Os comentários homiléticos do II domingo da Páscoa acentuavam
o facto de o Ressuscitado ter aparecido na comunidade dos discípulos confinados
pelo medo, tendo sido nesse lugar comunitário que os surpreendeu colocando-Se
no meio deles, apesar das portas fechadas, lhes deu a paz, o Espírito Santo e a
incumbência de servir o perdão dos pecados. Também era dito que, não estando
Tomé presente e propondo-se desafiar o Mestre para que lhe mostrasse as chagas,
o Senhor decidiu esperar por Tomé, pois não queria que ninguém ficasse para
trás, e ganhou a melhor e mais sintética confissão de fé orante que alguma vez
tinha sido feita. E acentuava-se que o encontro de Tomé com Cristo ocorrera na
comunidade e não em sítio isolado, porque a comunidade é o locus privilegiado da presença de Cristo (vd Jo 20,19-31).
Neste III domingo da Páscoa, desiludidos com o caminho de
Jesus – de ensino, prática do bem, prodígios, mas entrega voluntária nas mãos
dos inimigos (cf At 2,14.22-23) – dois
discípulos resolvem pôr-se a caminho da sua aldeia e refazer a vida segundo as previsões,
projetos e interesses próprios (vd Lc 24,13-35) – opção
legítima e natural –, esquecendo de vez a esperança que depositaram em Jesus de
Nazaré, o dito messias poderoso que derrotaria os opressores, restauraria o
reino grandioso de David e distribuiria cargos e honrarias pelos cooperadores (“nós esperávamos…”). Tudo isso foi um profundo fracasso. Em vez de triunfar,
deixou-se crucificar. Já era o 3.º dia, o que significava que a morte era
irreversível.
Assim, Cléofas e o companheiro (cujo
anonimato pode ser preenchido por cada um dos crentes) desertam da
comunidade por doravante não fazer sentido a comunidade continuar. De facto,
uma comunidade cristã que não viva da ressurreição não tem razão de ser, pelo
que é inútil.
A discussão entre eles sobre “o que tinha acontecido” constitui
a partilha solidária dos sonhos desfeitos que dilui um pouco a desilusão. É neste
contexto que surge neste caminho de desilusão partilhada um desconhecido cuja
entrada no grupo de caminhantes é aceite com naturalidade e se torna o
confidente da sua frustração. Os dois contam a história verdadeira do mestre
que os encantou e os mobilizou, mas, para eles, a verdade não passa do
sepulcro. Falta a atitude do discípulo amado que viu e começou a acreditar,
porque foi no encalço da novidade trazida pelas miróforas de que o túmulo
estava vazio e Ele lhes aparecera.
Porém, essa verdade incompleta (umas
mulheres disseram que Ele estava vivo, mas ninguém o viu) deu azo a que o
novo companheiro de viagem respondesse às inquietações dos dois e lhes
mostrasse toda a verdade do projeto messiânico: não passava por quadros de
triunfo humano, mas pelo dom da vida e pelo amor afetivo e efetivo até às
últimas consequências. E, “começando por Moisés e passando pelos profetas,
explicou-lhes em toda a Escritura o que a Ele se referia”.
É óbvio que este novo companheiro que apareceu no caminho
deles é Jesus, o Ressuscitado, que deseja que ninguém fique para trás e quer
que eles voltem à comunidade para retomarem os trilhos do verdadeiro
caminho.
Os três chegam, finalmente, a Emaús. Os dois discípulos
continuam a não reconhecer Jesus, não obstante convidam-no a ficar com eles,
pois sentiam-se confortados pela sua companhia e palavra. Ele aceita e
sentam-se à mesa. Enquanto comiam, Jesus “tomou o pão, recitou a bênção,
partiu-o e entregou-lho”. São gestos que evocam a instituição da Eucaristia na
Última Ceia e marcam a celebração eucarística da Igreja primitiva. E foi por
estes gestos que O reconheceram. Mas Ele desapareceu.
