Refere a agência Ecclesia que o Papa Francisco recebeu, a 27 de março, pela primeira
vez no Vaticano, em audiência privada, que durou mais de 50 minutos, o
presidente dos Estados Unidos da América, Barack Hussein Obama. Após a receção protocolar
por D. Georg Gaenswein, prefeito da Casa Pontifícia, Barack Obama seguiu para a
Biblioteca do Papa, onde, agradecido a Francisco, o líder dos EUA disse ser
maravilhoso e constituir uma grande honra encontrar-se com ele, confessando-se
um profundo admirador do pontífice argentino.
Os dois líderes foram acompanhados
por intérpretes, durante a conversa privada, que foi registada, na parte
inicial, por fotógrafos acreditados junto da Santa Sé e pelo Centro Televisivo
do Vaticano.
A seguir ao encontro com Sua
Santidade, o Presidente Obama avistou-se com o Secretário de Estado do
Vaticano, o cardeal Pietro Parolin, que se encontrava acompanhado do arcebispo
Dominique Mamberti, Secretário para as Relações com os Estados.
A delegação de Obama incluiu John
Kerry, Secretário de Estado dos EUA, e a conselheira para a segurança interna,
Susan Rice. Kerry, por sua vez, cumprimentou o Papa como “católico” e também se
se confessou um “grande admirador” do Bispo de Roma pelo que ele tem feito
“pela Igreja” e por “todo o mundo”.
O encontro entre os dois chefes de
Estado concluiu-se com a tradicional troca de presentes: Francisco ofereceu uma
cópia da sua exortação apostólica ‘Evangelii Gaudium’ (A Alegria do Evangelho)
e o presidente norte-americano retribuiu com a oferta de sementes do jardim da
Casa Branca, numa caixa feita com madeira da primeira catedral dos EUA, em
Baltimore.
***
Tanto a Sala de Imprensa da Santa Sé
como os serviços de informação da Casa Branca emitiram comunicados sobre o
evento.
O serviço de informação do Vaticano
refere que “durante as conversações, que decorreram numa atmosfera de
cordialidade, se trocaram impressões sobre alguns temas atinentes à atualidade
internacional e se formulou o desejo de que nas zonas de conflito se respeitem
o direito humanitário e o direito internacional e se alcance uma solução
negociada entre as partes em confronto”.
Já no referente ao “contexto das
relações bilaterais e da colaboração entre a Igreja e os Estados” – refere o predito
comunicado – “foram abordadas questões relevantes para a Igreja no país, tais
como o exercício dos direitos à liberdade religiosa, à vida e à objeção de
consciência, e a reforma em matéria de emigração”.
Por último, a nota
oficial salienta que “se exprimiu o compromisso comum para a erradicação do
tráfico de seres humanos no mundo”.
– (cf
http://press.vatican.va/content/salastampa/pt/bollettino/pubblico/2014/03/27/0216/00478.html)
Já a Casa Branca destaca
o facto de ser esta a primeira vez que o Presidente se encontra com o Papa
Francisco. Porém, insere o encontro, que decorreu em clima de franca e cordial
discussão, no âmbito do périplo presidencial pela Europa e pela Arábia Saudita,
de que faz parte também a receção no Quirinal por parte do seu inquilino, o
Presidente Giorgio Napolitano, no quadro das relações bilaterais entre os
Estados Unidos e a Itália. De tal receção consta um almoço de trabalho, seguido
de uma reunião com o Primeiro-Ministro Matteo Renzi na Villa Madama. Integra ainda
a agenda presidencial norte-americana uma vista ao Coliseu, o maior anfiteatro
do Império Romano, que Obama considera notável e inesquecível.
Além disso, o Presidente
recebeu na embaixada dos Estados Unidos em Roma os funcionários e famílias dos
Estados Unidos que representam o país em Itália, na Santa Sé e nas agências das
Nações Unidas em Roma.
