segunda-feira, 31 de março de 2014

Em maré de eleições europeias: São Bento e a Europa

Justificação circunstancial
Carlos Aguiar Gomes, membro da mesa administrativa da Irmandade de São Bento da Porta Aberta, em entrevista à agência Ecclesia, a 28 de março, dá largas ao fascínio que São Bento, o histórico pai da Europa, exerce na atualidade e enaltece a importância daquele santuário situado na arquidiocese de Braga.
É sobretudo São Bento e a Europa – em maré de eleições europeias e no cinquentenário da proclamação de São Bento como padroeiro principal da Europa – que nos convocam para a reflexão que, a seguir, se passa ao papel.
O entrevistado justifica o fascínio da sua continuada relação com o plurissecular orago do santuário de que é um dos administradores: “É um fascínio por um homem que no silêncio foi capaz de criar um modelo que são os mosteiros, que ainda hoje se podem replicar fazendo as necessárias alterações à realidade do século XXI”.
Efetivamente, tanto quanto nos é dado observar, o mosteiro beneditino tende a situar-se em local inabitado, donde não é fácil sair e onde haja em potência forte hipótese de subsistência (com a captação de importantes elementos como a água, o sol, alguma vegetação…), desde que os novos íncolas se apliquem ao trabalho de arroteamento e agricultação das terras. A partir daí, há que definir a microcidade em que seja possível delimitar um espaço fautor de vida condigna em comum sob o dinamismo do ora et labora: aplicação à piedade individual e à oração litúrgica em articulação com o trabalho do campo e o labor cultural – em torno dos quais, sob a orientação do abade e exemplo dos frades, se mobilizam e ensinam todas as pessoas disponíveis e que necessitem de viver do trabalho. É a vida de ascese (e tendencialmente da mística) de uma comunidade, por princípio, autossuficiente, mas tão aberta à visita e hospedagem como recetiva à dádiva, para que possa também acorrer em favor dos pobres.
O resultado é descrito por Pio XII na encíclica Fulgens Radiatur, de 21 de março de 1947, XIV centenário da morte de São Bento:
[…] enquanto nessa escura e convulsionada época da história o cultivo da terra, o amor do trabalho e da arte, o estudo das ciências e das letras, religiosas e profanas, eram lançados, por uma espécie de desdém geral e sintomático, ao abandono, sai dos mosteiros beneditinos uma plêiade luminosa de agricultores, de artistas, de sábios, que nos salvaram incólumes os monumentos da velha literatura, conciliaram os velhos e os novos povos, em guerras constantes, reduzindo-os da barbárie renascente, das correrias, do saque, à moderação da moral humana e cristã, à abnegação do trabalho, à luz da verdade; reconstituíram, enfim, uma civilização enformada nos princípios do Evangelho.

No encalço das asserções do aludido entrevistado, resolvi deambular pela informação beneditina (OSB – Ordo Sancti Benedicti), de que passo a destacar alguns pontos, com base, sobretudo, em documentos pontifícios oportunamente referenciados.

