sexta-feira, 28 de março de 2014

Francisco e Obama

Refere a agência Ecclesia que o Papa Francisco recebeu, a 27 de março, pela primeira vez no Vaticano, em audiência privada, que durou mais de 50 minutos, o presidente dos Estados Unidos da América, Barack Hussein Obama. Após a receção protocolar por D. Georg Gaenswein, prefeito da Casa Pontifícia, Barack Obama seguiu para a Biblioteca do Papa, onde, agradecido a Francisco, o líder dos EUA disse ser maravilhoso e constituir uma grande honra encontrar-se com ele, confessando-se um profundo admirador do pontífice argentino.  
Os dois líderes foram acompanhados por intérpretes, durante a conversa privada, que foi registada, na parte inicial, por fotógrafos acreditados junto da Santa Sé e pelo Centro Televisivo do Vaticano.
A seguir ao encontro com Sua Santidade, o Presidente Obama avistou-se com o Secretário de Estado do Vaticano, o cardeal Pietro Parolin, que se encontrava acompanhado do arcebispo Dominique Mamberti, Secretário para as Relações com os Estados.
A delegação de Obama incluiu John Kerry, Secretário de Estado dos EUA, e a conselheira para a segurança interna, Susan Rice. Kerry, por sua vez, cumprimentou o Papa como “católico” e também se se confessou um “grande admirador” do Bispo de Roma pelo que ele tem feito “pela Igreja” e por “todo o mundo”.
O encontro entre os dois chefes de Estado concluiu-se com a tradicional troca de presentes: Francisco ofereceu uma cópia da sua exortação apostólica ‘Evangelii Gaudium’ (A Alegria do Evangelho) e o presidente norte-americano retribuiu com a oferta de sementes do jardim da Casa Branca, numa caixa feita com madeira da primeira catedral dos EUA, em Baltimore.
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Tanto a Sala de Imprensa da Santa Sé como os serviços de informação da Casa Branca emitiram comunicados sobre o evento.
O serviço de informação do Vaticano refere que “durante as conversações, que decorreram numa atmosfera de cordialidade, se trocaram impressões sobre alguns temas atinentes à atualidade internacional e se formulou o desejo de que nas zonas de conflito se respeitem o direito humanitário e o direito internacional e se alcance uma solução negociada entre as partes em confronto”.
Já no referente ao “contexto das relações bilaterais e da colaboração entre a Igreja e os Estados” – refere o predito comunicado – “foram abordadas questões relevantes para a Igreja no país, tais como o exercício dos direitos à liberdade religiosa, à vida e à objeção de consciência, e a reforma em matéria de emigração”.
Por último, a nota oficial salienta que “se exprimiu o compromisso comum para a erradicação do tráfico de seres humanos no mundo”.
– (cf http://press.vatican.va/content/salastampa/pt/bollettino/pubblico/2014/03/27/0216/00478.html)
Já a Casa Branca destaca o facto de ser esta a primeira vez que o Presidente se encontra com o Papa Francisco. Porém, insere o encontro, que decorreu em clima de franca e cordial discussão, no âmbito do périplo presidencial pela Europa e pela Arábia Saudita, de que faz parte também a receção no Quirinal por parte do seu inquilino, o Presidente Giorgio Napolitano, no quadro das relações bilaterais entre os Estados Unidos e a Itália. De tal receção consta um almoço de trabalho, seguido de uma reunião com o Primeiro-Ministro Matteo Renzi na Villa Madama. Integra ainda a agenda presidencial norte-americana uma vista ao Coliseu, o maior anfiteatro do Império Romano, que Obama considera notável e inesquecível.
Além disso, o Presidente recebeu na embaixada dos Estados Unidos em Roma os funcionários e famílias dos Estados Unidos que representam o país em Itália, na Santa Sé e nas agências das Nações Unidas em Roma.
