Celebrado a 8 de março de cada ano, o Dia Internacional da Mulher merece
que, a seu respeito, se recolha alguma informação pertinente e se proceda à
conveniente reflexão.
Um pouco de História
Historicamente, a efeméride remonta
às famosas manifestações das mulheres russas por
melhores condições de vida e de trabalho, bem como contra a entrada da Rússia czaristo-imperialista na I Grande Guerra. Tais manifestações
marcam o alvor da revolução de 1917, que rapidamente alcandora o bolchevismo em
condutor exclusivo dos destinos na nova sociedade. Entretanto, a ideia de
celebrar um dia da mulher já havia surgido nos primórdios do século XX nos Estados Unidos e na Europa no
quadro da luta das mulheres por melhores condições de vida, pela dignificação do seu trabalho e pelo
direito de intervenção cívica e política através do voto – celebração que
perdurou, no Ocidente, até à década de 20 do século passado. Na União Soviética
estalinista, o Dia Internacional da Mulher tornou-se um dos valiosos
instrumentos de propaganda do regime.
Entretanto, o Ocidente esqueceu a
data por longo tempo, tendo-a recuperado somente na década de 60 por obra do
movimento feminista. Na atualidade, a celebração do Dia Internacional da Mulher perdeu parcialmente o sentido original,
adquirindo um caráter meramente comemorativo e comercial. Nessa data, os
empregadores, sem pretenderem obviamente evocar o espírito aguerrido das
operárias grevistas do 8 de março de 1917, costumam distribuir rosas vermelhas
ou pequenos mimos pelas suas colaboradoras e o comércio obtém um generoso pretexto
para realizar de outra forma o seu desígnio.
No entanto, há que reconhecer que as
instâncias internacionais não perderam a oportunidade de provocar a reflexão e
a otimização do estatuto feminil, o que levou a algumas mudanças em muitos dos
países. Assim, a ONU designou o ano de 1975 como o Ano Internacional da Mulher e, em dezembro de 1977 assumiu o Dia Internacional da Mulher como ocasião
de lembrar as conquistas sociais, políticas e económicas das mulheres.
Porém, não se pode esquecer a primeva
manifestação dos direitos da mulher. Em 1789, a Revolução Francesa proclama os
direitos do homem e do cidadão. A pari,
em 1791, Marie
Gouze (que adotou o nome de Olympe de Gouges para assinar os seus
panfletos e petições numa grande variedade de frentes, incluindo a luta pela
extirpação da escravatura), filha de um açougueiro do Sul da França, propôs à Assembleia
Nacional da França uma Declaração
de Direitos da Mulher e da Cidadã. Tal iniciativa acarretou-lhe
a morte pela guilhotina, depois de esta opositora de Robespierre ter sido
denunciada como uma mulher “desnaturada” e condenada como
contrarrevolucionária. Só em 1986 é que Benoîte Groult republicou esta
declaração, que passou a ser apontada como uma defesa brilhante e
radical em nome de demandas das mulheres e considerada uma eloquente peça da
proclamação autêntica dos direitos humanos universais. Atente-se no conteúdo do
seu preâmbulo:
Mães, filhas, irmãs, mulheres representantes da nação
reivindicam constituir-se em uma assembleia nacional. Considerando que a
ignorância, o menosprezo e a ofensa aos direitos da mulher são as únicas causas
das desgraças públicas e da corrupção no governo, resolvem expor, em uma
declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados da mulher.
Assim, que esta declaração possa lembrar sempre a todos os membros do corpo
social os seus direitos e os seus deveres; que, para gozar de confiança, ao ser
comparado com o fim de toda e qualquer instituição política, os atos de poder
de homens e de mulheres devem ser inteiramente respeitados; e, que, para serem
fundamentadas, doravante, em princípios simples e incontestáveis, as
reivindicações das cidadãs devem sempre respeitar a constituição, os bons
costumes e o bem-estar geral. Em
consequência, o sexo que é superior em beleza, como em coragem, em meio dos
sofrimentos maternais, reconhece e declara, em presença, e sob os auspícios do
Ser Supremo, os seguintes direitos da mulher e da cidadã.
