Alguns dão como certa, sem mais, a
relação entre tertúlia e Tertuliano. Tal relação, no entanto, não é tão linear
como pode parecer à primeira. Os dicionários de vernáculo disponíveis
apresentam o verbete “tertúlia” (nome feminino) como proveniente do castelhano
e atribuem-lhe os significados de: reunião familiar; reunião de pessoas com
interesses comuns; reunião habitual de intelectuais para troca de ideias sobre
diversos temas (ficaram célebres as “Conferências do Casino”, de 1871, que a
Monarquia Constitucional, a da liberdade, interditou); assembleia literária
(podemos recordar as sessões das arcádias setecentistas para a crítica
literária mútua, que descambavam facilmente ou no elogio mútuo ou no insulto);
palestra literária. E acrescentam, num sentido figurado, o significado de
embriaguez.
Por seu turno, aparecem os verbetes
“tertulianismo” (nome masculino), com o significado doutrina dos
tertulianistas, e “tertulianista” (nome masculino e feminino, ou seja, comum de
dois, e adjetivo uniforme), com o significado de partidário das ideias de
Tertuliano e, em especial, das suas teses montanistas.
Orlando Neves, no seu Dicionário de Nomes Próprios, da
Editorial Notícias (2002), considera o nome “Tertuliano” proveniente do latim, tercius (terceiro – prefiro tertius), e refere “nome de um filósofo
e apologista cristão dos séculos II e III, gentílico de Tertulo, nome de uma famosa família romana, proveniente de tersus, ‘puro’.”.
Uma informação mais detalhada
recolhida em livros de patrologia permite sintetizar que se trata de Quintus
Septimius Florens Tertullianus, (nascido por volta do ano de 160 e
falecido provavelmente no de 220), nascido em Cartago, província romana de
África, onde veio a falecer, e filho de um centurião romano de religião pagã.
Tendo recebido uma sólida formação científica, especialmente nas áreas jurídica
e retórica, converteu-se ao Cristianismo, após o que revelou intenso labor
literário em favor da Igreja – um forte caráter de apologeta e um violento
polemista contra as heresias. Terá sido o escritor mais produtivo da era
pré-constantiniana. Embora muito conservador, organizou e fez avançar a nova
teologia da Igreja antiga. Talvez o que o tornou mais famoso tenha sido o ter
legado à sistematização teológica a mais antiga exposição formal – um corpus –
ainda existente sobre a teologia trinitária. Foi ele a utilizar pela primeira
vez o termo “Trinitas” (em português, Trindade)
em complemento da “Unitas” (Unidade).
O seu temperamento nada conciliador, levou-o a aderir à ideologia montanista no
âmbito da qual se tornou chefe de um grupo denominado tertulianismo. Apesar de
tudo e de não haver certeza sobre se foi ou não ordenado sacerdote, fica na
História da Igreja como um dos seus “Padres” (pais da doutrina), já que reúne a
três condições necessárias para o título: antiguidade, ciência eminente e
santidade (no sentido de probidade) de vida. E, como se movimentou entre Roma e
Cartago e escreveu em latim, embora dominasse a língua grega, ficou conhecido
como um dos Padres Latinos. (cf Berthold Altaner, Patrología, ed Espasa-Calpe / Madrid, 1962).
E em que consiste genericamente o
montanismo? A obra citada esclarece que o montanismo é a doutrina de Montano,
que terá nascido na Frígia (na Ásia Menor Romana, território
hoje denominado por Turquia). Montano
afirmava que havia sido enviado por Jesus Cristo para inaugurar a era do Paráclito, ou
Espírito Santo, o Consolador, possuindo, por conseguinte, o dom da profecia.
Era seguido por duas mulheres, Priscila (ou Prisca) e Maximila, que afirmavam
que o Espírito Santo falava através
delas, as quais, durante os seus êxtases anunciavam
como iminente o fim do mundo, bradando que os cristãos o deviam aguardar na
cidade frígia de Pepusa, onde surgiria a Jerusalém celeste, dando azo a que uma nova era cristã
se iniciasse com esta revelação divina. A via de perfeição para a espera da
última vinda do Salvador era a de um rigoroso
ascetismo, secundado pela castidade durante o casamento, com a proibição de
segundas núpcias, e, no plano alimentar, com a instituição do jejum durante duas semanas por ano e da
xerofagia (consumo de alimentos secos), sem o consumo de carne. Em complemento
e como sanção adequada, negava-se a absolvição aos réus de pecados graves
(mesmo após o batismo com confissão e arrependimento), as mulheres eram
obrigadas ao uso de véu nas funções
sagradas e recomendava-se aos fiéis que não fugissem às perseguições, mas que
se oferecessem voluntariamente ao martírio. Os Montanistas ou
"pneumáticos" (inspirados pelo sopro do espírito) viviam separados da
Igreja católica (que se dizia ortodoxa até ao grande cisma que separou
católicos e ortodoxos), considerando os demais cristãos como “psíquicos” ou
racionalistas.
