domingo, 23 de março de 2014

Duas grandes opções em 2014 sob o signo da conciliação

O ano corrente passará sob o signo de duas grandes iniciativas de âmbito supranacional, mas com implicações significativas a nível dos Estados, se a vontade política e a mobilização geral o determinarem: o AIAF 2014 e o Ano Europeu para a conciliação da vida profissional e vida familiar

AIAF 2014
Sob o lema “alimentar o mundo, cuidar do planeta”, a FAO, organismo da ONU para a agricultura e alimentação, tem a missão de pôr o mundo a refletir sobre a necessidade de articular a prestação dos bens alimentares a partir do desenvolvimento da agricultura e atividades dela decorrentes ou com ela concomitantes e a defesa das condições de vida no Planeta. Obviamente a reflexão tem de levar à atividade que implica mudança e otimização na linha da descoberta feita em reflexão. É assim que o AIAF 2014 – Ano Internacional da Agricultura Familiar – tem em vista aumentar a visibilidade da agricultura na sua dimensão familiar e dos pequenos agricultores.
A mobilização das atenções para esta modalidade da agricultura, em detrimento da grande agro-indústria, releva a necessidade de conciliar a importante missão dos agentes económicos e sociais na erradicação da fome e da pobreza e na provisão da segurança alimentar e nutricional com a da melhoria dos meios de subsistência, gestão dos recursos naturais e proteção do meio ambiente. É a obrigação de cuidar do presente acautelando o futuro, de promover o desenvolvimento sustentável a partir da defesa/valorização das zonas rurais. É a manutenção dos habitantes da Terra no quadro da promoção da boa ecologia, evitando a destruição selvagem dos solos, da floresta, das linhas de água, e do equilíbrio entre monte e vale, crosta rochosa e terreno agricultável.
 O objetivo do AIAF 2014 é, segundo a FAO, “reposicionar a agricultura familiar no centro das políticas agrícolas, ambientais e sociais nas agendas nacionais, identificando lacunas e oportunidades para promover uma mudança rumo a um desenvolvimento mais equitativo e equilibrado”. Para tanto, há que desencadear uma ampla e aprofundada discussão e uma ativa cooperação no âmbito nacional, regional e global para aumentar a tomada de consciência crítica e o entendimento dos reptos lançados aos pequenos agricultores e ajudar a identificar maneiras eficientes de os apoiar.
A principal via de concretização do desígnio exposto é o desenvolvimento das boas práticas de agricultura familiar e dos pequenos agricultores, abreviadamente designada por “agricultura familiar”. Esta modalidade de agricultura, que inclui todas as atividades agrícolas de base familiar e está ligada a diversas áreas do desenvolvimento rural, consiste num meio de organização das produções agrícola, florestal, pesqueira, pastoril e aquícola, geridas e operadas no quadro da família e predominantemente dependente de mão-de-obra familiar, tanto de mulheres como de homens. 
Tanto nos países desenvolvidos como nos considerados em desenvolvimento, a agricultura familiar é a forma predominante de agricultura no setor de produção de alimentos em termos de durabilidade, ao contrário da grande agricultura, que pode dar mui grandes resultados no imediato, mas conduz ao esgotamento rápido dos solos, ao desequilíbrio ecológico e a nefastas alterações climáticas.
À escala nacional, são fundamentais para o bom desenvolvimento da agricultura familiar fatores como os que, a seguir se indicam: as condições agro-ecológicas e as caraterísticas territoriais; o ambiente político; o acesso aos mercados; o acesso à terra e aos recursos naturais; o acesso à tecnologia e serviços de extensão; o acesso ao financiamento; a criação de condições demográficas, económicas e socioculturais; a disponibilidade de educação especializada; e sobretudo a definição de política públicas consentâneas com este desiderato.
A agricultura familiar tem um importante papel socioeconómico, ambiental e cultural no âmbito da segurança alimentar mundial, já que preserva os alimentos tradicionais, além de contribuir para uma alimentação balanceada, para a proteção da agro-biodiversidade e para o uso sustentável dos recursos naturais. É por isso que ela representa uma singular oportunidade para impulsionar as economias locais, sobretudo quando integrada em políticas específicas destinadas a promover a proteção social e o bem-estar das comunidades. 
O contributo da agricultura familiar para o bem-estar das famílias e das comunidades a nível local e mundial – pela capacidade que desencadeia de produção e pela sua capacidade de criação e manutenção de equilíbrios – leva-nos considerar outro espaço da necessidade de conciliação: o da vida profissional e da vida familiar.