O peso da tradição
Foi duradouro o percurso tradicional
do calvário feminino, iniciado quando as ordens
eclesiásticas, esquecendo a igualdade originária, recuperada em Cristo, como
ensina Paulo, fizeram o direcionamento espiritual de que a mulher era filha e
herdeira de Eva, a fonte do pecado original e instrumento do diabo, pois,
deixou-se enganar pela serpente e enganou o seu companheiro, fazendo-o perder o
paraíso, descobrindo e ensinando-lhe o deleite carnal. Nessa ótica, trata-se de
um ser inferior de disciplinar, inclusive à custa do espancamento.
Foi-lhe mesmo
proibido ocupar ou desempenhar cargos públicos por determinação das leis do
poder secular apoiada em argumentos depreciativos como os que referiam que as
mulheres eram frívolas por natureza, ardilosas, perspicazes, apegadas ao
material (avarentas) e de pouquíssima ou quase nenhuma inteligência. Já
Tertuliano, da patrística latina, defendia que as mulheres eram seres de ideias
curtas e cabelos compridos
As leis eclesiásticas
de forma abrangente, mas não menos diminuente, deixavam claro o motivo por que as
mulheres não podiam ocupar cargos públicos: o de não terem sido feitas para
esse tipo de serviço, mais sim, para as ocupações femininas e domésticas.
Sendo assim e
excluindo as chamadas por Deus à consagração na vida religiosa, o casamento era
o destino normal que as mulheres esperavam. Porém, era-lhes vedado falar de “amor”,
que era considerado tabu, a não ser o amor de Deus, dos irmãos e dos filhos. Os
casamentos aconteciam com ou sem amor, pois eram acordados entre as famílias; as
mulheres não tinham que amar os cônjuges, apenas tinham que se acostumar a
eles, ser companheiras, fiéis, amigas, excelentes donas de casa e mães. Por
outro lado, a mulher tinha de ser hábil em relação a conseguir um bom partido,
porque a sua vida, para que não sofresse tanto, dependia de um bom casamento e
de um bom homem (que até poderia ter os seus deslizes extramatrimoniais).
A nova posição da Igreja
Porém, eis que surge um homem com uma visão bem diferente,
José Maria Escrivá de Balaguer, que fala da missão da
mulher na Igreja e no mundo, referindo não ver qualquer razão para, ao falar do laicado – da sua vida
apostólica, de direitos e deveres, etc. – se fazer qualquer espécie de
distinção ou discriminação em relação à mulher. Estriba a sua posição no
ensinamento paulino de que todos os batizados – homens e mulheres – participam igualmente da comum
dignidade, liberdade e responsabilidade dos filhos de Deus: “não
há judeu, nem grego; não há servo, nem livre, não há homem, nem mulher” (Gl. 3, 27-28). Por consequência, devem-se reconhecer à mulher na Igreja – na
legislação, na vida interna e na ação apostólica – os mesmos direitos e deveres
que aos homens: direito ao apostolado, a fundar e a dirigir associações, a
manifestar responsavelmente a sua opinião em tudo o que se refira ao bem comum
da Igreja e da sociedade, etc. No entanto, embora sabendo que teoricamente não
é difícil admitir e considerar as claras razões teológicas que apoiam este
desiderato, reconhece a resistência da parte de algumas mentalidades e a
excecionalidade da inibição do acesso às ordens sagradas, ainda pressupostamente
de direito positivo divino. E dá como exemplo da resistência das mentalidades o
assombro e a crítica com que foi comentado o facto de o seu Opus
Dei ter procurado que adquirissem graus académicos em ciências
sagradas as mulheres que pertencem à sua secção feminina. Todavia, pensa que
tais resistências e reticências têm caindo pouco a pouco, porque, no fundo se
trata só de um problema de compreensão eclesiológica: reparar que a Igreja não
é formada só pelos clérigos e religiosos, mas que também os leigos – homens e mulheres – são Povo de Deus e
têm, por direito divino, missão e responsabilidade próprias.
