quinta-feira, 23 de abril de 2020

Ricardo Jorge e as medidas de saúde pública em epidemia e não só



Nascido no Porto a 9 de maio de 1858 (faleceu a 29 de julho de 1939, em Lisboa), ajudou a perceber a epidemia e como o serviço público de saúde é condição necessária da democracia. Médico, investigador e higienista, professor de Medicina e introdutor em Portugal das modernas técnicas e conceitos de saúde pública, exerceu diversos cargos na administração da saúde, conseguindo importante influência política.
Na dissertação de licenciatura “O nervosismo no Passado, abordou a história da Neurologia. A partir de 1880 foi docente, na Escola Médico-Cirúrgica do Porto, das disciplinas de Anatomia, Histologia e Fisiologia Experimental; fez várias deslocações a Estrasburgo e Paris (onde assistiu às lições de Jean-Martin Charcot); e fez nos hospitais locais a aprendizagem impossível de adquirir em Portugal, onde o saber neurológico era incipiente. Em 1884, abandonou a Neurologia e passou a dedicar-se à Saúde Pública, vindo a ser, de 1891 a 1899, o médico municipal do Porto e diretor do Laboratório Municipal de Bacteriologia.
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121 anos, ocorreu no Porto o último foco de peste bubónica que assolou uma cidade da Europa ocidental. E o seu estudo e combate foram protagonizados por aquele médico de origem humilde, mas que, após o estudo no Colégio da Lapa, foi aluno brilhante da Escola Médico-Cirúrgica, onde se matriculara com 16 anos, num tempo em que a ciência era socialmente desvalorizada.
Como médico e professor centrou-se no desenvolvimento da medicina e na modernização do seu ensino, que apodava de escolástico, dogmático e caduco. Em 1881, foi um dos fundadores, da “Revista Scientifica”, que aliava cientistas e reformadores político-sociais. Em 1884, passou a ocupar-se da higiene pública e promoveu 4 conferências sobre higiene, sepulturas, cemitérios e cremação, que foram publicadas no livro “Higiene Social Aplicada à Nação Portuguesa”, onde preconizava, ante o cenário insalubre da cidade, a criação dum sistema de saneamento por parte do Estado, pelo que foi convidado a integrar a comissão de estudo das condições sanitárias no Porto, no âmbito da qual redigiu o relatório “O Saneamento no Porto”. Em 1899, publicou “Demografia e Higiene da Cidade do Porto: Clima, População, Mortalidade”, que identificava as condições habitacionais e de higiene das ilhas como causas de proliferação de doenças.
O livro “A Peste Bubónica no Porto” reú­ne os relatórios médicos destinados às autoridades civis, redigidos por Ricardo Jorge entre julho e agosto de 1899 e que revelam parte importante do debate de então sobre políticas públicas de saúde, bem como as medidas que, há mais dum século, foram tomadas para travar o contágio da peste, num cenário de ausência de qualquer medida de apoio social aos infetados. Isto interessa hoje apesar de a peste bubónica e a Covid-19 serem distintas (a primeira provocada por bactéria e a segunda por vírus), pois as condições sociais de habitação e higiene foram determinantes para contrair a peste, transmitida por pulgas de ratos.
A 4 de julho de 1899, tendo recebido um bilhete enviado por um negociante da Rua de São João a alertá-lo para estranhos falecimentos na Rua da Fonte Taurina, na Ribeira, Ricardo Jorge foi lá recolher amostras e fez o estudo bacteriológico do material recolhido nos bubões dos infetados. E a sua tarefa foi provar que se estava perante um caso de peste bubónica, que não fora erradicada da Europa há 300 anos, como se pensava, e que era uma epidemia e não caso isolado. Por isso, havia que tomar medidas profiláticas e sanitárias, construir balneários públicos e perseguir os agentes transmissores (rato grande entregue na esquadra valia 20 réis, 10 réis se fosse pequeno). Passados cerca de dois meses, foi imposto o cordão sanitário à cidade, controlado pelo Exército, o que revoltou as elites e o povo. Suprimiram-se os comboios, as feiras e as romarias e foi imposta quarentena de 9 dias aos passageiros e trabalhadores dos comboios. Porém, foram as medidas radicais anticontágio, nomeadamente as respeitantes ao isolamento dos infetados, que contiveram a doença e, consequentemente, a mortalidade.
As condições de higiene e habitação em que viviam os infetados, que permitiram fazer a anatomia social da cidade, justificavam as medidas, mas as reações ao cerco provocaram a asfixia do comércio e da indústria, redundando em desemprego e dificuldades de abastecimento de bens alimentares, de onde surgiu grande agitação social, de que o médico seria vítima, embora se tenha demarcado de regras sanitárias impostas administrativamente, invocando razões sociais e científicas, na crítica à ausência de articulação entre a política e a medicina na escolha de medidas. Assim, a Sociedade de Medicina e Cirurgia (em agosto de 1899) enviou-lhe uma mensagem, assinada por 52 médicos, que lhe elogiava a coragem cívica, a serenidade em meio da desorientação geral, a devoção pela causa pública, a compreensão nítida dos seus deveres, revelando o fosso entre decisores políticos e associações médicas, que acentuavam a importância da ciência e a necessidade de ser tida em conta no desenho das medidas.