Quanto ao conteúdo do diálogo com o Papa, o Presidente americano dá-lhe o devido relevo em conferência de imprensa, transcrito no site da Casa Branca. Obama, ao contrário da nota Vaticana, fala na primeira pessoa do singular e afirma que a maior parte do tempo da conversação entre os dois interlocutores se centrou em “duas preocupações centrais” do Papa: a pobreza (the issues of poor), com os problemas afins – da marginalização, da falta de oportunidades e da situação de crescente desigualdade –; e os conflitos no mundo, com a situação alargada de uma paz ilusória. Mas o líder norte-americano não deixa de salientar a “empatia” que é visível na forma de estar e de se relacionar de Francisco e a crença no estabelecimento e manutenção de laços de fraternidade entre as pessoas e sociedades, inspirada no ser cristão.
(cf http://www.whitehouse.gov/blog/2014/03/27/day-4-president-travels-rome-meets-pope)
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Adicionalmente, sabe-se que o Presidente Barack Obama convidou o papa Francisco para visitar os Estados Unidos, durante o histórico encontro entre os dois líderes no Vaticano. “Eu convidei-o e animei-o a visitar os Estados Unidos e disse que as pessoas ficarão encantadas em poder vê-lo” – comentou durante a conferência de imprensa conjunta com o primeiro-ministro italiano Matteo Renzi, em Roma – ao que o inquilino oficial do Palácio Apostólico teria respondido em castelhano: “Porque não?”.
Esta foi a 28.ª vez – informa o Vaticano – que um presidente dos Estados Unidos se encontrou com o Papa e Obama é o 12.º líder dos EUA a fazer uma visita oficial ao Vaticano, onde já tinha estado em julho de 2009, em conversações com Bento XVI.
O primeiro foi Woodrow Wilson, que lançou a ideia da Sociedade das Nações e que foi recebido pelo Papa Bento XV, a 4 de janeiro de 1919, depois do fim da Primeira Guerra Mundial. 
A audiência seguinte a um Chefe da Casa Branca aconteceu 40 anos depois, sob o pontificado de João XXIII, que recebeu o Presidente Eisenhower a 6 de dezembro de 1959. Seguiu-se a audiência de Paulo VI a John Kennedy, primeiro Presidente católico dos Estados Unidos, a 2 de julho de 1963. O Papa Montini viria a receber sucessivamente no Vaticano outros três Presidentes – Lyndon Johnson (que tinha já encontrado em 1965, a quando da sua visita à ONU), a 23 de dezembro de 1967; Richard Nixon, duas vezes, em 2 de março de 1969 e a 29 de setembro de 1970; e, por fim, Gerald Ford, a 2 de junho de 1975.
Numerosas foram as audiências de João Paulo II aos Presidentes americanos durante o seu longo pontificado. A primeira foi a Jimmy Carter, recebido a 21 de junho de 1980, depois do encontro na Casa Branca em 1979. Duas foram as visitas de Ronald Reagan, sob cuja presidência a Santa Sé e os Estados Unidos estabeleceram relações diplomáticas ao mais alto nível, a 10 de junho de 1984 – a 7 de junho de 1982 e a 6 de junho de 1987. Seguiram-se as duas audiências a Jorge Bush Sénior, a 27 de maio de 1989 e a 8 de novembro de 1991, e uma a Bill Clinton, a 2 de junho de 1994. 
George Bush Júnior foi recebido pelo Papa Wojtyla três vezes: a 23 de julho de 2001 (em Castel Gandolfo), a 28 de maio de 2002 e a 4 de junho de 2004, quando entregou ao Pontífice a Medalha Presidencial da Liberdade. Fez duas visitas ao Vaticano sob o pontificado de Bento XVI: a 9 de junho de 2007; e a 13 de junho de 2008, depois do encontro de 15 e 16 de abril em Washington, no início da visita pastoral do Papa aos Estados Unidos. 
Esta visita de Obama, que recebera, na sua primeira visita em 2009, como presente do Papa Bento XVI, a “Dignitatis Personae”, instrução da Congregação para a Doutrina da Fé sobre algumas questões de Bioética”, enquadra-se numa complexa fase das relações da atual Administração da Casa Branca com a Igreja dos Estados Unidos marcada, de modo particular, pela controvérsia sobre a aplicação da reforma sanitária (The Patient Protection and Afordable Care Act), a resolver localmente (embora sob a égide vaticana), na parte relativa às regras atinentes à obrigação de cobertura sanitária da interrupção voluntária da gravidez e dos meios anticoncecionais e a outras questões no epicentro do debate público no país, como a legalização dos matrimónios homossexuais. 
