segunda-feira, 6 de abril de 2020

Deus salvou-nos, servindo-nos



Parece ser a frase-chave da homilia da Missa do Domingo de Ramos a que Francisco presidiu na Basílica de São Pedro, sem a presença de povo, a partir do Altar da Cátedra, neste 5 de abril de 2020. Com o Pontífice, o mestre das cerimónias litúrgicas, um diácono, poucos presbíteros, um único cardeal, alguns leigos e religiosas e um grupo coral em número reduzido.
Como memória da entrada de Jesus em Jerusalém, apenas as oliveiras e os ramos perto do altar da celebração e, obviamente, o Salmo 118 (vv 1.27-28), com a antífona extraída de Mateus 21,9 (“Hosanna Filio David”), a oração de bênção dos ramos, a proclamação do Evangelho de Mateus (Mt 21,1-11) evocativo de tal episódio messiânico e o canto processional (Sl 24,1-4.9-10 – com a antífona “Pueri hebraeorum”).
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Entende o Papa que Jesus se esvaziou a Si mesmo, tomando a condição de servo (Fl 2,7) e considerou que a afirmação de Jesus como servo funciona como um refrão para estes dias. Com efeito, em Quinta-feira Santa, como servo lava os pés aos discípulos; em Sexta-feira Santa é o servo sofredor e vitorioso (cf Is 52,13); e, na segunda-feira, ouvimos o Senhor clamar: “Eis o meu servo que Eu amparo” (Is 42,1). Assim, ao invés do que pensamos, “Deus salvou-nos, servindo-nos” e, nesta linha de serviço, ama-nos independentemente de nós O amarmos, muito embora deseje e solicite o nosso amor. E Francisco, no contexto daquela solidão física basilical e agoral, explica a todo o mundo que o possa escutar e ver o modo tão singular como o Senhor nos serviu. Desde logo, serviu amando. E este amor pessoal, que não é “uma brincadeira”, como confidenciou Jesus a Santa Ângela de Foligno, é afetivo e efetivo, tão grande que O levou a sacrificar-Se por nós, carregando todos os nossos males, “com a humildade, paciência e obediência do servo, exclusivamente com a força do amor”. E este serviço de Jesus encontrou sustentáculo no Pai, que “não desbaratou o mal que se abatia sobre Ele”, mas sustentou-Lhe o sofrimento, “para que o nosso mal fosse vencido apenas com o bem”.
Depois, o Santo Padre, sustentado no relato da Paixão (Mt 26,14 – 27,66), avança com duas componentes dolorosas em que se manifestou o serviço do Senhor: a traição e o abandono.
A traição vem de discípulos, do que O vendeu e do que O renegou; vem da multidão que O aclamava hossana, mas que, ululante, passou a exigir a crucifixão; vem da instituição religiosa que, num determinado momento, O admirava pela pertinência das suas perguntas e pela inteligência e sabedoria das suas respostas (cf Lc 2,47), mas que agora O condena injustamente; e vem da instituição política “que lavou as mãos”. E o Papa aconselha a que reflitamos nas traições que a vida nos proporciona, no sofrimento que nos invade quando a confiança “foi burlada” e na deceção que então sentimos no mais íntimo de nós. Ao mesmo tempo, exorta a que pensemos nas nossas infidelidades, falsidades, hipocrisias e fingimentos, bem como nas “boas intenções traídas”, nas “promessas quebradas” e nos “propósitos esmorecidos”. E o Senhor, que “conhece melhor do que nós o nosso coração”, faz por nós – para remédio da nossa fraqueza, inconstância e incapacidade de nos levantarmos da queda – o que dissera através do profeta: “Curarei a sua infidelidade, amá-los-ei de todo o coração” (Os 14,5). Por isso, “em vez de desanimarmos com medo de não ser capazes”, “podemos levantar o olhar para o Crucificado”, “receber o seu abraço” e “seguir em frente”.
