domingo, 12 de abril de 2020

O acordo do Eurogrupo para resposta à crise deixa muitas dúvidas


O presidente do Eurogrupo, Mário Centeno, acreditava que haveria uma resposta económica à pandemia e o acordo possível firmou-se no dia 9 de abril, após 16 horas de negociação, com a criação de três proteções ou redes de segurança, para os trabalhadores (SURE), as empresas (BEI) e os Estados (MEE). E os ministros aplaudiram o acordo que aprovaram.
Criado na sequência da crise das dívidas soberanas, o MEE (Mecanismo Europeu de Estabilidade) será agora usado. Todos os ministros das Finanças concordavam com o seu uso, mas divergiam nas condições em que esses empréstimos podem ser dados. Agora o acordo passa pelo uso da linha de crédito de precaução (ECCL, na sigla inglesa) “ajustada à luz deste particular desafio”, com juros baixos, como proteção para os Estados-membros da Zona Euro afetados por este choque.
Tanto no comunicado como na conferência de imprensa, o presidente do Eurogrupo repetiu:
O único requisito para ter acesso a esta linha de crédito é que os Estados-membros da Zona Euro que peçam este apoio têm de comprometer-se a usar esta linha de crédito para financiar, a nível nacional, os custos diretos e indiretos relacionados com os cuidados de saúde, a cura e a prevenção relacionada com a crise Covid-19”.  
Segundo Mário Centeno, esta “não é uma definição apertada”, antes a porta a diferentes interpretações sobre para que fins poderá ir este dinheiro. Porém, os Governos têm de “reforçar” as suas condições económicas e financeiras em linha com as regras europeias, embora com a “flexibilidade aplicada” pela Comissão Europeia – condição que Mário Centeno desvalorizou, aduzindo que, se os países estão sustentáveis antes da crise, também o estarão quando a pandemia passar. Efetivamente como referiu, “todos os países devem fazer todos os esforços para recuperar o caminho da sustentabilidade”.
O apoio da linha de crédito tem de ser aprovado pelo MEE com base na avaliação feita pelos técnicos da Comissão Europeia, em conjunto com o BCE (Banco Central Europeu). Todavia, não há referência a linha de crédito para o apoio económico que os Estados têm de dar, como por exemplo em lay-off. E o Ministro das Finanças holandês, Wopke Hoekstra, esclareceu que as linhas de crédito do MEE ajudarão os países “sem condições para as despesas de saúde”, mas o apoio económico terá condições, faltando saber quais são elas.
O dinheiro disponível do MEE será até 2% do PIB de cada Estado-membro, num total de 240 mil milhões de euros, devendo o apoio estar pronto “dentro de duas semanas” e disponível enquanto durar a crise pandémica. De facto, o objetivo é evitar a crise das dívidas soberanas quando a dívida pública dos países começar a disparar face à queda do PIB e ao aumento do défice. Contudo, vários economistas olham este valor emprestado pelo MEE a juros baixos como um valor pequeno para o possível impacto económico da pandemia na Zona Euro.
A proteção criada pela Comissão Europeia é SURE e é uma camada adicional de proteção ao emprego que os Estados terão à sua disposição. São 100 mil milhões de euros que este programa disponibilizará aos países também através de empréstimos, sendo que o processo legislativo para que este instrumento fique operacional o mais rapidamente possível começará em breve.
A outra proteção, dedicada às empresas, vem do BEI (Banco Europeu de Investimento), iniciativa que passa pela criação dum fundo pan-europeu de garantias de 25 mil milhões de euros que alavancará, logo que possível, 200 mil milhões de euros de financiamento para as empresas europeias, com um especial foco nas PME, através de bancos de fomento nacionais.
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Não foi descartada de vez a mutualização da dívida. Os países favoráveis mantiveram essa possibilidade em cima da mesa e os países contrários também impuseram uma referência a outras possibilidades de financiamento. Como sintetizou Centeno, “alguns Estados-membros querem uma emissão conjunta de dívida” enquanto outros querem que se encontrem “formas alternativas” de financiar o plano económico de recuperação da Zona Euro. O Ministro das Finanças italiano garantiu que “os eurobonds foram colocados em cima da mesa”, mas o Ministro das Finanças holandês continua contra os eurobonds por este conceito não ajudar a Europa ou a Holanda no longo prazo. Por isso, a bola passará de novo para o Conselho Europeu.
Sendo certo que haverá um Plano Marshall ou Von der Leyen, ainda não tem uma definição. Sobre isto, Centeno, sustentando que “temos de crescer em conjunto e não separados”, explicou que o “próximo orçamental europeu será essencial” para esta recuperação, pois será dentro do orçamento plurianual da UE que vai ser criado um “fundo de recuperação” temporário para financiar investimentos a prazos longos para uma “economia melhor” no futuro.