Depois, veio o Concílio Vaticano II,
que revolucionou visão da doutrina sobre a Igreja, insistindo na sua dimensão
de povo de Deus, onde têm papel de relevo os leigos como base do corpo
eclesial, e na de esposa de Cristo, unida a Cristo da parte de todos os seus
elementos (vd Lumen Gentium). Por
outro lado, o decreto Apostolicam
Actuositatem, sobre o apostolado laical, mais tarde explanado na exortação
apostólica Evangelii Nuntiandi, de
Paulo VI, não faz qualquer discriminação entre homens e mulheres, no quadro da
missão da Igreja no mundo.
Os padres conciliares, por sua vez,
enviaram uma mensagem específica às mulheres, onde exaltam o seu ser e missão e
a importância do seu papel numa sociedade em crise, produzindo exigentes
enunciados como este: “mulheres, vós que sabeis
tornar a verdade doce, terna, acessível, empenhai-vos em fazer penetrar o
espírito deste Concílio nas instituições, nas escolas, nos lares, na vida de
cada dia”.
Por seu turno, João Paulo
II, escreveu, em 1988, a poderosa carta apostólica Mulieris Dignitatem, sobre a dignidade e a vocação da mulher,
reconhecendo, no seu n.º 30, que “a dignidade da mulher está intimamente ligada
com o amor que ela recebe pelo próprio facto da sua feminilidade e também com o amor que ela, por sua vez,
doa”. E,
em 1995, a propósito da IV Assembleia Mundial sobre a Mulher, a realizar-se em
Pequim, escreve uma carta “a cada mulher para refletir com ela sobre
os problemas e perspetivas da condição feminina no nosso tempo, detendo-me em
particular sobre o tema essencial da dignidade e dos direitos das mulheres, considerados à luz
da Palavra de Deus”.
Bento XVI, num pontificado
de média duração, revelou-se um papa muito atento às mulheres, dado que
proferiu diversas intervenções dedicadas às mulheres, destacando a
importância da dimensão feminina na Igreja e na sociedade. O destaque vai para
as declarações de 9 de fevereiro de 2008, no 20.º aniversário da publicação da
carta apostólica Mulieris Dignitatem,
de João Paulo II, em que o papa Bento condena “uma mentalidade machista que
ignora a novidade do cristianismo, o qual reconhece e proclama a igual
dignidade e responsabilidade da mulher em relação ao homem”.
Finalmente,
Francisco também contempla, no seu programa pontifical. o papel da mulher. Em
entrevista ao “La Civiltà Cattolica”, em 19 de setembro de 2013, entre outros
temas, também se faz presente o
tema da mulher e o Papa Francisco evidencia que “o desafio” é “refletir
sobre o lugar específico da mulher também justamente onde se exerce a
autoridade nos vários âmbitos da Igreja”. Já no regresso da
viagem ao Brasil confidenciara aos jornalistas: “Uma
Igreja sem as mulheres é como o Colégio Apostólico sem Maria. O papel das
mulheres na Igreja não é só a maternidade, a mãe de família, mas é mais forte:
é precisamente o ícone da Virgem Maria, de Nossa Senhora, aquela que ajuda a
Igreja a crescer”. E, das palavras que dirigiu aos participantes no seminário
sobre a carta apostólica Mulieris
Dignitatem, de João Paulo II, são de sublinhar as seguintes:
(…) Eu gostaria de ressaltar que a mulher tem uma sensibilidade
particular pelas «coisas de Deus», sobretudo para nos ajudar a compreender a
misericórdia, a ternura e o amor que Deus tem por nós. Gosto de pensar também
que a Igreja não é «o» Igreja, mas «a» Igreja. A Igreja é mulher, é mãe, e isto
é bonito. Deveis pensar e aprofundar isto. […] Também na Igreja é importante
perguntar-se: qual é a presença da mulher? Sofro — digo a verdade — quando vejo
na Igreja ou em determinadas organizações eclesiais que o papel de serviço —
que todos nós temos e devemos ter — da mulher diminui para uma função de ‘servidão’. […]
Quando vejo mulheres que desempenham tarefas de ‘servidão’,
não se entende qual é o papel que a mulher deve desempenhar. Qual é a presença
da mulher na Igreja? Pode ser valorizada em maior medida?