A seguir, o Papa aborda a questão do abandono dilacerante que Jesus sentiu. Não fala propriamente do abandono dos discípulos, que fugiram e se dispersaram como ovelhas que veem o pastor ferido, embora o mencione. Fixa-se, antes, na frase que Jesus diz, “com voz forte”, segundo o Evangelho desta dominga: “Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste? (Mt 27,46). Restando-Lhe o Pai, agora sente-se no abismo da solidão e pela primeira vez O designa “pelo nome genérico de Deus”, embora o sinta “Meu Deus”. E sente a amargura de também o Pai O abandonar neste momento tão doloroso.
Aquelas são palavras do Salmo 22 (v 2), que mostram como Jesus levou à oração a extrema desolação, pois “experimentou o maior abandono” e os Evangelhos atestam-no “reproduzindo as palavras originais do salmo em hebraico “Heli, Heli, lemá sabakthaní?”, com a tradução em grego “Theé emou, Theé emou, ína tí me enkatélipes?” e em latim “Deus meus, Deus meus ut quid dereliquisti me?”.
E isto sucede “para servir-nos” – diz o Santo Padre. De facto, “quando nos encontramos num beco sem saída, sem luz nem via de saída”, lembrar-nos-emos de que “não estamos sozinhos”. Na verdade, “Jesus experimentou o abandono total” para “ser em tudo solidário connosco”. Enfim, desceu “ao abismo dos nossos sofrimentos mais atrozes até à traição e ao abandono”.
E o Papa deixa a mensagem da proximidade de Deus na situação em que nos encontramos:
Hoje, no drama da pandemia, perante tantas certezas que se desmoronam, diante de tantas expectativas traídas, no sentido de abandono que nos aperta o coração, Jesus diz a cada um: ‘Coragem! Abre o coração ao meu amor. Sentirás a consolação de Deus, que te sustenta’.”.
Depois, ensina que “podemos não trair aquilo para que fomos criados, nem abandonar o que conta”, pois estamos no mundo para amar a Deus e aos outros e que o drama por que estamos a passar nos impele “a levar a sério o que é sério”, “a redescobrir que a vida não serve, se não se serve. De facto, as gentes beiraltinas assumem o aforismo “quem não presta para servir não serve para nada”. E o Papa diz-nos que a vida se mede pelo amor. Assim, quer que, nestes dias, permaneçamos em casa, diante do Crucificado pedindo a graça de viver para servir e procurando contactar com quem sofre, quem está sozinho e necessitado, não pensando só no que nos falta, mas no bem que podemos fazer. Com efeito, se queremos servir, o Pai, que sustentou Jesus na Paixão, anima-nos, também a nós, no serviço. E a senda do serviço, que pode custar muito, “é o caminho vencedor, que nos salvou e salva a vida”.
Por fim, diz especialmente aos jovens, neste Dia Mundial da Juventude que, há 35 anos, lhes é dedicado, que olhem “para os verdadeiros heróis que vêm à luz nestes dias”. E explica:
Não são aqueles que têm fama, dinheiro e sucesso, mas aqueles que se oferecem para servir os outros”.
E exorta a que se sintam chamados a arriscar a vida, sem “medo de a gastar por Deus e pelos outros”, pois “a vida é um dom que se recebe doando-se”, tal como “fez Jesus por nós”.
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A propósito do forte brado de Jesus na Cruz que o Papa abordou como interrogação do Crucificado ao Pai em razão do abandono a que se sentiu votado e que é tido tradicionalmente como a 4.ª Palavra de Jesus no patíbulo do Calvário, parece-me oportuno o seguinte “excursus”. 