Quanto ao conteúdo do diálogo com o
Papa, o Presidente americano dá-lhe o devido relevo em conferência de imprensa,
transcrito no site da Casa Branca. Obama, ao contrário da nota Vaticana, fala
na primeira pessoa do singular e afirma que a maior parte do tempo da
conversação entre os dois interlocutores se centrou em “duas preocupações
centrais” do Papa: a pobreza (the issues of poor), com os problemas afins – da
marginalização, da falta de oportunidades e da situação de crescente
desigualdade –; e os conflitos no mundo, com a situação alargada de uma paz
ilusória. Mas o líder norte-americano não deixa de salientar a “empatia” que é
visível na forma de estar e de se relacionar de Francisco e a crença no
estabelecimento e manutenção de laços de fraternidade entre as pessoas e sociedades,
inspirada no ser cristão.
– (cf
http://www.whitehouse.gov/blog/2014/03/27/day-4-president-travels-rome-meets-pope)
***
Adicionalmente, sabe-se que o Presidente
Barack Obama convidou o papa Francisco para visitar os Estados Unidos, durante
o histórico encontro entre os dois líderes no Vaticano. “Eu convidei-o e animei-o
a visitar os Estados Unidos e disse que as pessoas ficarão encantadas em poder
vê-lo” – comentou durante a conferência de imprensa conjunta com o
primeiro-ministro italiano Matteo Renzi, em Roma – ao que o inquilino oficial
do Palácio Apostólico teria respondido em castelhano: “Porque não?”.
Esta foi a 28.ª vez – informa o
Vaticano – que um presidente dos Estados Unidos se encontrou com o Papa e Obama
é o 12.º líder dos EUA a fazer uma visita oficial ao Vaticano, onde já tinha
estado em julho de 2009, em conversações com Bento XVI.
O primeiro foi Woodrow Wilson, que
lançou a ideia da Sociedade das Nações
e que foi recebido pelo Papa Bento XV, a 4 de janeiro de 1919, depois do fim da
Primeira Guerra Mundial.
A audiência seguinte a um Chefe da
Casa Branca aconteceu 40 anos depois, sob o pontificado de João XXIII, que
recebeu o Presidente Eisenhower a 6 de dezembro de 1959. Seguiu-se a audiência
de Paulo VI a John Kennedy, primeiro Presidente católico dos Estados Unidos, a
2 de julho de 1963. O Papa Montini viria a receber sucessivamente no Vaticano
outros três Presidentes – Lyndon Johnson (que tinha já encontrado em 1965, a
quando da sua visita à ONU), a 23 de dezembro de 1967; Richard Nixon, duas vezes,
em 2 de março de 1969 e a 29 de setembro de 1970; e, por fim, Gerald Ford, a 2
de junho de 1975.
Numerosas foram as audiências de João
Paulo II aos Presidentes americanos durante o seu longo pontificado. A primeira
foi a Jimmy Carter, recebido a 21 de junho de 1980, depois do encontro na Casa
Branca em 1979. Duas foram as visitas de Ronald Reagan, sob cuja presidência a
Santa Sé e os Estados Unidos estabeleceram relações diplomáticas ao mais alto
nível, a 10 de junho de 1984 – a 7 de junho de 1982 e a 6 de junho de 1987.
Seguiram-se as duas audiências a Jorge Bush Sénior, a 27 de maio de 1989 e a 8
de novembro de 1991, e uma a Bill Clinton, a 2 de junho de 1994.
George Bush Júnior foi recebido pelo
Papa Wojtyla três vezes: a 23 de julho de 2001 (em Castel Gandolfo), a 28 de
maio de 2002 e a 4 de junho de 2004, quando entregou ao Pontífice a Medalha Presidencial
da Liberdade. Fez duas visitas ao Vaticano sob o pontificado de Bento XVI: a 9
de junho de 2007; e a 13 de junho de 2008, depois do encontro de 15 e 16 de abril
em Washington, no início da visita pastoral do Papa aos Estados Unidos.
Esta visita de Obama, que recebera, na
sua primeira visita em 2009, como presente do Papa Bento XVI, a “Dignitatis
Personae”, instrução da Congregação para a Doutrina da Fé sobre algumas
questões de Bioética”, enquadra-se numa complexa fase das relações da atual
Administração da Casa Branca com a Igreja dos Estados Unidos marcada, de modo
particular, pela controvérsia sobre a aplicação da reforma sanitária (The
Patient Protection and Afordable Care Act), a resolver localmente (embora sob a
égide vaticana), na parte relativa às regras atinentes à obrigação de cobertura
sanitária da interrupção voluntária da gravidez e dos meios anticoncecionais e
a outras questões no epicentro do debate público no país, como a legalização
dos matrimónios homossexuais.
