Parece ser a
frase-chave da homilia da Missa do Domingo de Ramos a que Francisco presidiu na
Basílica de São Pedro, sem a presença de povo, a partir do Altar da Cátedra,
neste 5 de abril de 2020. Com o Pontífice, o mestre das cerimónias litúrgicas, um
diácono, poucos presbíteros, um único cardeal, alguns leigos e religiosas e um
grupo coral em número reduzido.
Como memória da entrada de Jesus em Jerusalém, apenas as
oliveiras e os ramos perto do altar da celebração e, obviamente, o Salmo 118 (vv 1.27-28), com a antífona extraída de Mateus 21,9 (“Hosanna Filio David”), a oração de bênção dos ramos, a proclamação do Evangelho de
Mateus (Mt 21,1-11) evocativo de tal episódio messiânico e o canto processional (Sl 24,1-4.9-10 – com a antífona “Pueri hebraeorum”).
***
Entende o
Papa que Jesus se esvaziou a Si mesmo, tomando a condição de servo (Fl 2,7) e considerou que a afirmação de Jesus como servo
funciona como um refrão para estes dias. Com efeito, em Quinta-feira Santa, como
servo lava os pés aos discípulos; em Sexta-feira Santa é o servo sofredor e
vitorioso (cf Is 52,13); e, na segunda-feira, ouvimos o Senhor clamar: “Eis o
meu servo que Eu amparo” (Is 42,1). Assim, ao
invés do que pensamos, “Deus salvou-nos, servindo-nos” e, nesta linha de serviço, ama-nos
independentemente de nós O amarmos, muito embora deseje e solicite o nosso amor.
E Francisco, no contexto daquela solidão física basilical e agoral, explica a
todo o mundo que o possa escutar e ver o modo tão singular como o Senhor nos
serviu. Desde logo, serviu amando. E este amor pessoal, que não é “uma
brincadeira”, como confidenciou Jesus a Santa Ângela de Foligno, é afetivo e
efetivo, tão grande que O levou a sacrificar-Se por nós, carregando todos os
nossos males, “com a humildade, paciência e obediência do servo, exclusivamente
com a força do amor”. E este serviço de Jesus encontrou sustentáculo no Pai, que “não desbaratou o mal que se
abatia sobre Ele”, mas sustentou-Lhe o sofrimento, “para que o nosso mal fosse
vencido apenas com o bem”.
Depois, o Santo
Padre, sustentado no relato da Paixão (Mt 26,14 – 27,66), avança com duas componentes dolorosas em que se
manifestou o serviço do Senhor: a traição e o abandono.
A traição vem de discípulos, do que O
vendeu e do que O renegou; vem da multidão que O aclamava hossana, mas que,
ululante, passou a exigir a crucifixão; vem da instituição religiosa que, num
determinado momento, O admirava pela pertinência das suas perguntas e pela
inteligência e sabedoria das suas respostas (cf Lc 2,47), mas que agora O condena injustamente; e vem da
instituição política “que lavou as mãos”. E o Papa aconselha a que reflitamos
nas traições que a vida nos proporciona, no sofrimento que nos invade quando a
confiança “foi burlada” e na deceção que então sentimos no mais íntimo de nós. Ao
mesmo tempo, exorta a que pensemos nas nossas infidelidades, falsidades,
hipocrisias e fingimentos, bem como nas “boas intenções traídas”, nas “promessas
quebradas” e nos “propósitos esmorecidos”. E o Senhor, que “conhece melhor do
que nós o nosso coração”, faz por nós – para remédio da nossa fraqueza,
inconstância e incapacidade de nos levantarmos da queda – o que dissera através
do profeta: “Curarei a sua infidelidade, amá-los-ei de todo o coração” (Os 14,5). Por isso,
“em vez de desanimarmos com medo de não ser capazes”, “podemos levantar o olhar
para o Crucificado”, “receber o seu abraço” e “seguir em frente”.