São Bento
Paulo VI, na carta apostólica Pacis Nuntius, de 28 de outubro de 1964, em que o proclama padroeiro principal de toda a Europa, atribui ao Abade São Bento os títulos de “mensageiro da paz”, “construtor de união”, “mestre de civilização”, “arauto da religião de Cristo” e “fundador da vida monástica no Ocidente”.
E especifica o seu labor: Na queda do Império Romano, totalmente exausto, perante zonas inteiras caídas num mundo de trevas, privado de civilização e de valores espirituais, fez surgir a aurora de uma nova era. Principalmente, “ele e seus filhos levaram com a cruz, o livro e o arado o progresso cristão aos povos espalhados do Mediterrâneo à Escandinávia, da Irlanda à planura da Polónia”. Com aqueles instrumentos deram “consistência e desenvolvimento aos ordenamentos da vida pública e privada”. Ensinaram à humanidade “o primado do culto divino por meio da obra de Deus” (oração litúrgica e ritual), que constitui o liame da unidade espiritual – característica distintiva da denominada Idade Média – que levou a que “povos tão diferentes do ponto de vista linguístico, étnico e cultural conseguissem constituir-se em único povo de Deus” (cf Paulo VI, op cit).
A principal fonte dos acontecimentos da vida de São Bento são os Diálogos, de São Gregório Magno, redigidos por volta do ano de 593, que se baseou em narrativas de monges que conheceram pessoalmente o santo fundador.
Bento ou Benedetto de Núrsia, filho de um nobre romano, nasceu  em Núrsia (Úmbria, região da Itália), cerca do ano de 480 (o império Romano do Ocidente caíra em 476), e faleceu na Abadia do Monte Cassino, no dia 21 de março de 547. Tinha uma irmã gémea de nome Escolástica, que deu origem ao ramo feminino da Ordem e faleceu a 10 de fevereiro do mesmo ano que seu irmão, dia que passou a ser o da sua memória hagiológica na liturgia.
Já no século VIII se celebrava a festa de São Bento a 21 de março, o seu dies natalis (a morte era o dia do nascimento para a vida eterna), a qual passou para o 11 de julho, por ter sido nesse dia que os seus restos mortais foram transferidos para a Abadia de Saint-Benoît-sur-Loire (em cuja cripta se encontram), perto de Orléans e Germigny-des-Prés, no centro da França.
Feitos os primeiros estudos na sua terra natal (junto à cidade italiana de Spoleto), foi enviado para Roma, no ano de 500, a fim de estudar retórica e filosofia. Mas, dado que o clima libertino da cidade não lhe agradou, fugiu para Enfide (atual Affile) e dali para o Monte Subíaco, onde, com ajuda de um abade da região chamado Romano, se instalou numa gruta de difícil acesso, começando aí a praticar vida eremítica, em total dedicação à oração e à penitência, vencendo inúmeras vezes, das formas mais insólitas, as ciladas do príncipe das trevas. Com o tempo (cerca de três anos) e graças à divulgação do seu teor de vida por uns pastores que o encontraram, ficou famoso como santo entre a população das redondezas e foi convidado a dirigir uma comunidade monástica em Vicovaro. Porém, o seu regime de vida severo desagradou aos monges, que tentaram o seu envenenamento, que foi misteriosamente debelado: no momento em que Bento dava a bênção sobre o alimento, saiu da taça que continha o vinho envenenado uma serpente e a taça fez-se em pedaços. Com isto, resolve deixar a comunidade e retornar à vida solitária, a viver consigo mesmo: habitare secum.
São Bento voltou, então a Subíaco e, graças à visita que lhe iam fazendo a pedir conselhos espirituais, aí congregou, no ano de 503, um grupo de discípulos e promoveu a fundação de doze pequenos mosteiros.
No ano de 529, passou com os discípulos mais chegados para ao Monte Cassino, devido à inveja do sacerdote Florêncio. Conta-se mesmo o seguinte episódio: Florêncio envia de presente a Bento um pão envenenado, mas o monge dá o pão a um corvo que todos os dias vinha comer de suas mãos e ordena à ave que o leve para bem longe, onde não pudesse ser encontrado e comido por ninguém. Durante a saída de Bento e companheiros para o Monte Cassino, Florêncio, sentindo-se vitorioso, saiu ao terraço da casa para ver a partida do santo prófugo. Entretanto, o terraço ruiu e Florêncio morreu. Mauro, um dos discípulos do mestre monacal, foi pedir-lhe, com ar de satisfação, que retornasse, pois o inimigo havia morrido. Porém, Bento chorou a morte do inimigo e também a alegria do discípulo, a quem impôs uma penitência por se ter regozijado com a morte do sacerdote.
Pio XII, na sua aludida encíclica, chama a Bento “astro fulgurante da Igreja e da civilização” a resplandecer “na cerração da noite”. E entendendo que a Europa tem uma dívida para com o patriarca da Europa, que pode saldar pela reconstrução do património beneditino (devastado pela última guerra), recorda muitos dos seus ensinamentos de que se destaca o seguinte:
[…]o trabalho humano, longe de ser desprovido de dignidade, molesto e odioso, é, pelo contrário, uma fonte de alegria, de felicidade e de nobreza. Uma vida operosa, cheia, como se diz, na lide incessante do campo, da oficina ou do estudo, não deprime o espírito, nobilita-o; não escraviza, dá-nos, pelo contrário, a sensação forte da superioridade, do domínio sobre quanto nos rodeia e em que nos ocupamos. Também Jesus Cristo, adentro das paredes da casa paterna, se dignou trabalhar na oficina de seu pai, santificando, deste modo, com o seu divino suor, o esforço do homem. Advirtam, pois, todos os que, para ganhar o pão de cada dia, se entregam a faina rude da oficina ou da fábrica, ao labor da pena ou da cátedra, que é nobilíssima a sua condição, que lhes faculta os cómodos duma vida honrada e contribui para o bem-estar da comunidade civil.

Por sua vez, na catequese de 9 de abril de 2008 (audiência geral), dedicada ao “fundador do monaquismo ocidental”, e também padroeiro do meu (sic) pontificado”, Bento XVI refere: “De facto, a obra do Santo e, de modo particular, a sua Regra revelaram-se portadoras de um autêntico fermento espiritual, que mudou no decorrer dos séculos, muito além dos confins da sua Pátria e do seu tempo, o rosto da Europa, suscitando depois da queda da unidade política criada pelo império romano uma nova unidade espiritual e cultural, a da fé cristã partilhada pelos povos do continente”.

