Vem ao caso a
referência enunciada em epígrafe, dadas as circunstâncias que envolveram o recente
debate quinzenal do parlamento com Sua Excelência o senhor Primeiro-Ministro. Nada
do que se passou era necessário, desde o “insulto” ao primeiro governante à
tomada de posição de Sua Excelência a senhora Presidenta, passando pelo amuo
tático do interpelado.
Tudo começou quando
Sua Excelência a senhora deputada Catarina Martins, no seu ardor percuciente, vociferou
que a palavra de Sua Excelência o senhor Primeiro- Ministro não valia nada, mas
inconsequentemente continuava a fazer perguntas, a pedir esclarecimentos ao
chefe do governo. Este, por seu turno, respondeu à letra, argumentando que, se
a sua palavra nada valia na ótica da senhora deputada, era expectável que ele
se dispensasse de responder. Porém, a interpelante não desarma e exige a
resposta parlamentar, ao que interpelado contrapõe com a exigência do respeito
pelo seu direito à indignação. A deputada não se deu por vencida e apresentou
uma interpelação à Mesa sobre a estranha posição do Primeiro-Ministro, que
apelidou de birra, ao que a presidência respondeu que era difícil interpretar a
situação sobre os termos da dinâmica do debate e, por conseguinte, dispensou-se
de tomar uma posição clara. Foi quando protestaram perante a Mesa correligionários
de Catarina Mendes, defendendo que o debate parlamentar que consista em
perguntas ao governo postula as respetivas respostas. Aí, a Senhora Presidenta,
muito embora achando que a natureza da resposta não é definível pela Mesa,
ofereceu ao Primeiro-Ministro e aos deputados a oportunidade regimental de ele responder,
aventando a ideia de que o silêncio também pode ser um ato político. Perante o
silêncio primoministerial, Sua Excelência quis saber se a sua interpretação
estava correta, ao que o chefe do governo voltando-se, mas permanecendo na
posição incurial de sentado, sinalizou afirmativamente.
Perante o ocorrido,
senti alguma nostalgia do e pelo funcionamento da Assembleia da República em
tempos idos. O ardor do debate parlamentar sempre azou excessos de linguagem da
parte de deputados e da parte de governantes, por vezes, a raiar a grosseria.
Entretanto, os sucessivos presidentes, cuja função é a condução dos trabalhos,
sem intervenção nos termos do debate, sempre souberam resolver as situações de incidente.
Para tanto, neste caso, bastaria uma palavra moderadora emanada de quem estava
a presidir ao plenário no momento (o presidente tem o direito de a todo o momento
se fazer representar na presidência da Mesa), por exemplo, no sentido de
advertir a deputada chamando-a à atenção para o caráter excessivo da linguagem utilizada,
não configurável com o léxico parlamentar usual, e solicitando-lhe a renúncia à
suposta índole insultuosa da sua intervenção, podendo mesmo, como o fizeram
outrora outros líderes, sugerir um exemplo de aceitável intervenção respeitante
àquele detalhe. Lembro-me de que, no encerramento de um determinado debate, a
cargo do Ministro do Estado e dos Negócios Estrangeiros, este governante apodou
de ignorante a líder do grupo parlamentar do então maior partido da oposição,
ao que ela reagiu em conformidade. Foi quando o então Presidente da Assembleia
da República, no uso do seu poder moderador, interveio esclarecendo que chamar
ignorante a um deputado não era tolerável no léxico parlamentar, nem era
necessário. Acrescentou, mesmo, que, quando muito, poderia ter referido que a
senhora deputada revelara alguma ignorância naquela matéria. E suponho que a
atual Presidenta possui suficiente capacidade de intervenção moderadora, de que
pode dispor se lhe aprouver. Não foi
assistente de Direito Público e em Direito
Constitucional e Direitos Fundamentais? Não foi juíza conselheira
do Tribunal Constitucional, não presidiu já à primeira Comissão? Não foi
eurodeputada? Não teve questões mais intrincadas apara resolver? Não tem
pretendido por várias vezes exercer a magistratura de influência?
