quinta-feira, 27 de março de 2014

Ingovernabilidade hereditária

O título desta perícopa ficaria mal aplicado se não fora aplicável à causa portuguesa. Ingovernabilidade remete para a impossibilidade de governar porque o “objeto” da governação não o permite, é insubordinado, é impaciente, não coopera, não se interessa pela causa pública. Ora bem, essa não é a verdade, mas é dessa verdade que os governantes se queixam: que não conseguem, que estão cansados, que as forças de bloqueio não permitem as reformas e por aí adiante. E esse mundo lá vai acreditando, por graça e obra dos nossos líderes (alguns de meia tigela), que somos herdeiros e fiéis depositários dos lusitanos, que viviam no cabo do mundo e que não se governavam nem se deixavam governar. Só que se esquecem de que não comiam deitados como os romanos, mas sentados, como convém a pessoas!
Lembro-me de, em 1977, ter lido, num dos escaparates da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, um relato piadético que referia que o povo português não se vergava às ordens do governo, porque, na sua lucidez, pensava que elas não eram justas e eficazes, pleno que lhe assistia a liberdade de não as acatar. Então, o Presidente da República e o Primeiro-Ministro teriam decidido dissolver o povo. É óbvio que tal narrativa não era verdadeira. Porém, revelava a tentação de quem governa fazer migrar para os governados as inépcias de sua atividade de condução do país.
As pessoas que têm memória bem se recordam da tónica governativa até 1982: o país estava ingovernável porque o Conselho da Revolução, apoiado em parecer técnico da Comissão Constitucional, declarava a inconstitucionalidade das sucessivas propostas de lei da delimitação do setor público e do setor privado. E o governo de apoio parlamentar minoritário de Cavaco Silva (o primeiro) cantava a ladainha da impossibilidade das reformas por causa da maioria que as inviabilizava. No entanto, a Assembleia da República discutiu e aprovou a Lei de Bases do Sistema Educativo (lei n.º 46/86, de 14 de outubro), a qual com três alterações cirúrgicas se mantém em vigor nos dias que hoje vivemos. E quem não se lembra de, nos tempos do Congresso Portugal e o Futuro, o então chefe do governo bradar: “Deixem-nos trabalhar”?
Ora todos sabem que: o povo aceitou sem se opor, embora fosse refilando, à descolonização em África; aderiu sem pestanejar à CEE, à CE e à UE – gastando da melhor forma possível sem grande fiscalização os fundos europeus – enquanto avançava a destruição da agricultura, das pescas, da marinha comercial e da marinha de guerra; seguiu pacatamente as indicações de investimento público ora dito faraónico, os dez estádios de futebol, as cinco linhas do TGV (reduzidas a duas e a nenhuma), o aeroporto da Ota, de Alcochete ou da Portela + um, as SCUT, os cinco submarinos (reduzidos a dois), com contrapartidas nebulosas; e agarrou a onda de consumismo e o crédito fácil. Entretanto, achara natural a miraculosa entrega de Macau à China e acompanhou com desesperança, dor e alegria o processo de Timor Leste. E, quando vieram os homens da troika de fora e os da de dentro, o povo, lá foi gritando, gemendo e chorando, galgando “criminosamente” umas escadarias, mas submeteu-se à “justa punição” de pagar com quase dois terços da sua bolsa (Não acreditam? Façam as contas! Claro que estou a falar do povo-povo…) porque lhe disseram que estava a viver acima das suas possibilidades e que era preciso honrosamente pagar àqueles senhores que fazem o favor de nos emprestar dinheiro. Ó Vítor Hugo, anda cá fazer uma nova versão d’ Os Miseráveis!
E, em julho do ano transato, o senhor das finanças renunciou porque se tinha enganado e reconheceu que não era capaz de levar a barca até Berlim. Porém, há dias, comunicou de boca bem aberta que o responsável pelo monstro era o bisavô da Dra Ferreira Leite. O senhor Dom Carlos, rei de Lisboa e arredores, encarregou-o de formar governo e ele cumpriu, mas não aceitou uma proposta de concertação com os “credores” externos (quer dizer, recusou-se a ser bom aluno) apresentada pelo então senhor da fazenda nacional, que se demitiu. Ora, o rei de Lisboa e arredores (do Minho a Timor), acabou por o exonerar ao fim de nove meses. Depois, foi só cometer erros e mais erros sob a batuta do defunto até ontem… Nunca pensei que uma orquestra tocasse em sucessão de anos e séculos (parecia-me que os músicos deviam estar juntos): só a dos políticos!
Penso que a venerável ministra das finanças de Durão Barroso cometeu os seus erros, mas não tinha que levar com essa “do lobo e do cordeiro”. Os homens e mulheres da minha terra, se estivessem presentes no fórum de discussão sobre estas matérias, teriam aconselhado a senhora a mandar o mago Gaspar aonde ele não queria ir (à missa todos os dias, por exemplo).
Só agora é que estou a topar: ela é uma das setenta e quatro figuras públicas que apôs o seu nome naquele manifesto da reestruturação /renegociação da dívida. É esta afronta que esta “perigosa esquerdista” fez aos reis magos do centro da Europa, bem representados em Lisboa. Não tem o direito de refazer a direção das agulhas do seu pensamento governativo. Foi uma das responsáveis (mulher, ainda para mais). Por isso, deve passar o resto da vida a carpir o luto da governação como as viúvas das nossas aldeias rurais. São estes os políticos do século XXI que têm um lugar no FMI?
Agora, umas alfinetadas nos credores. É ou não verdade que as ditas agências de rating, as que fazem as notações, não são financiadas pelos clientes (Portugal é um deles), que lhes pagam para que digam mal deles? Somos ou não contribuintes regulares do FMI, do BCE e da União Europeia? Sendo assim, é justo pagar-se já com o corte do pescoço, se for necessário? Quanto ao crédito fácil, incentivo ao consumo, investimento público, não foram os agora denominados credores que o incentivaram, ganhando com isso? Então, devem esperar um pouco mais, não?! A senhora Dona Alemanha relevantou-se de duas grandes guerras, inteiramente por si provocadas, e reunificou-se com a ajuda de quem? Os países do sul viraram-lhe as costas? Não teve um perdão de dívida em termos percentuais bem elevados? Não teve tempo de carência, moratórias e facilidade de juros e apoios reconstrutivos que fartassem os outros de paciência, abnegação e solidariedade? Querem enganar quem?
Contudo, temo que venha aí um perdão de dívida, não que quem tenha mais responsabilidades não deva pagar mais (porque é que o país tem uma dívida soberana em que estão empacotadas dívidas de banca e de empresas?), mas porque, se um grande bolo da dívida foi comprado por entidades nacionais, em que pontifica o Instituto de Segurança Social (através de diversos fundos, mesmo o de reserva), é de perguntar quem iria ficar sem o capital, que – não esqueçamos – é de trabalho acumulado que se trata!

Não apareça aí nenhum realizador a fazer novo filme de “E tudo o vento levou”!

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