prevenção, debelação e reparação dos atropelos à dignidade humana cometidos por sacerdotes, mas não deixou de clamar que a Igreja foi quem mais fez contra os crimes de abuso sexual; e sobretudo inaugurou um sistema de audição das bases da Igreja e do mundo em que a Igreja se move, o que não é despiciendo.
No entanto, não podemos ver em tudo sinais com significado específico e intencional ou mesmo factos totalmente inéditos. Por exemplo, criou um novo ministério de economia e finanças para supervisionar todos os departamentos vaticanos, sobretudo aqueles que lidam com dinheiro. A composição, a extensão e o momento são inéditos; o facto em si, já foi tentado e feita alguma coisa pelos antecessores. Pouco tempo antes da comunicação da sua intenção de renúncia, o antecessor nomeara nova administração para o Instituto de Obras Religiosas, liderada por um leigo não italiano. E em 30 de dezembro de 2010, publicou a Carta Apostólica sob forma de ‘Motu Proprio’ para a prevenção e o contraste das atividades ilegais em campo financeiro e monetário. E em 7 de julho de 2009, publicou a Carta Apostólica sob forma de ‘Motu Proprio’ com a qual é aprovado o novo estatuto do Ofício de Trabalho da Sé Apostólica (ULSA).
Sobre a dança das cadeiras de cardeais e monsenhores, tem havido de tudo, como há de tudo: gente que falha e é substituída; pessoas que se indisponibilizam e pessoas que aceitam continuar no mesmo ou noutro ofício; pessoas que atingem ou vão atingir limite de idade; pessoas em cujo desempenho se confia mais e pessoas em cujo desempenho se confia menos; pessoas a quem se dá nova oportunidade e pessoas a quem essa hipótese não é concedida; e pessoas que pura e simplesmente aceitam o sistema de rotatividade. Como exemplo, é de referir que, a prazo, qualquer Secretário de Estado dará lugar a outro, e Bertone aproximava-se dos 80 anos; ou deixar a Congregação para o Clero e ir para a Assinatura Apostólica, para a Rota ou para a Penitenciaria, francamente que não dá para saber onde haverá situações de maior responsabilidade e melindre. Restam as linhas programáticas e de espiritualidade que o Pontífice deixa como repto a todos os oficiais, membros e superiores dos dicastérios.
O papa já explicou que qualquer das suas atitudes e gestos (abraçar, beijar, afagar, viver em Santa Marta, transportar a própria maleta, escrever, telefonar, usar trajes simples) que não são atos de vedetismo (e temos de acreditar nele) – para os quais se terão inventado boatos, como o de ele andar em pessoa de noite a distribuir bens aos sem-abrigo na cidade de Roma – são exigências do seu temperamento: que é assim que se sente bem, com as pessoas. As esmolas pontificais nas últimas décadas – é justo declará-lo – têm sido frequentes, com maior ou menor visibilidade. Quem se lembra, por exemplo, de que Paulo VI vendeu a tiara para dar o dinheiro aos pobres e passou a usar a mitra normal do bispo e instituiu o chamado anel conciliar de fabrico simples e aparato igualitário par dignitários eclesiásticos? Ou da simplicidade de Bento XVI a explicar ao mundo o significado do anel, da férula e de cada elemento do pálio, na inauguração solene do seu exercício do ministério petrino?
Sobre o facto de o papa viver habitualmente em Santa Marta e utilizar o Palácio Apostólico para os atos oficiais – vg receção aos embaixadores, sessões consistoriais, reuniões protocolares, etc. – pergunto-me: Será que, em Portugal, dos Presidentes da República eleitos na era pós-abrilina, Mário Soares, Jorge Sampaio e Cavaco Silva não ocuparam diariamente o palácio de Belém. Será por isso que foram ou são melhores ou piores do que Ramalho Eanes? E, que eu saiba, somente um papa houve que se autoconsiderou prisioneiro do Vaticano!
Depois, acho muito redutor o juízo contrastivo e simplista, como o que ouvi no passado domingo na TVI: Bento XVI foi um papa teólogo, um professor; Francisco é um papa pastor. Ora bem, é certo que Bento XVI mostrava um perfil tímido, de homem estudioso, bom conversador, apostado na articulação fé-razão. Porém, não deixa de revelar forte sensibilidade pastoral. Pense-se nas viagens apostólicas, algumas das quais de muita denúncia, todas de muita ternura e sobretudo de muita oração e proximidade de Deus e das pessoas, nomeadamente os jovens. E não me digam que o Ano Paulino, o Ano Sacerdotal e o Ano da Fé, além de iniciativas de promoção da doutrina, não configuram momentos de ação pastoral. Quanto a Francisco, quem o rotula como papa pastoral, tem lido ou ouvido as suas intervenções? Efetivamente, o seu posicionamento não se espelha num pronunciamento sobre fé e costumes do alto do trono ou ex cátedra solene e majestoso. E não é crível que o teólogo tenha de laborar encerrado num gabinete ou entretido num laboratório de ideias. Tão importante como o burilar dos conteúdos teológicos é a sua “repartição em pedacinhos” para os “pobres consumidores” e também (re)construtores do discurso teológico. Ora, qualquer uma das intervenções do papa argentino, por mais breve ou extensa que seja, escorre teologia forte, profunda e arejada. Mais: é teologia estruturada por detrás da aparente informalidade e dos simpáticos apartes; as suas tiradas de vergastação social, económica e política apresentam sempre um firme suporte antropoteológico e uma coerente axiologia ética. É pena que nem sempre mareje capilarmente em torno de quem a ouve, tantas vezes como ao sino que toca.

Aliás, como seria possível falar de ternura do rosto de Deus e ir a todas as periferias sem ter que dizer, anunciar, consolidar? Como promover, como confortar, como agregar sem a escada, sem o bálsamo, sem o betume de Deus? Não quero fazer de Francisco “a picareta falante”, mas o arauto e andarilho de Deus que prega oportuna e inoportunamente (2 Tim 4,2) e vai aonde o Senhor mandar (Jr 1,7).

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