E, em relação ao
Primeiro-Ministro, a Presidência deveria efetivamente reconhecer o direito à
indignação invocado, mas sobretudo apostar na sobreposição do dever de
resposta, uma vez que, se é verdade que o governo não vai ao Parlamento para ser
mimoseado com insultos nem para ser indagado como se de um tribunal se tratasse,
também é verdade que é sua obrigação oferecer sempre a resposta, mesmo que seja
somente a resposta possível. É certo que o silêncio é também um ato político,
mas não um plausível instrumento de debate, maxime no debate parlamentar, em que
a política é feita da “palavra” e não da “não palavra”. Também por aqui passa a
cidadania!
Porém, ante
conflito de dois direitos, tem de haver quem tenha capacidade de decidir qual
deles se sobrepõe. E penso que o direito e o dever de resposta se sobrepõem a
um alegado direito à indignação. Por outro
lado, como acontece com quem vai à guerra, quem entra na política vai
para dar e levar.
Já agora aproveito
a oportunidade de estar com a mão na massa para tecer mais alguns comentários.
Assim, quanto ao
direito à indignação, também eu tenho um reparo a opor. O reconhecimento desse
direito foi uma tirada discursiva circunstancial, para não dizer oportunista,
do então Presidente Soares numa sua intervenção – salvo erro – na abertura de
um dos anos judiciais. Ora, a questão, em minha opinião (que vale o que vale,
mas não deixa de provir de reflexão legítima), deve colocar-se ao contrário, ou
seja, não pode um cidadão permitir que o indignem, no sentido de lhe tirarem ou
diminuírem a dignidade, nem ele pode enveredar por caminhos que lhe tragam
indignidade ou praticar quaisquer atos que lha tirem ou degradem. Em vez do
direito à indignação, é necessário pugnar pelo dever de a contrariar ou de a
anular e evitar que surjam as condições para que ela se crie ou se alimente. Se
“indignar-se” significar reagir contra os atropelos à dignidade humana ou às
liberdades – ou à falta de condições de vida, de trabalho, de saúde, de educação,
de segurança social, de integridade física e de integridade moral – isso compaginará,
antes, o direito à resistência ou mesmo à insubordinação, protegido constitucionalmente.
Quanto ao papel
do Presidente da Assembleia da República, nas sessões plenárias compete-lhe,
por si ou por um do seus vice-presidentes, presidir à mesa e conduzir os trabalhos,
o que implica abrir e encerrar a sessão, bem como dar ordem de suspensão dos
trabalhos, quando entender que há motivo para tal, e determinar a retomada dos mesmos;
fazer ler a ordem do dia; moderar o debate sem nele intervir; dar a palavra e
cortar a palavra, controlando o tempo, estabelecido nos termos regimentais; admitir
requerimentos e interpelações à mesa; dirimir conflitos e resolver incidentes;
remeter recursos sobre as suas decisões para o Plenário ou para a conferência de
líderes parlamentares, junto dos quais e com os quais se estabelece a agenda;
propor as votações, proclamar os resultados e indicar o destino dos documentos
aprovados; e prover à manutenção da ordem das galerias, mandando proceder à evacuação
das mesmas, se outra forma não for encontrada para a manutenção da compostura
dos seus ocupantes.
E, se o Presidente
entender que, por motivos pessoais e/ou partidários, deve intervir no debate,
dispõe de uma possibilidade, já que não perde a sua condição de deputado:
fazer-se substituir na Mesa por um dos vice-presidentes, e assumir o seu lugar
na sua bancada e seguir as indicações do líder de bancada. Isto o fez, por
exemplo, Fernando Amaral.
Quanto ao mais,
não percebo muito bem por que razão, ao mandar proceder à evacuação das
galerias, se revela tanto e tão grande nervosismo e se fornecem explicações
desajustadas, como “este é o vosso parlamento”, “os deputados não podem decidir
sobre pressão” e outras que não passam de verdadeiras tautologias. E custa-me a
compreender como a Presidenta não consegue dirimir interpretativamente um
conflito incidental em debate parlamentar e conseguiu adrede impor a sua
interpretação em determinadas ocasiões, como no processo de eleição dos juízes
para o Tribunal Constitucional.
Enfim, vicissitudes
parlamentares de boa e fácil solução. “Não havia necessidade…”.
Guardo a afirmação
de Barbosa de Melo, ao confessar, em novembro de 1993, que o Parlamento era a
representação do país, que também tinha, como o país, as suas virtudes e os
seus defeitos, mas que era amoroso também nos seus defeitos. Mas, cá por mim,
eu dispenso esses amores.
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