sexta-feira, 14 de março de 2014

Criação desnecessária de precedentes



Todos se recordam dos episódios compaginados pelas recentes duas maiores manifestações das forças de segurança pelas ruas da capital até à sede da Assembleia da República. Numa delas os manifestantes galgaram a escadaria perante a inação daqueles que deveriam urgir o cumprimento da legislação em vigor sobre a matéria, o que deu lugar a controverso debate, à solene promessa da tutela de que tal não se repetiria, à exoneração do diretor nacional da PSP e à sua promoção rumo a Paris.
Na ocasião, os comentadores badalavam com alguma razão a criação de um precedente: se estes puderam, porque não os outros manifestantes? Por outro lado, ficaram as forças da ordem com capacidade de reprimir manifestantes que pretendessem escalar a escadaria de acesso à Casa da Democracia? Evidentemente que a força lhes assiste, a dos meios, que não a da autoridade moral. Note-se que, dias depois, alguns espaços de serviços do Estado foram ocupados até que alguém de reconhecida autoridade viesse à conversa com os ocupantes!
A última das manifestações das forças de segurança – quiçá mais volumosa ainda – não logrou a escalada da escadaria como tal. Os manifestantes derrubaram as vaias de delimitação do espaço (convencional e tecnicamente, do perímetro de segurança) e ainda terão pisado um ou dois níveis. Porém, os guardiões acorreram de imediato. E o espetáculo do jogo mútuo do “empurra”, ora dos manifestantes ora dos guardiões do templo e do adro, rendeu horas de televisão, putativamente à espera de que acontecesse alguma coisa. Ora, criado o precedente, também quero que em manifestações em que eu participe os canais de televisão tenham os espectadores presos àquilo que possa acontecer até que nós, como os manifestantes polícias, brademos: “Não há nada, porque nós não queremos”!
Outro precedente que a manifestação policial criou tem a ver com a democrática solicitude da Presidenta da Assembleia da República, que veio à conversação com estes qualificados manifestantes. Porquê? As manifestações costumam ser contra o governo e não contra a Assembleia da República. Se lá desembocam, é tão simplesmente porque se trata do símbolo do debate nacional, a fonte da lei; e não porque de lá possam vir as soluções administrativas. Portanto, a atitude populista da solicitude da segunda figura do Estado constitui um precedente. Ou não terão todos os manifestantes direito à mercê de que Sua Excelência com eles venha conversar, instituindo-se assim um estatuto diferenciado de manifestantes: os de primeira categoria; e os restantes.
Por se tratar de precedentes, não posso deixar de referir aqueles que os populares programas da pública RTP oferecem à população. Limito-me aos que se relacionam com a vida escolar.
Enquanto o sistema educativo segue o regime de colocação dos professores nas escolas por concurso público, situa na escola as tarefas de avaliação, preconiza o estudo diário das diversas disciplinas, exige a presença dos alunos nas aulas e restantes atividades escolares; e confia estatutariamente ao docente a tarefa da seleção de conteúdos e métodos de ensino, o programa “Bem-vindos a Beirais”, à semelhança de algumas telenovelas, apresenta exemplos que contrariam estes itens. Os alunos pedem a continuidade da professora e ela decide ficar; a professora não vai à escola nos dias de avaliação intercalar (que é feita no âmbito do conselho de docentes – na educação pré-escolar e primeiro ciclo – ou do conselho de turma, nos outros níveis de ensino); os alunos, com a anuência geral, estudam só para os testes; o aluno falta consensualmente para ir passear com o pai ao estrangeiro; e os pais ensinam à professora os conteúdos a lecionar e o métodos a utilizar, a qual se deixa perturbar, a cada passo, por quem quer que seja que apareça na escola e atende o telefone diante dos alunos.
Por falar em telefone, andam os professores obrigados por lei a fazer cumprir aos alunos e pais/encarregados de educação o estatuto do aluno e ética escolar, tendo pela frente um sem-número de dificuldades; e, por sua vez, o concurso “quem quer se milionário” deu um contraexemplo num dos últimos dias. Estabelece o referido estatuto (vd lei n.º 51/2012, de 5 de setembro), no seu artigo 10.º (dos deveres do aluno), que o aluno fica obrigado a:
Não utilizar quaisquer equipamentos tecnológicos, designadamente, telemóveis, equipamentos, programas ou aplicações informáticas, nos locais onde decorram aulas ou outras atividades formativas ou reuniões de órgãos ou estruturas da escola em que participe, exceto quando a utilização de qualquer dos meios acima referidos esteja diretamente relacionada com as atividades a desenvolver e seja expressamente autorizada pelo professor ou pelo responsável pela direção ou supervisão dos trabalhos ou atividades em curso – alínea r);
Não captar sons ou imagens, designadamente, de atividades letivas e não letivas, sem autorização prévia dos professores, dos responsáveis pela direção da escola ou supervisão dos trabalhos ou atividades em curso, bem como, quando for o caso, de qualquer membro da comunidade escolar ou educativa cuja imagem possa, ainda que involuntariamente, ficar registada – alínea s).

O aludido contraexemplo consistiu em a concorrente professora de história da cultura e das artes, no âmbito da ajuda telefónica na resposta a uma das questões, ter utilizado o contributo de um seu aluno que estava em aula naquele momento. A professora candidamente declarou que estava tudo combinado com o aluno, com a professora da respetiva disciplina e com a direção da escola. E toda a turma foi assolada pelo telefonema da RTP, os alunos tiveram oportunidade de saudar em coro os telespectadores, a moderadora e a concorrente; e o aluno requisitado ouviu a leitura da questão e a ela respondeu em plena aula.
Concordo que a escola tem autonomia, a direção (aliás o diretor ou a diretora, já que, no novo ordenamento, o órgão de administração e gestão é unipessoal, mas apropria lei se presta a gerar a confusão) tem poder. Todavia, houve uma total falta de respeito pelo estatuto: o uso do telefone em aula é rigorosamente proibido. Pode argumentar-se que houve autorização prévia, mas a utilização daquele meio não estava relacionada com aquela aula (aula de matemática, pelos vistos).
Ora, que autoridade resta aos docentes junto de alunos que não saibam ou não queiram distinguir circunstâncias? Depois, trata-se de uma estação televisiva pública (na modalidade de escola paralela), que todos os contribuintes pagam e que deveria ser um parceiro da escola para fins e com metodologias decentes.

Ora, os precedentes não se devem criar. Há outras formas de resolver os problemas com os concursos e com os polícias. E Televisão pública e segunda figura do Estado devem ser sempre uma referência qualificada e qualificante para a República. 

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