Paolo Gentiloni, comissário europeu para a economia defende “mais financiamento via orçamento comunitário” e assegura que existe apoio amplo dos Estados para este fundo de recuperação. Faltando decidir o seu tamanho e ‘timing’, aguardam-se as linhas de orientação do Conselho Europeu, para o que que há “diferentes opções”. Porém, este fundo tem de estar preparado para quando a recuperação começar.
É obviamente relevante o MFF (orçamental plurianual da UE) na recuperação económica, mas são de relembrar as dificuldades da negociação do orçamento dos próximos anos com vários países a bloquear o aumento da sua dotação e a pedir a redução do seu tamanho, bem como o das contribuições nacionais. Assim, a Comissão deverá adaptar a proposta de orçamento plurianual aos novos desafios e construir o plano de recuperação e o plano de ação para o pós-pandemia.
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Ora, como dizem os especialistas, o acordo do Eurogrupo deixa mais dúvidas que certezas.
Os coronabonds estão fora do acordo, mas ainda estão em cima da mesa. Os empréstimos não têm condições prévias, mas não podem ajudar a economia. São 500 mil milhões de euros que não deixam nenhum governo contente, a não ser o alemão.
As principais decisões são as que já estavam em cima da mesa há duas semanas: a linha de crédito do MEE, disponível dentro de duas semanas; o aumento da capacidade de empréstimo do BEI; e o novo regime de seguro de desemprego de 100 mil milhões de euros proposto pela Comissão Europeia. E os ministros acordaram em criar um fundo de recuperação “temporário e específico” para ajuda à recuperação económica pós-crise do novo coronavírus, mas ainda não se sabe a dimensão e as fontes de financiamento desse fundo.
O economista Ricardo Paes Mamede entende que “é um grande salto para a zona euro, mas um pequeno salto na resolução dos problemas que enfrentamos”, ao passo que Ricardo Cabral, economista e professor no ISEG, recomenda que Portugal não recorra a nenhum destes instrumentos, por várias razões, mas sobretudo porque a condicionalidade será demasiado arriscada, quando o país pode recorrer aos mercados para se financiar (com o BCE a garantir a compra de dívida pública). E este economista, alertando para o alto risco de a Europa se desintegrar, conclui que “as respostas à crise continuam a ser nacionais, e o risco também é nacional”.
O eurodeputado comunista João Ferreira retém da reunião do Eurogrupo “as profundas contradições no seio da UE, a ausência gritante de solidariedade e de medidas adequadas à dimensão dos problemas e uma tão cínica como indisfarçável cedência aos interesses das principais potências europeias e dos grandes grupos económico-financeiros”.
Por sua vez, o analista de política internacional Bernardo Pires de Lima salienta a importância do acordo, que lhe parece “um bom acordo político numa situação de tensão in extremis”, pois “a história da integração europeia é feita disso”, sendo que “provavelmente o acordo tem um alcance técnico e económico aquém da depressão que aí vem”. E regista a rapidez deste acordo em comparação com os anos de impasse que se viveram durante a crise da dívida.
Portugal poderia receber, graças às medidas aprovadas pelo Eurogrupo, um empréstimo de quatro mil milhões de euros do MEE, mas Ricardo Cabral duvida que esse apoio condicionado, possa ser útil, pois “dará para um ou dois meses”. Além disso, persistem dúvidas sobre como pode o dinheiro dessa linha de crédito ser aplicado, por exemplo, na economia.
O “The New York Times” refere, em editorial:
A questão a colocar é a de saber qual é o sentido de qualquer união se não consegue encontrar a unidade quando é mais necessária, quando o que faz, ou não faz, irá moldar a sua identidade durante muito tempo e, possivelmente, o seu destino”.
Nestes termos, pergunta-se o que aplaudiram os ministros. A maioria dos participantes na reunião (13 em 19) sentiu que o acordo não chega ao necessário. Portugal, Bélgica, França, Itália, Luxemburgo, Espanha, Grécia, Eslovénia e Irlanda (a que se juntaram, no Conselho de chefes de Estado e de Governo, Lituânia, Eslováquia, Malta e Chipre) têm derrota clara. Estes países, em carta conjunta de 26 de março, exigiam que a UE “trabalhe num instrumento de dívida comum emitido por uma instituição europeia para angariar fundos no mercado na mesma base e para o benefício de todos os Estados membros”. Porém, o acordo não prevê qualquer dívida comum. Mas também os países que se opõem a coronabonds (dívida europeia para financiar a crise), exceto a Alemanha, não venceram. Com efeito, Holanda, Áustria e Finlândia foram a minoria de bloqueio a qualquer plano ambicioso, rejeitando o plano dos coronabonds e qualquer mecanismo de empréstimo de dinheiro comunitário sem condições férreas que obrigassem os países devedores a planos de ajustamento (austeridade). Assim, o acordo dá-lhes meia vitória: não há dívida comum e os empréstimos do MEE são destinados à saúde, mas não valeu o argumento da austeridade.