Voltando às origens
Depois deste arrazoado, talvez seja oportuno refletir sobre o ser
da mulher com recurso à pureza originária da Bíblia, no seguimento do
pensamento paulino acima referenciado e não tanto o que lhe é atribuído de
forma mais derrapante da carta aos Efésios, bastante mal entendida.
Segundo
a Bíblia, Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, à sua imagem e
semelhança os criou: varão e fêmea (Gn 1,27); e viu o que tinha feito e eis que
era muito bom (Gn 1,31). Outra narrativa dá conta de que a mulher foi feita a
partir de uma costela de Adão (cf Gn 2,22), que este reconheceu como “osso de
meus ossos e carne de minha carne” (Gn 2,23). Pode ver-se nestas duas
narrativas quaisquer motivos para discriminação? O Talmude, o livro da explicação bíblica veterotestamentária
esclarece que a criação da mulher a partir do lado do homem significa que ela é
a companheira, ou seja, está a seu lado, tal qual as costelas. O osso da
costela alude à igualdade entre homem e mulher (são da mesma natureza), dado
que não foi utilizado um osso de lugar inferior (um osso do pé, por exemplo), o
que lhe poderia conferir um estatuto de inferioridade, nem um osso de lugar superior
(da cabeça, por exemplo), o que lhe poderia conferir um estatuto de
superioridade, mas um osso do lado. Outra interpretação, em sintonia com a
primeira, lembra que a mulher é protetora da vida, dado que os ossos da costela
protegem o coração (donde e para onde circula o sangue) e os pulmões (lugar do
sopro vital).
O seu papel é referido na
Bíblia como portadora, tal como o homem, do sinete da divindade, a marca de
Deus; a esposa tem papel sempre importante, seja como amada e parceira, seja
como companheira dada por Deus ao marido (Gn 2,20-24; Pr 19,14; Ecl 9,9); do Monte Sinai, Deus ordenou
às crianças que honrem tanto a mãe como o pai (Ex 20,12). Não há qualquer
motivo para considerar Eva marginalizada ou relegada a qualquer status secundário relativamente a Adão, muito
pelo contrário, a Sagrada Escritura adorna a mulher com honras especiais (1 Pe
3,7); os maridos são instados a amar as suas mulheres de maneira sacrificada se
for necessário, até com custo de suas vidas (Ef 5,25-31); e a Bíblia celebra e
reconhece o valor das mulheres virtuosas (Pr 12,4; 31,10-31/percorrendo as
letras do alfabeto hebraico; 1 Cor
11,7-12).
– cf http://pt.wikipedia.org/wiki/Mulher; e
Nova Bíblia Sagrada dos Capuchinhos,
Difusora Bíblica, 1998.
E o padre Rómulo Cândido
de Souza, já por mim citado algumas vezes, aproximando, pela mão do Dr Samuel,
seu interlocutor, o nome de Javé (Haiáh
/ sopro, causa dos seres vivos – nome com que Deus Se revelou a Moisés na sarça
ardente) com o de Eva (Haváh / mãe dos seres vivos) compreende agora o quadro de
Eva abraçada a Deus na Capela Sistina. E clama que o movimento feminista se devia
sentir orgulhoso ao saber que o nome da primeira mulher é o próprio nome de
Deus. Foi a própria Bíblia que a “divinizou”.
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