(http://pt.radiovaticana.va/news/2014/03/26/presidente_barak_obama_recebido_esta_manh%C3%A3_em_audi%C3%AAncia_pelo_papa_no/por-785158)
***
Perante a informação acabada de
expor, ocorre-me discorrer um pouco em jeito de reflexão. Apesar do diminuto
poder temporal do Papa, os Chefes de Estado visitam-no. Quais serão as verdadeiras
motivações? Os líderes de países católicos poderiam invocar o dever de
satisfação dos interesses dos seus governados; os de países com outras
religiões cristãs poderiam aduzir o acompanhamento da questão ecuménica; os de
outras religiões e culturas poderiam sustentar a sua postura no diálogo das
culturas e permeabilidade dos fatores civilizacionais.
Entretanto, afigura-se-me haver outro
tipo de razões. Os interesses, já que passam por Itália e, em especial pela
cidade de Roma e arredores, inúmeros milhares de pessoas (a coberto do turismo,
negócios, investigação científica e histórica, santuários, situação peninsular
e marítima, pronto de cruzamento de movimentações, tradição multissecular…),
implicam o bom relacionamento entre Estados e o Vaticano, embora minúsculo em
termos territoriais, é um Estado soberano, grande em poder formal, em património
histórico-artístico-cultural e em prestígio internacional.
Por outro lado, a lição da democracia
ensina que todas as entidades que ocupam lugar de relevo internacional têm
direito à palavra (e quiçá o dever da palavra) nos competentes areópagos
internacionais. Depois, além de ser notória a presença institucional (maioritária
ou não) e ativa (nomeadamente ao nível da ação social e na ligação às
organizações populares de base) em todo o mundo, é consensual o papel
desempenhado pela Igreja Católica em prol da paz, da luta pela erradicação da
miséria e da salvaguarda dos direitos fundamentais.
Se a voz da Igreja é incómoda tantas
vezes, nem por isso deixa de ser escutada por inúmeros setores da população
mundial, enquanto representante de tendência de pensamento e pulsação, referencial
de acolhimento, espaço de esperança, vez e voz dos rejeitados ou postos de parte,
testemunha atenta dos dramas e tragédias por que passa a humanidade. Por isso,
os poderes sentem (sincera ou hipocritamente) que é temerário não a ouvirem. E também,
porque, na dirimição de conflitualidades, torna-se útil a intervenção de
entidade que não tenha interesse imediato em nenhuma das soluções de parte.
No caso Obama/Francisco, quem se der
ao cuidado de analisar a versão romana e a americana, além da divergência do
discurso gramatical, já apontada, e da convergência de alguns conteúdos
genéricos (cordialidade, franqueza…), encontrará diferenças curiosas: o
Vaticano, para lá da necessidade do respeito pelo direito humanitário e pelo
direito internacional nas zonas de conflito e da necessidade de alcançar uma
solução negociada entre as partes em confronto, sublinha o respeito pelo exercício
dos direitos à liberdade religiosa, à vida e à objeção de consciência, e a
necessidade da reforma em matéria de emigração;
Obama, por seu turno, salienta que a maior parte do tempo foi dedicada a
“duas preocupações centrais” do Papa (a pobreza, com os problemas afins da marginalização,
da falta de oportunidades e da situação de crescente desigualdade; e os conflitos
no mundo, com a situação alargada de uma paz ilusória). E o resto do tempo, trataram
de quê? Onde ficaram os direitos? Será a hipocrisia da astúcia americana?
Mas o Vaticano não foi menos astuto. A
nota vaticana não releva em espécie os conteúdos de Obama. Para quê, se eles
são consensuais? Por outro lado, o líder americano olvida taticamente direitos
fundamentais ou negociação entre partes nas zonas de conflito (prefere sanções
económicas!) e parece ter de justificar-se: foi ao Papa, mas num périplo pela
Europa e Arábia Saudita, com protocolo e trabalho com o Estado italiano, com os
interesses americanos em Itália, Santa Sé e ONU. Papa, graças a Deus, esse não
precisa de se justificar porque recebe Obama… é a religião política. É a
política, senhoras e senhores, com religião!
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