Ano Europeu para a conciliação da vida profissional e vida familiar
Para assinalar os 20 anos do Ano Europeu da Família, o Parlamento Europeu designou 2014 como o Ano Europeu para a conciliação da vida profissional e vida familiar – uma designação tão longa como relevante é a sua importância.
Consensualmente a família é considerada como o núcleo da sociedade. Sendo assim, quanto mais saudável for, melhores pessoas formará e consequentemente melhor sociedade originará. É ela o espaço onde se aprende a ser, a estar, a viver e a servir numa linha de reciprocidade. No seio dela se começa o processo de consciencialização dos valores axiológicos inerentes à pessoa e à sociedade, sem os quais não subsistem a sociedade sadia nem a família robustecida; e a pessoa terá dificuldades acrescidas. Daí resulta, segundo o Padre Lino Maia, “o investimento e cuidado que a família deve merecer a todos os responsáveis pelas políticas públicas” (cf Voz Portucalense, de 12 de março). 
Desde os tempos da encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII que a doutrina social da Igreja ensina que é devida ao trabalhador a justa remuneração pelo seu trabalho (cuja inobservância configura um dos pecados que bradam ao céu, segundo a doutrina tradicional: não pagar o salário a quem trabalha). E a justiça desse salário implica a satisfação das necessidades familiares e da guarda de um pecúlio que obvie a situações imprevistas e à segurança de um futuro em que já não seja possível a prestação normal do trabalho.
Entretanto, o mundo mudou e trouxe avassaladoras e diversificadas transformações, de que se destaca a necessidade de cada um os membros do casal ter de trabalhar fora do lar – o que determinou que o tempo passasse a faltar para os filhos e para os membros da família mais debilitados pela doença ou pela idade. Além disso, os membros do casal, sobretudo a mulher, ficaram assolados pela enorme sobrecarga de trabalhos: em casa e no espaço profissional. Por seu turno, o sucessivo e clamoroso aumento do custo de vida – despesas com os bens alimentares, com a escolaridade (mesmo a dita gratuita traz encargos por vezes incomportáveis para a bolsa familiar), com a habitação e com a deslocação para o trabalho – levou à procura do complemento de emprego, o que acarretou maior obstáculo à dedicação aos assuntos da família.
Para obviar a estas crescentes e cada vez mais generalizadas dificuldades situacionais das famílias, foram identificados e propostos alguns meios, de que se destacam: a criação de serviços de acolhimento de crianças (destaque para creches, ATL, educação pré-escolar); a criação de serviços de prestação de cuidados a idosos (apoio domiciliário, centro de dia, clube de idosos, lar de terceira idade, unidade de cuidados continuados…); as licenças de parentalidade para pais e mães trabalhadores/as (gravidez de risco, parto, maternidade, paternidade, assistência na doença…); o incentivo à maior participação do pai na vida familiar; e a flexibilização da organização do trabalho.
Quem tem estado no terreno sabe quão difícil se torna tantas vezes a criação de uma unidade de acolhimento ou de prestação de cuidados, quer pelo seu custo económico e financeiro quer pela criação de dificuldades burocráticas e logísticas. E, apesar de as leis laborais geralmente contemplarem a maior parte das necessidades inerentes às licenças e à flexibilização do trabalho, em termos de planeamento, organização e funcionamento, muitos serviços do Estado e muitos empresários criam enormes dificuldades na concretização de tais desideratos (sobretudo através dos agentes sanduíche fracos perante os fortes e forte perante os fracos). E cada vez mais os salários e pensões emagrecem, as condições de trabalho se deterioram, o espectro da precariedade no emprego cresce, chegando o trabalhador a temer o despedimento ou a inatividade pelas mais diversas razões e formas.
Por isso, hoje muitas famílias sofrem. Sofrem a escassez e mesmo a ausência de recursos financeiros para a satisfação de necessidades básicas. Sentem-se inseguras e periclitantes pela instabilidade dos afetos, pela índole transitória das relações, pela indiferença larvada de tolerância, pelo desinvestimento, pela permissividade generalizada, pelo assalto à bolsa familiar, mas também pela violência doméstica, profissional e social em termos psicológicos, verbais e físicos. Entretanto, os governos propagandeiam paliativamente pequenos incentivos aos pobres!
Além disso, famílias há que se inserem fora dos cânones tradicionais, seja pela monoparentalidade seja pela vivência comum a prazo. Pelo que, como refere o Padre Lino Maia, se tenta “recriar o conceito de família para as fazer perseverar, tornando-o maximamente flexível e amplo para envolver uma disparidade de realidades humanas que acabam por evidenciar o processo mesmo de desagregação da família”.
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Pelo que este ano europeu dedicado à conciliação entre a vida profissional e a familiar poderá redundar num apoio mais eficaz às medidas de conciliação entre trabalho e família e permitirá às mulheres e aos homens, em todos os modelos familiares, terem maiores possibilidades de opção para equilibrar o emprego e a vida familiar em função das suas necessidades e preferências individuais, obviando aos problemas decorrentes dos atuais desafios provocados pelos fenómenos naturais, pelas alterações demográficas, pela crise económica e financeira, pelo desemprego, pela pobreza e pela exclusão social.
Porém, só com políticas públicas arrojadas e determinadas, sem medo de troikas e de Europas de promoção da natalidade, de apoio à família e ao emprego se pode fazer reverter o atual panorama de desolação onde esperamos que renasça a esperança, mesmo que seja das cinzas, sobretudo das cinzas lançadas aos crentes na inauguração da Quaresma.

Vem aí a Páscoa, a Páscoa das almas, mas também a Páscoa do trabalho, da terra, da família!

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