O título desta
perícopa ficaria mal aplicado se não fora aplicável à causa portuguesa. Ingovernabilidade
remete para a impossibilidade de governar porque o “objeto” da governação não o
permite, é insubordinado, é impaciente, não coopera, não se interessa pela
causa pública. Ora bem, essa não é a verdade, mas é dessa verdade que os
governantes se queixam: que não conseguem, que estão cansados, que as forças de
bloqueio não permitem as reformas e por aí adiante. E esse mundo lá vai
acreditando, por graça e obra dos nossos líderes (alguns de meia tigela), que
somos herdeiros e fiéis depositários dos lusitanos, que viviam no cabo do mundo
e que não se governavam nem se deixavam governar. Só que se esquecem de que não
comiam deitados como os romanos, mas sentados, como convém a pessoas!
Lembro-me de, em
1977, ter lido, num dos escaparates da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,
um relato piadético que referia que o povo português não se vergava às ordens
do governo, porque, na sua lucidez, pensava que elas não eram justas e eficazes,
pleno que lhe assistia a liberdade de não as acatar. Então, o Presidente da
República e o Primeiro-Ministro teriam decidido dissolver o povo. É óbvio que
tal narrativa não era verdadeira. Porém, revelava a tentação de quem governa
fazer migrar para os governados as inépcias de sua atividade de condução do
país.
As pessoas que
têm memória bem se recordam da tónica governativa até 1982: o país estava
ingovernável porque o Conselho da Revolução, apoiado em parecer técnico da
Comissão Constitucional, declarava a inconstitucionalidade das sucessivas propostas
de lei da delimitação do setor público e do setor privado. E o governo de apoio
parlamentar minoritário de Cavaco Silva (o primeiro) cantava a ladainha da impossibilidade
das reformas por causa da maioria que as inviabilizava. No entanto, a Assembleia
da República discutiu e aprovou a Lei de Bases do Sistema Educativo (lei n.º
46/86, de 14 de outubro), a qual com três alterações cirúrgicas se mantém em
vigor nos dias que hoje vivemos. E quem não se lembra de, nos tempos do Congresso Portugal e o Futuro, o então
chefe do governo bradar: “Deixem-nos trabalhar”?
Ora todos sabem
que: o povo aceitou sem se opor, embora fosse refilando, à descolonização em
África; aderiu sem pestanejar à CEE, à CE e à UE – gastando da melhor forma
possível sem grande fiscalização os fundos europeus – enquanto avançava a
destruição da agricultura, das pescas, da marinha comercial e da marinha de guerra;
seguiu pacatamente as indicações de investimento público ora dito faraónico, os
dez estádios de futebol, as cinco linhas do TGV (reduzidas a duas e a nenhuma),
o aeroporto da Ota, de Alcochete ou da Portela + um, as SCUT, os cinco submarinos
(reduzidos a dois), com contrapartidas nebulosas; e agarrou a onda de consumismo
e o crédito fácil. Entretanto, achara natural a miraculosa entrega de Macau à
China e acompanhou com desesperança, dor e alegria o processo de Timor Leste. E,
quando vieram os homens da troika de fora e os da de dentro, o povo, lá foi
gritando, gemendo e chorando, galgando “criminosamente” umas escadarias, mas
submeteu-se à “justa punição” de pagar com quase dois terços da sua bolsa (Não
acreditam? Façam as contas! Claro que estou a falar do povo-povo…) porque lhe
disseram que estava a viver acima das suas possibilidades e que era preciso
honrosamente pagar àqueles senhores que fazem o favor de nos emprestar dinheiro.
Ó Vítor Hugo, anda cá fazer uma nova versão d’ Os Miseráveis!
E, em julho do
ano transato, o senhor das finanças renunciou porque se tinha enganado e
reconheceu que não era capaz de levar a barca até Berlim. Porém, há dias,
comunicou de boca bem aberta que o responsável pelo monstro era o bisavô da Dra
Ferreira Leite. O senhor Dom Carlos, rei de Lisboa e arredores, encarregou-o de
formar governo e ele cumpriu, mas não aceitou uma proposta de concertação com
os “credores” externos (quer dizer, recusou-se a ser bom aluno) apresentada
pelo então senhor da fazenda nacional, que se demitiu. Ora, o rei de Lisboa e
arredores (do Minho a Timor), acabou por o exonerar ao fim de nove meses. Depois,
foi só cometer erros e mais erros sob a batuta do defunto até ontem… Nunca
pensei que uma orquestra tocasse em sucessão de anos e séculos (parecia-me que
os músicos deviam estar juntos): só a dos políticos!
Penso que a
venerável ministra das finanças de Durão Barroso cometeu os seus erros, mas não
tinha que levar com essa “do lobo e do cordeiro”. Os homens e mulheres da minha
terra, se estivessem presentes no fórum de discussão sobre estas matérias, teriam
aconselhado a senhora a mandar o mago Gaspar aonde ele não queria ir (à missa
todos os dias, por exemplo).
Só agora é que
estou a topar: ela é uma das setenta e quatro figuras públicas que apôs o seu
nome naquele manifesto da reestruturação /renegociação da dívida. É esta
afronta que esta “perigosa esquerdista” fez aos reis magos do centro da Europa,
bem representados em Lisboa. Não tem o direito de refazer a direção das agulhas
do seu pensamento governativo. Foi uma das responsáveis (mulher, ainda para mais).
Por isso, deve passar o resto da vida a carpir o luto da governação como as
viúvas das nossas aldeias rurais. São estes os políticos do século XXI que têm
um lugar no FMI?
Agora, umas
alfinetadas nos credores. É ou não verdade que as ditas agências de rating, as que fazem as notações, não
são financiadas pelos clientes (Portugal é um deles), que lhes pagam para que
digam mal deles? Somos ou não contribuintes regulares do FMI, do BCE e da União
Europeia? Sendo assim, é justo pagar-se já com o corte do pescoço, se for
necessário? Quanto ao crédito fácil, incentivo ao consumo, investimento público,
não foram os agora denominados credores que o incentivaram, ganhando com isso?
Então, devem esperar um pouco mais, não?! A senhora Dona Alemanha relevantou-se
de duas grandes guerras, inteiramente por si provocadas, e reunificou-se com a ajuda
de quem? Os países do sul viraram-lhe as costas? Não teve um perdão de dívida
em termos percentuais bem elevados? Não teve tempo de carência, moratórias e
facilidade de juros e apoios reconstrutivos que fartassem os outros de paciência,
abnegação e solidariedade? Querem enganar quem?
Contudo, temo
que venha aí um perdão de dívida, não que quem tenha mais responsabilidades não
deva pagar mais (porque é que o país tem uma dívida soberana em que estão empacotadas
dívidas de banca e de empresas?), mas porque, se um grande bolo da dívida foi
comprado por entidades nacionais, em que pontifica o Instituto de Segurança
Social (através de diversos fundos, mesmo o de reserva), é de perguntar quem
iria ficar sem o capital, que – não esqueçamos – é de trabalho acumulado que se
trata!
Não apareça aí
nenhum realizador a fazer novo filme de “E tudo o vento levou”!
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