Quanto à relação de
tertúlia com Tertuliano, é Orlando Neves que, ao referir o vocábulo tersus, despertou a pesquisa pelo campo
da latinidade. Assim, pudemos ler nos dicionários de latim disponíveis os
termos: tertus ou tersus (adjetivo, do verbo tergo e tergeo), com os significados de esfregado, enxuto, limpo, polido e
pulido (ou puído), apurado, elegante, esmerado; tersus (nome, dos verbos tergo
e tergeo), com os significados de
limpeza, ação de limpar, ação de enxugar; tergo
e tergeo (verbos), com os
significados de enxugar, esfregar, limpar, polir e pulir (ou puir), limar,
aperfeiçoar, lavar, expiar (um crime) e deleitar o paladar; Tertullianus, Tertuliano, escritor
eclesiástico; Tertullianus ou Tertyllianus, Tertuliano (célebre
jurista e advogado que alguns confundiram com o escritor eclesiástico referido); Tertullinus, Tertulino, nome de homem; Tertullus, Tertulo, nome atribuído a
várias pessoas, relacionado com Tertius
e Tertia (terceiro, terceira); Tertulla, Tertula ou Tertulia, nome de mulher, a terceira
filhinha.
Ora, as tertúlias ou as
sessões das arcádias, nos seus objetivos primordiais, podiam ter ambição
semelhante à de Tertuliano e dos montanistas (vd significado de tergo e vocábulos da mesma família), com
aquele espírito perfecionista, de pureza e puritanismo, que facilmente descai ou
para a loa bajulatória ou para a truculência e até virulência. Nas reuniões
familiares ou de amigos, costuma ficar a conversa em dia, tirar-se tudo a limpo
ou surgirem as dissensões incorrigíveis. Por outro lado, um trabalho, uma
romaria, uma boa ação, um ato de sassaricar só ficam bem à terceira vez (vd
“tertius” e “tertia”) ou como o povo diz “às três é de vez”.
Quanto à continuidade do
perfecionismo cristão, anote-se como pululam, na História da Igreja, os
institutos de vida consagrada e de vida apostólica; e, no domínio das heresias,
repare-se no que deu o movimento dos albigenses (de Albi) ou cátaros (puros),
que assolaram a Europa no dealbar do segundo milénio, despertaram a criação de
uma das ordens mendicantes por Domingos de Gusmão, deram azo ao incremento das
Universidades (para aprofundamento e extensão do saber e para guarda da pureza
da doutrina) e serviram de pretexto à criação da Inquisição ou santo Ofício,
que se virou contra judeus e árabes, bem como contra os costumes que hoje se
diriam desviantes ou se catalogariam como temas fraturantes.
No atinente à discussão
literária e científica, os colégios dos jesuítas e os seminários em geral cultivaram
o hábito das “sabatinas”: ao sábado, pela manhã, discutiam-se as matérias estudadas
durante a semana, em regime de certame ou concurso entre pares de alunos
selecionados para o efeito, vencendo, em cada par, o que marcasse mais pontos.
No âmbito literário e
político, releia-se a emblemática obra de Eça de Queirós e avaliem-se todos os
debates que o romance testemunha com abundância.
Em termos genéricos, a tertúlia é, na
sua essência uma reunião de amigos, familiares ou simplesmente frequentadores
de um local, que se reúnem de forma mais ou menos regular, para discutir vários
temas e assuntos.
Numa referência inequívoca da
importância das tertúlias, alguém terá assegurado que a vida da Nação gira à
volta de uma chávena de chá ou de café. Portugal tê-las-á importado de Paris,
onde surgiram associadas aos cafés e, nesse regime, se espalharam pelo mundo
inteiro. Cada café tinha uma ou mais tertúlias sobre os mias diversificados temas.
Paralelamente, os diferentes membros identificavam-se pela pertença a uma ou
outra tertúlia, numa clara separação das águas entre as diversas linhas de
pensamento. Dada a existência de grande número de cafés lá existentes, o Chiado
lisboeta assumiu a liderança das tertúlias. A
Brasileira, o Nicola e outros cafés
receberam tertúlias com participantes muito influentes, entre os quais se
contam nomes sonantes, como: Bocage, Alexandre Herculano, António Feliciano de
Castilho, Almada Negreiros, Eduardo Viana, António Botto, Fernando Pessoa,
Mário de Sá-Carneiro, Stuart Carvalhais, João Gaspar Simões ou Aquilino Ribeiro.
No Porto, os locais por excelência
onde se reuniam intelectuais, artistas e políticos, eram o Majestic, A Brasileira, o Guarany e o Águia d’ Ouro.
Mas Coimbra, Faro e, na realidade,
qualquer cidade ou vila de Portugal, que se prezasse, tinham nos seus cafés-tertúlias, onde se discutia tanto a
política nacional ou internacional, como o futebol ou o mais recente mexeriqueiro
rumor local.
Terá sido em torno destas tertúlias
de café que a política e as artes portuguesas do século XIX e da primeira
metade do século XX se
desenvolveram, pelo entrecruzamento de opiniões, osmose de ideias, apresentação
e discussão de ideários e livros novos, etc. Os movimentos finisseculares geraram
o republicanismo, ocasionaram os congressos e potenciaram as academias e
centros de estudos. Com o advento do Estado Novo, as
tertúlias tornam-se o último reduto da discussão livre da censura, mas que com
o tempo passaram a ser cada vez mais espiadas pela polícia política. Exemplo
disto foi o Grupo do Café Gelo.
Paralelamente, a melhoria das comunicações, nomeadamente o advento da televisão
e o aparecimento de outros espaços, levaram ao quase desaparecimento gradual
das tertúlias existentes, mas deram origem a novas formas de tertúlia.
Atualmente assiste-se a uma tentativa
do seu renascimento, com várias instituições a criarem tertúlias sobre vários
temas. Sem incluir neste item, os habituais espaços de debate constitucional,
legislativo ou estatutário, basta pensar nas jornadas parlamentares, nas universidades
de verão, nos centros de estudos literários, científicos, económicos e
políticos que por aí campeiam.
Sim, se não houver tertúlia e novos
tertulianos, a vida social estiola!
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