A Regra de São Bento
Regula Monasteriorum ou Regula Monachorum (Regula Benedicti ou RB) é composta por um prólogo e 73 capítulos. Provavelmente não terá sido integralmente composta por Bento, mas criada por si a partir de uma regra mais antiga, Regula Magistri, da pena de autor desconhecido, na mesma região, uns trinta anos antes da composição da regra em causa.
O espírito da RB resume-se em dois pontos: o lema da OSB (pax – “paz”), que nasceria séculos mais tarde, como resultado da agremiação de vários mosteiros que partilhavam a mesma regra; e ainda o tradicional imperativo ora et labora (“reza e trabalha”), súmula da vida que cada monge deve levar.
Dom Basilius Steidle propôs as seguintes divisões temáticas para a RB: prólogo; estrutura fundamental do mosteiro, capítulos 1-3; a arte espiritual, capítulos 4-7; oração comum, capítulos 8-20; organização interna do mosteiro, capítulos 21-52; o mosteiro e as suas relações com o mundo, capítulos 53-57; a renovação da comunidade monástica, capítulos 58-65; a porta do mosteiro e a clausura, capítulo 66; acréscimos e complementos, capítulos 67-72; e testemunho pessoal de São Bento sobre a regra, capítulo 73.
São Bento de Aniane retoma a RB no século IX, antes das invasões normandas. Estudou-a e codificou-a, ocasionando a sua expansão por toda a Europa carolíngia, ainda que adaptada diversas vezes, conforme os diversos costumes.
Posteriormente, através da Ordem de Cluny e da centralização dos mosteiros que utilizavam a RB, ela adquiriu enorme importância na vida religiosa europeia durante a Idade Média.
No século XI, surgiu a reforma cisterciense, que buscava recuperar o regime beneditino mais conforme à regra primitiva e reganhou a Europa para um novo impulso humanista e cristão.
Outras reformas (vg camaldulense, olivetana, silvestriana…) fizeram a sua leitura da RB, enfatizando cada uma alguns aspetos específicos, segundo o critério de cada reformador.
Apesar dos diferentes momentos históricos, em que a disciplina fraquejou, as perseguições amedrontaram e as agitações políticas condicionaram e em que a prática da RB e mesmo da população monástica sofreram uma certa decadência, os mosteiros beneditinos conseguiram manter, ao longo do tempo, um grande número de religiosos e religiosas. Atualmente, perto de 700 mosteiros masculinos e 900 mosteiros e casas religiosas femininas, espalhados pelos cinco continentes, seguem a RB. Adotam-na mesmo, além de católicos e ortodoxos, algumas comunidades das confissões luterana, anglicana e metodista.

A abadia do Monte Cassino
Situa-se no topo do monte homónimo, a 80 km a oeste de Nápoles, na Itália. Fundada por Bento de Núrsia no ano de 529, como se referiu já, é o berço da Ordem dos Beneditinos e serviu de retiro a soberanos e pontífices como o príncipe franco Carlomano, irmão de Pepino o Breve, o lombardo Rachis (com a família) e Gregório Magno. Contém imensas riquezas, entre as quais, a preciosa biblioteca juntamente com a galeria de preciosos quadros, colocada sob a proteção direta de Roma (Didier, abade de 1058 a 1087, faz trazer de Constantinopla diversos livros).
Diversas vezes em perigo devido a guerras e invasões, a abadia, foi saqueada e queimada pelos Lombardos do duque Zotton. Reconstruída só no início do século VIII, após um período de turbulências na Itália (devido sobretudo aos Lombardos), foi novamente destruída parcialmente e incendiada por piratas sarracenos (844); depois, em 1030, pelos Normandos que começaram a invadir a Itália meridional. Mais recentemente, no início de 1944, ela foi destruída pelos bombardeamentos dos “aliados” durante a batalha de Monte Cassino, sendo mais tarde reconstruída tal como era antes, no quadro da sugestão de Pio XII.
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E se esta informação/reflexão servisse de alguma valia para uma Europa apostada, não já (ao menos, no imediato) na destruição física de pessoas e povos, mas na degradação/aniquilação da sua dignidade económica e social, ou seja, da dignidade em plenitude da pessoa humana, em vez da via da beleza oferecida pela vida do ser humano (como conforto ético da pessoa em comunidade) e pelo seu ambiente material, cultural, estético e espiritual …

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