A seguir, o
Papa aborda a questão do abandono dilacerante que Jesus sentiu. Não fala
propriamente do abandono dos discípulos, que fugiram e se dispersaram como
ovelhas que veem o pastor ferido, embora o mencione. Fixa-se, antes, na frase
que Jesus diz, “com voz forte”, segundo o Evangelho desta dominga: “Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste?” (Mt 27,46). Restando-Lhe o Pai, agora sente-se no abismo da
solidão e pela primeira vez O designa “pelo nome genérico de Deus”, embora o
sinta “Meu Deus”. E sente a amargura de também o Pai O abandonar neste momento
tão doloroso.
Aquelas são
palavras do Salmo 22 (v 2), que
mostram como Jesus levou à oração a extrema desolação, pois “experimentou o
maior abandono” e os Evangelhos atestam-no “reproduzindo as palavras originais
do salmo em hebraico “Heli, Heli, lemá sabakthaní?”, com a tradução em grego “Theé emou,
Theé emou, ína tí me enkatélipes?” e em latim “Deus meus, Deus meus ut
quid dereliquisti me?”.
E isto
sucede “para servir-nos” –
diz o Santo Padre. De facto, “quando nos encontramos num beco sem saída,
sem luz nem via de saída”, lembrar-nos-emos de que “não estamos sozinhos”. Na
verdade, “Jesus experimentou o abandono total” para “ser em tudo solidário
connosco”. Enfim, desceu “ao abismo dos nossos sofrimentos mais atrozes até à
traição e ao abandono”.
E o Papa
deixa a mensagem da proximidade de Deus na situação em que nos encontramos:
“Hoje, no drama da pandemia, perante tantas certezas que se desmoronam,
diante de tantas expectativas traídas, no sentido de abandono que nos aperta o
coração, Jesus diz a cada um: ‘Coragem! Abre o coração ao meu amor. Sentirás a
consolação de Deus, que te sustenta’.”.
Depois,
ensina que “podemos não trair aquilo para que fomos criados, nem abandonar o
que conta”, pois estamos no mundo para amar a Deus e aos outros e que o drama por
que estamos a passar nos impele “a levar a sério o que é sério”, “a redescobrir
que a vida não serve, se não se serve”. De facto, as gentes beiraltinas assumem o aforismo “quem não
presta para servir não serve para nada”. E o Papa diz-nos que a vida se mede
pelo amor. Assim, quer que, nestes dias, permaneçamos em casa, diante do
Crucificado pedindo a graça de viver para servir e procurando
contactar com quem sofre, quem está sozinho e necessitado, não pensando só no
que nos falta, mas no bem que podemos fazer. Com efeito, se queremos servir, o Pai,
que sustentou Jesus na Paixão, anima-nos, também a nós, no serviço. E a senda
do serviço, que pode custar muito, “é o caminho vencedor, que nos salvou e salva
a vida”.
Por fim, diz
especialmente aos jovens, neste Dia Mundial
da Juventude que, há 35 anos, lhes é dedicado, que olhem “para os verdadeiros
heróis que vêm à luz nestes dias”. E explica:
“Não são aqueles que têm fama, dinheiro e sucesso, mas aqueles que se
oferecem para servir os outros”.
E exorta a que
se sintam chamados a arriscar a vida, sem “medo de a gastar por Deus e pelos
outros”, pois “a vida é um dom que se recebe doando-se”, tal como “fez Jesus
por nós”.
***
A
propósito do forte brado de Jesus na Cruz que o Papa abordou como interrogação
do Crucificado ao Pai em razão do abandono a que se sentiu votado e que é tido
tradicionalmente como a 4.ª Palavra de Jesus no patíbulo do Calvário, parece-me
oportuno o seguinte “excursus”.