Na Holanda, a posição do Ministro das Finanças não é consensual. A coligação de Governo chefiada por Mark Rutte tem 4 partidos (liberais, democratas-cristãos, de centro e de direita) e nem todos defendem o mesmo que o ex-executivo da petrolífera Shell defende no Eurogrupo. Quando Hoekstra sugeriu que a Comissão investigasse porque não foram os países mais atingidos pelo novo coronavírus (Itália e Espanha) capazes de ter sistemas de saúde eficazes – o que António Costa considerou “repugnante” – trovejaram os protestos em Haia. Rob Jetten, o líder do grupo parlamentar do D66 (um dos partidos da coligação), escreveu um texto muito crítico e pediu que fosse publicado em vários jornais do sul da Europa.
Enquanto hospitais alemães admitiram holandeses e quase todos os outros países europeus trocaram pacientes e equipamentos de proteção uns com os outros, a Holanda mostrou o seu lado mais mesquinho. (...) Wopke Hoekstra, do CDA [partido da coligação de governo, democrata-cristão] aproveita este momento de crise humanitária para dar lições de disciplina orçamental aos europeus do sul gravemente afetados. É o dedo dum contabilista no meio dum sofrimento humano desolador.”.
E Jetten lança a farpa cheia de sarcasmo: “Tal como este governo, apesar da boa vontade, não consegue acabar de uma vez com a reputação holandesa de ser um paraíso fiscal”.
Além do conflito na coligação, vários economistas, professores universitários e banqueiros holandeses escreveram em carta aberta muito crítica:
A posição holandesa sobre o financiamento conjunto de uma abordagem europeia à crise do coronavírus causou incompreensão e frustração sem precedentes nas últimas semanas. Como economistas holandeses, também nós consideramos a posição holandesa injustificável. Exortamos o governo holandês a mudar de rumo agora e a apoiar uma abordagem europeia.”.
O resultado não apazigua estas divergências na Holanda, nem permite aos duros clamar vitória junto das suas bases: o MEE poderá emprestar dinheiro sem memorandos de austeridade.
Sobra o mais importante dos membros do Eurogrupo: a Alemanha. Em Berlim, a vitória é clara. O Governo defendeu, desde o início das negociações, que este não era o momento para criação duma dívida comum, mas nunca fechou essa porta, nem se opôs à primeira das reivindicações italianas, que era a de não haver qualquer condição específica, acordada individualmente com os países, para os empréstimos do MEE. Se esse crédito europeu fosse acompanhado, como defendia a Holanda, por condições de ajustamento económico específicas e prévias, o Governo de Roma rejeitaria a proposta e alimentaria o discurso da oposição populista da Liga de Salvini.
A Alemanha jogou toda a sua força diplomática para que o Eurogrupo decidisse como acabou por decidir: um plano moderado capaz de convencer holandeses e italianos. E foi por isso que a reunião do dia 9 se atrasou, para os representantes da Alemanha, França, Itália e Holanda, negociarem um compromisso.
Para Hoekstra, a Holanda manifestou forte desejo de ajudar nos cuidados de saúde que estejam relacionados com o coronavírus, mas com a condição de por cada euro gasto na economia se aplicarem “as regras normais”. E Roberto Gualtieri, Ministro das Finanças italiano, afirmou “que a condicionalidade está fora de questão quanto à utilização do financiamento do MEE”.
No extenso relatório do Eurogrupo, lê-se que, embora não haja condições prévias específicas para cada país atinentes aos empréstimos do MEE, os Estados que a eles recorram têm de se comprometer a seguir as orientações económicas da UE logo que a crise acabe – o que já estava previsto na proposta alemã.
Assim, além dos empréstimos do MEE, há outros pontos consensuais no acordo, como a criação pelo BEI dum fundo de garantia de 25 mil milhões de euros, que pode apoiar um financiamento de 200 mil milhões de euros para as pequenas e médias empresas, e o plano da Comissão Europeia para criar empréstimos temporários destinados à proteção do emprego, conhecido como SURE. Contudo, apesar dos esforços, públicos de entendimento entre Merkel e Macron, restam várias dúvidas para o futuro. Por exemplo, Berlim e Paris não estão perto de nenhum acordo para a criação de dívida comum. E, embora Centeno tenha dito que os coronabonds não estão afastados da discussão e que “precisamos de pensar no futuro e preparar as nossas economias para uma estratégia de saída desta crise, um plano para a recuperação”, deixou claro que não deixa de ser verdade que, enquanto alguns Estados opinaram que a forma de recuperar a economia deveria ser feita através de instrumentos de dívida comuns, outros disseram que devem ser encontradas formas alternativas.
Salva-se a tímida menção a este debate no relatório do Eurogrupo, que admite a possibilidade da criação de “instrumentos financeiros inovadores, coerentes com os Tratados da UE” para financiar a recuperação económica.
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Em suma, este acordo é melhor que nada, mas é de perguntar para onde vai o projeto europeu e de responsabilizar os líderes por estas medidas assaz frouxas. A Europa merece mais e melhor!
2020.04.11 – Louro de Carvalho

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