(http://pt.radiovaticana.va/news/2014/03/26/presidente_barak_obama_recebido_esta_manh%C3%A3_em_audi%C3%AAncia_pelo_papa_no/por-785158)
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Perante a informação acabada de expor, ocorre-me discorrer um pouco em jeito de reflexão. Apesar do diminuto poder temporal do Papa, os Chefes de Estado visitam-no. Quais serão as verdadeiras motivações? Os líderes de países católicos poderiam invocar o dever de satisfação dos interesses dos seus governados; os de países com outras religiões cristãs poderiam aduzir o acompanhamento da questão ecuménica; os de outras religiões e culturas poderiam sustentar a sua postura no diálogo das culturas e permeabilidade dos fatores civilizacionais.
Entretanto, afigura-se-me haver outro tipo de razões. Os interesses, já que passam por Itália e, em especial pela cidade de Roma e arredores, inúmeros milhares de pessoas (a coberto do turismo, negócios, investigação científica e histórica, santuários, situação peninsular e marítima, pronto de cruzamento de movimentações, tradição multissecular…), implicam o bom relacionamento entre Estados e o Vaticano, embora minúsculo em termos territoriais, é um Estado soberano, grande em poder formal, em património histórico-artístico-cultural e em prestígio internacional.
Por outro lado, a lição da democracia ensina que todas as entidades que ocupam lugar de relevo internacional têm direito à palavra (e quiçá o dever da palavra) nos competentes areópagos internacionais. Depois, além de ser notória a presença institucional (maioritária ou não) e ativa (nomeadamente ao nível da ação social e na ligação às organizações populares de base) em todo o mundo, é consensual o papel desempenhado pela Igreja Católica em prol da paz, da luta pela erradicação da miséria e da salvaguarda dos direitos fundamentais.
Se a voz da Igreja é incómoda tantas vezes, nem por isso deixa de ser escutada por inúmeros setores da população mundial, enquanto representante de tendência de pensamento e pulsação, referencial de acolhimento, espaço de esperança, vez e voz dos rejeitados ou postos de parte, testemunha atenta dos dramas e tragédias por que passa a humanidade. Por isso, os poderes sentem (sincera ou hipocritamente) que é temerário não a ouvirem. E também, porque, na dirimição de conflitualidades, torna-se útil a intervenção de entidade que não tenha interesse imediato em nenhuma das soluções de parte.
No caso Obama/Francisco, quem se der ao cuidado de analisar a versão romana e a americana, além da divergência do discurso gramatical, já apontada, e da convergência de alguns conteúdos genéricos (cordialidade, franqueza…), encontrará diferenças curiosas: o Vaticano, para lá da necessidade do respeito pelo direito humanitário e pelo direito internacional nas zonas de conflito e da necessidade de alcançar uma solução negociada entre as partes em confronto, sublinha o respeito pelo exercício dos direitos à liberdade religiosa, à vida e à objeção de consciência, e a necessidade da reforma em matéria de emigração; Obama, por seu turno, salienta que a maior parte do tempo foi dedicada a “duas preocupações centrais” do Papa (a pobreza, com os problemas afins da marginalização, da falta de oportunidades e da situação de crescente desigualdade; e os conflitos no mundo, com a situação alargada de uma paz ilusória). E o resto do tempo, trataram de quê? Onde ficaram os direitos? Será a hipocrisia da astúcia americana?

Mas o Vaticano não foi menos astuto. A nota vaticana não releva em espécie os conteúdos de Obama. Para quê, se eles são consensuais? Por outro lado, o líder americano olvida taticamente direitos fundamentais ou negociação entre partes nas zonas de conflito (prefere sanções económicas!) e parece ter de justificar-se: foi ao Papa, mas num périplo pela Europa e Arábia Saudita, com protocolo e trabalho com o Estado italiano, com os interesses americanos em Itália, Santa Sé e ONU. Papa, graças a Deus, esse não precisa de se justificar porque recebe Obama… é a religião política. É a política, senhoras e senhores, com religião! 

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