Para
Bruno Forte, a tradução mais adequada daquelas palavras seria: “Meu Deus, meu Deus, para que me
abandonaste?”. Na verdade, em Mateus a expressão “ína tí” (para que) sugere o sentido de finalidade, tal como a
expressão “eis tí”, utilizada em
Marcos. De “eis” diz a “Concordancia exhaustiva de la Biblia”,
de James Strong, no verbete 1519: “εις,
eis, preposição primária; em, até,
para, dentro, em direção a, entre” – no que é seguido pelo “Diccionario manual griego-español”, de
J. M. Pabón, que, na aceção 2, lhe chama preposição de acusativo a significar “a, hacia, hasta” e pelo “Dicionário grego-português e português-grego”,
de Isidro Pereira. Este, quanto a “ína”,
chama-lhe conjunção, na aceção, 2 e tradu-la por “para que, a fim de que”, ao
passo que Strong, no verbete 2443, lhe dá um valor demonstrativo. A “Gramática grega”, de A. Freire, refere “eis” e “es” como preposição de acusativo a significar “para, contra, em
favor de” e apresenta “ína” (para
que) como conjunção
subordinativa final. Ora, se tivermos em conta que a Vulgata traduziu “ína tí” e “eis tí” por “ut quid”,
mais parece que a preposição ou a conjunção seguida do pronome interrogativo no
acusativo “tí” ou “quid” dá a ideia de finalidade.
Não
obstante, divulgou-se a tradução com a ideia de causalidade, não sem razão: Vulgata
traduz o mesmo versículo por “Deus,
Deus meus, quare (por
que motivo) me dereliquisti?”.
Com efeito, os escolásticos evidenciam a importância tanto da causa inicial
como da causa final. E, como avança o Padre Nuno Martins em Família
Passionista, n.º 133, duas atitudes possíveis perante o sofrimento: ficar na
lamentação e na procura da culpa; ou aproveitá-lo para nos questionarmos sobre
que oportunidade ele nos oferece. Não é despiciendo querer saber os porquês,
mas será mais importante e útil saber a finalidade.
Nestes
termos, o brado de Jesus revela, não apenas o seu sofrimento na hora da Paixão,
mas também a grandeza do seu amor e a finalidade da sua vinda: servir, não ser
servido, e dar a vida até ao fim. Na cruz, Ele vivenciou o que nós
experimentamos amiúde: o silêncio de Deus. Muitos afirmam que Jesus, à maneira
dos judeus piedosos, ao enunciar o início do salmo 22, o terá rezado na íntegra
na solidão silenciosa do Gólgota, porque o assumiu até ao fim, com o que tem de
sofrimento, abandono, mas também confiança, louvor e propósito de glorificar o
nome de Deus na assembleia. No entanto, não podemos deixar de considerar que o
Crucificado é o mais angustiado e desolado dos angustiados e desolados da Terra.
Mas o seu grito, que alia a si a oração, o que o torna forte, não é um grito de
desespero (desesperado é o que nunca grita), mas de confiança, pois o grito
do homem bíblico nunca se perde. Em última instância, será escutado por Deus e,
a seu tempo, pelos homens. Por isso, funciona como um guia nosso para a hora da
dor e da sensação de que Deus nos abandonou; e nós podemos aproximar-nos confiadamente
do trono da graça para alcançarmos misericórdia e encontrar o favor dum auxílio
oportuno (cf
Heb 4,14-15). Com efeito,
o homem não é abandonado pelo Senhor silencioso, mesmo que não encontremos
jeito de perguntar ou entender os “porque” e os “para que” das circunstâncias que
nos rodeiam.
Na verdade,
a fé no Deus crucificado é que se a verdadeira novidade a apresentar ao sofrimento
e à desolação, pois, como diz Jacques Maritain, “Se os homens soubessem… que
Deus ‘sofre’ connosco e muito mais do que nós, todo o mal que devasta a terra,
muitas coisas mudariam sem dúvida e muitas almas seriam libertadas”.
***
Que Jesus não sofra mais a traição dos discípulos que O
vendem ou O renegam, das multidões que o querem arredado das suas vidas, das
instituições religiosas que sofrem a tentação de se mundanizarem e das
instituições políticas que sobrepõem ao bem comum o apego ao poder. E
que, na Terra ou no Céu, não sofra mais o abandono e a dispersão dos seus discípulos,
mas que estes se encontrem e reencontrem em redor da sua Cruz e na mesa do
banquete da Ressurreição.
2020.04.06
– Louro de Carvalho
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