O aparelho do Estado era incompetente para decidir por si as medidas higienicamente mais convenientes e Ricardo Jorge, em nítida crítica ao cerco, dizia: “Cidade porca na rua e em casa, mobilize-se um exército não para sitiá-la, mas para limpá-la”. Preferia banhos obrigatórios, desinfeção de roupas e casas, isolamento, notificação obrigatória de infeção.
A alteração da rotina e do negócio quotidiano, a ignorância e o medo fizeram de Ricardo Jorge alvo preferencial da fúria popular, acusado de sair “misteriosamente de noite a deitar ratos pestosos nas sarjetas” ou de ser quem “espalha e entretém a epidemia”. Um dia, face à deteção dum caso num bairro pobre da cidade, a brigada sanitária cercou o prédio. A infetada, para escapar da vigilância, atirou-se da janela e morreu. Os vizinhos apontaram o dedo a Ricardo Jorge. A turba dirigiu-se à casa onde julgava viver o médico, para a apedrejar. Valeu-lhe já não residir nessa moradia. Porém, mais tarde, sitiado em casa e preparou-se de caçadeira para o confronto, valendo-lhe a chegada da cavalaria da Guarda Municipal, que dispersou a multidão.
Em outubro de 1899, partiu para Lisboa, onde foi nomeado inspetor-geral dos Serviços Sanitários do Reino, lente de Higiene na Escola Médico-Cirúrgica e membro do Conselho Superior de Higiene e Saúde, devendo-se-lhe a organização dos Serviços de Saúde Pública.
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O visionarismo de Ricardo Jorge, Diretor-Geral da Saúde durante a “gripe espanhola” de 1918, que em meses fez mais baixas do que os quatro anos da I Guerra Mundial, está espelhado nas medidas de combate a esta pandemia e que permanecem atuais cem anos depois.
Da obrigatoriedade da notificação dos casos de gripe à aposta na higiene dos doentes, passando pela organização dos serviços de saúde e a inibição das migrações militares e agrícolas, as medidas da autoridade de saúde de então ajudaram a minimizar os efeitos da forte pandemia.
Em 1918, Ricardo Jorge referia-se ao vírus, cujo agente na altura era desconhecido, como algo que “quase instantaneamente se derrama por uma cidade inteira e salta por cima de todas as barreiras”. Face a tal adversidade, o então Diretor-Geral da Saúde promove o fim de contactos físicos como os apertos de mão, os abraços e os ósculos, bem como postula a requisição de espaços públicos para acolher os doentes. Só em Lisboa, o Convento das Trinas acolheu 300 camas e o Liceu Camões 500. Nada chegava, nem caixões. Num só dia, contaram-se 200 enterros em Lisboa.
Francisco George, Diretor-Geral da Saúde entre 2005 e 2017, recordou Ricardo Jorge como “uma figura importante, com grande prestígio no país devido à forma como tinha combatido e resolvido a peste bubónica no Porto, na viragem do século XX”.
Já como Diretor-Geral da Saúde, nomeado por António José de Almeida, tomou medidas, a mais significativa das quais foi a mobilização dos quintanistas da Faculdade de Medicina para estarem na linha da frente no combate à gripe. Cumpriu e fez tudo o que tinha de ser feito numa altura em que o país, esgotado pela participação na guerra, não tinha recursos, pelo que não conseguia financiar atividades que pudessem reduzir o sofrimento do povo.
Fernando Almeida, presidente do conselho de administração do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA), tem no gabinete um retrato do fundador e patrono. Sobre a obra, recorda a capacidade de resiliência e “a invulgar capacidade de tentar conduzir as coisas”. Considera o seu trabalho “totalmente inovador” para a época, tendo sido mal percebido, pois “quem é inovador é sempre mal percebido”, mas evitou grandes catástrofes. E refere que, há cem anos, faltava o diagnóstico, pois pensava-se que a doença era provocada por uma bactéria.
A historiadora Maria Fernanda Rollo considera que “ninguém está preparado para dar resposta a uma pandemia desta natureza”, pelo que “nenhum país estava preparado”, e que, apesar de haver “uma continuidade de surtos epidémicos que vêm do século XIX, as pessoas “não têm conhecimento nem instrumentos para lhe fazer face”.