Para Bruno Forte, a tradução mais adequada daquelas palavras seria: “Meu Deus, meu Deus, para que me abandonaste?”. Na verdade, em Mateus a expressão “ína tí(para que) sugere o sentido de finalidade, tal como a expressão “eis tí”, utilizada em Marcos. De “eis” diz a “Concordancia exhaustiva de la Biblia”, de James Strong, no verbete 1519: “εις, eis, preposição primária; em, até, para, dentro, em direção a, entre” – no que é seguido pelo “Diccionario manual griego-español”, de J. M. Pabón, que, na aceção 2, lhe chama preposição de acusativo a significar “a, hacia, hasta” e pelo “Dicionário grego-português e português-grego”, de Isidro Pereira. Este, quanto a “ína”, chama-lhe conjunção, na aceção, 2 e tradu-la por “para que, a fim de que”, ao passo que Strong, no verbete 2443, lhe dá um valor demonstrativo. A “Gramática grega”, de A. Freire, refere “eis” e “es” como preposição de acusativo a significar “para, contra, em favor de” e apresenta “ína(para que) como conjunção subordinativa final. Ora, se tivermos em conta que a Vulgata traduziu “ína tí” e “eis tí” por “ut quid”, mais parece que a preposição ou a conjunção seguida do pronome interrogativo no acusativo “” ou “quid” dá a ideia de finalidade.
Não obstante, divulgou-se a tradução com a ideia de causalidade, não sem razão: Vulgata traduz o mesmo versículo por “Deus, Deus meus, quare (por que motivo) me dereliquisti?”. Com efeito, os escolásticos evidenciam a importância tanto da causa inicial como da causa final. E, como avança o Padre Nuno Martins em Família Passionista, n.º 133, duas atitudes possíveis perante o sofrimento: ficar na lamentação e na procura da culpa; ou aproveitá-lo para nos questionarmos sobre que oportunidade ele nos oferece. Não é despiciendo querer saber os porquês, mas será mais importante e útil saber a finalidade.
Nestes termos, o brado de Jesus revela, não apenas o seu sofrimento na hora da Paixão, mas também a grandeza do seu amor e a finalidade da sua vinda: servir, não ser servido, e dar a vida até ao fim. Na cruz, Ele vivenciou o que nós experimentamos amiúde: o silêncio de Deus. Muitos afirmam que Jesus, à maneira dos judeus piedosos, ao enunciar o início do salmo 22, o terá rezado na íntegra na solidão silenciosa do Gólgota, porque o assumiu até ao fim, com o que tem de sofrimento, abandono, mas também confiança, louvor e propósito de glorificar o nome de Deus na assembleia. No entanto, não podemos deixar de considerar que o Crucificado é o mais angustiado e desolado dos angustiados e desolados da Terra. Mas o seu grito, que alia a si a oração, o que o torna forte, não é um grito de desespero (desesperado é o que nunca grita), mas de confiança, pois o grito do homem bíblico nunca se perde. Em última instância, será escutado por Deus e, a seu tempo, pelos homens. Por isso, funciona como um guia nosso para a hora da dor e da sensação de que Deus nos abandonou; e nós podemos aproximar-nos confiadamente do trono da graça para alcançarmos misericórdia e encontrar o favor dum auxílio oportuno (cf Heb 4,14-15). Com efeito, o homem não é abandonado pelo Senhor silencioso, mesmo que não encontremos jeito de perguntar ou entender os “porque” e os “para que” das circunstâncias que nos rodeiam.
Na verdade, a fé no Deus crucificado é que se a verdadeira novidade a apresentar ao sofrimento e à desolação, pois, como diz Jacques Maritain, “Se os homens soubessem… que Deus ‘sofre’ connosco e muito mais do que nós, todo o mal que devasta a terra, muitas coisas mudariam sem dúvida e muitas almas seriam libertadas”.    
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Que Jesus não sofra mais a traição dos discípulos que O vendem ou O renegam, das multidões que o querem arredado das suas vidas, das instituições religiosas que sofrem a tentação de se mundanizarem e das instituições políticas que sobrepõem ao bem comum o apego ao poder. E que, na Terra ou no Céu, não sofra mais o abandono e a dispersão dos seus discípulos, mas que estes se encontrem e reencontrem em redor da sua Cruz e na mesa do banquete da Ressurreição.
2020.04.06 – Louro de Carvalho  

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