Ora, é na partilha dos problemas e na escuta e partilha da
Palavra que o plano salvador de Deus ganha sentido. É por este meio que o
crente perceberá que o amor e o dom da vida não são um fracasso, mas geram a vida
nova. Os discípulos percebem que “o Messias tinha de sofrer tudo isso para
entrar na glória”. Com efeito, a vida plena não está – de acordo com os
esquemas de Deus – nos êxitos e poderes humanos, mas está no serviço simples e
humilde aos irmãos, no dom da vida por amor, na partilha total do que somos e
que temos.
Lucas recorda aos membros da sua comunidade que Jesus vivo e
ressuscitado vem ao nosso caminho para o transformar no seu caminho. Este Jesus
que por amor enfrentou a cruz continua a fazer-Se companheiro de jornada dos
homens nos caminhos da história, na celebração eucarística e sempre que os
irmãos se reúnem em nome de Jesus para rezar e para “partir o pão” que repartem
entre si, comprometendo-se com a partilha. Aí está vivo e atuante. E é no gesto
de bênção e fração do pão que se reconhece o Ressuscitado e o valor da
comunidade. É aí que se reconhece a validade da ardência do coração enquanto se
ouvem e meditam as Escrituras.
A última cena do episódio de Emaús põe os discípulos a retomar
o caminho de Jerusalém a anunciar aos irmãos que Jesus está vivo, o que é
confirmado pela e na comunidade.
Quando Lucas escreve o seu Evangelho, a comunidade
defrontava-se com algumas dificuldades. Tinham decorrido cerca de 50 anos
depois da morte de Jesus. As catequeses asseguravam que Ele estava vivo, mas o
quotidiano da vida monótona, cansativa e dificultosa tornava difícil fazer essa
experiência. As testemunhas oculares de Jesus tinham desaparecido e os
acontecimentos da paixão, morte e ressurreição pareciam demasiado distantes e
ilógicos, faltando as teofanias.
É a isto que a catequese lucana procura responder dirigindo a
sua mensagem a crentes que se sentem a caminhar pela vida desanimados e sem
rumo, cujos sonhos parecem desfazer-se no embate com a realidade monótona e
difícil do quotidiano em que nada parece acontecer, a não ser perseguições. Não
haverá nenhuma intervenção espetacular de Deus. No entanto, Jesus ressuscitou e
está vivo. Caminha ao nosso lado nos caminhos do mundo, mesmo que não consigamos
reconhecê-Lo, por os nossos corações estarem cheios de perspetivas erradas
acerca do que Ele é, dos seus métodos e do que Ele pretende. Ele faz-Se nosso
companheiro de viagem e quer entrar nas nossas angústias e dissipá-las;
alimenta a nossa jornada com a esperança e a certeza que brotam da Palavra,
faz-Se encontrar na partilha comunitária do pão e do vinho.
Na catequese lucana é eminente a certeza de que na celebração
comunitária da Eucaristia os crentes, instruídos pela Palavra, experienciam o
encontro com Jesus vivo. Na verdade, a narração de Emaús apresenta o esquema
litúrgico da celebração eucarística: a liturgia da Palavra (“explicação das Escrituras” – para os discípulos entenderem o
plano de Deus) e o “partir do pão”, para que os discípulos entrem em
comunhão com Jesus, recebam d’Ele vida e O reconheçam nos gestos que são o
memorial do dom da vida e da entrega aos homens.
Jesus tanto surge na comunidade confinada na casa comum como
no confinamento do caminho humano para que, retomando o verdadeiro caminho os
discípulos que se isolaram e a comunidade pusilânime, retumbem, revigorados
pela força do Alto, nos caminhos da missão apostólica por todo o mundo e até ao
fim dos tempos. Cada crente é convidado a retomar a verdadeira estrada, viver a
comunidade orante e ativa e estar disponível para a missão.
Ele surge na comunidade e no caminho, atento a quem tende a
ficar para trás ou sair do redil.
2020,04.26
– Louro de Carvalho
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