Segundo a historiadora, o esforço do combate à pandemia acabou por ser protagonizado por Ricardo Jorge, “um dos homens que nunca é demais elogiar e outros homens que começam por chamar as atenções para as questões de saúde pública”. Em 1918 “não temos serviços públicos organizados, as infraestruturas não estão preparadas para ter um impacto deste”, disse, acrescentando o que considera determinante:
Não temos ciência, não temos conhecimento organizado para compreender, para prevenir o impacto da pneumónica em Portugal, tal como não se tinha no contexto internacional”.
Helena Rebelo de Andrade, virologista e diretora do Museu da Saúde, refere que algumas das medidas tomadas na altura para combater a “gripe espanhola” ainda hoje são “muito atuais”. No início, “o que se recomenda é o doente ficar em casa, em repouso, ter uma dieta saudável, tomar tisanas, semelhante ao que hoje se recomenda”. Recomendavam-se caldos de galinha, água com açúcar, sumo de limão, de laranja, gargarejos mentolados. E para a terapêutica de redução da febre eram utilizadas soluções de quinino e os salicilatos.
Na segunda onda pandémica (em outubro), mais devastadora que a primeira (e que a terceira), para os casos graves, recomendavam-se injeções com soluções arsenicais e injeções de cafeína e de adrenalina. E Ricardo Jorge impôs 7 medidas: a obrigatoriedade da notificação dos casos, através dos delegados de saúde do país, que tinham de concentrar a informação na DGS e de a transmitir telegraficamente; higiene dos doentes; inibição das migrações militares e agrícolas; requisição dos espaços públicos para instalação de hospitais; organização dos serviços de saúde; distribuição do serviço médico e farmacêutico nos distritos para atendimento dos mais pobres; e formação duma comissão de socorro para o acompanhamento da epidemia.
Helena Rebelo de Andrade revela que Ricardo Jorge, durante a pandemia, como Diretor-Geral da Saúde não concordou com o fecho da fronteira com Espanha, imposto pelos espanhóis. Mas, como não podia expressar politicamente a discordância, escrevia nos jornais com o pseudónimo, Dr. Mirandela, para se insurgir contra o que chamava de “muralha da China”.
A virologista não duvida de que da resposta à pneumónica foi possível tomar “muitas lições”, tendo em conta “a atualidade de algumas medidas”. A “gripe espanhola”, também conhecida por pneumónica, por levar à pneumonia na fase final da doença, atingiu o mundo em 1918, matando 50 milhões de pessoas. Em Portugal, a pandemia matou entre 59 mil e 70 mil pessoas em 6 meses, dez vezes mais do que a I Guerra Mundial (1914-1918).
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Hoje e face à Covid-19, é indiscutível a importância da saúde pública no combate a epidemias. Sem um SNS e sem medidas de apoio social o mapa da tragédia seria o das fronteiras sociais, como no tempo da peste bubónica.
Em termos da saúde, fica a ideia de que a Europa tem andado a brincar à saúde. Os números falam por si. Em 20 anos, o número de camas hospitalares em Itália foi reduzido de 6,5 por mil habitantes para menos de metade (ou um terço das de 1975). Na Alemanha, de 1990 a 2017, o mesmo rácio passou de 10,4 para 8,3. Em Portugal será de 3,4. Na cidade de Madrid, os governos de Rajoy eliminaram 2500 empregos médicos, embora uma pequena parte destas reduções esteja relacionada com a mudança da forma de cuidados médicos, com mais pressão para a recuperação domiciliária e com novas técnicas cirúrgicas que permitem recuperação mais rápida. Mas o essencial do corte chama-se austeridade e privatização. Um estudo duma fundação alemã, publicado no ano passado, sugere que o encerramento de metade dos hospitais do país. A família que a dirige é proprietária de meia centena de hospitais e faz fortuna na medicina privada. Em Portugal, é o grande negócio do século XXI (depois das armas). Mesmo no meio da pandemia, quando a Universidade de Lisboa faz testes à Covid-19 com um custo de 30 euros, há laboratórios que cobram 100 ao Estado (e no início da pandemia cobravam 200 às pessoas).
Porém, se não tivéssemos o SNS, embora desgastado por sucessivos governos, a Covid-19 teria efeitos bem mais nefastos! Terão hoje os líderes e cientistas do país visão tão rigorosa e ousada?
- Cf Francisco Louçã, “Ricardo Jorge contra a peste bubónica no Porto”, in Expresso, de 10 de abril; José Manuel Sobral et Maria Luísa Lima, “A epidemia da pneumónica em Portugal no seu tempo histórico”, in Dossier: Revisitar a Pneumónica de 1918-1919, Ler História, 1.12.2018; AR, “Gripe espanhola: 100 anos da mãe das pandemias com mortalidade revista”, in Notícias ao Minuto, 26.04.2018; Lusa “Medidas de Ricardo Jorge continuam atuais cem anos depois da gripe espanhola”, in Observador, 27.04.2018.
2020.04.23 – Louro de Carvalho

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