domingo, 26 de abril de 2020

O Ressuscitado aparece-nos no nosso caminho e caminha connosco


Os comentários homiléticos do II domingo da Páscoa acentuavam o facto de o Ressuscitado ter aparecido na comunidade dos discípulos confinados pelo medo, tendo sido nesse lugar comunitário que os surpreendeu colocando-Se no meio deles, apesar das portas fechadas, lhes deu a paz, o Espírito Santo e a incumbência de servir o perdão dos pecados. Também era dito que, não estando Tomé presente e propondo-se desafiar o Mestre para que lhe mostrasse as chagas, o Senhor decidiu esperar por Tomé, pois não queria que ninguém ficasse para trás, e ganhou a melhor e mais sintética confissão de fé orante que alguma vez tinha sido feita. E acentuava-se que o encontro de Tomé com Cristo ocorrera na comunidade e não em sítio isolado, porque a comunidade é o locus privilegiado da presença de Cristo (vd Jo 20,19-31).
Neste III domingo da Páscoa, desiludidos com o caminho de Jesus – de ensino, prática do bem, prodígios, mas entrega voluntária nas mãos dos inimigos (cf At 2,14.22-23) – dois discípulos resolvem pôr-se a caminho da sua aldeia e refazer a vida segundo as previsões, projetos e interesses próprios (vd Lc 24,13-35) – opção legítima e natural –, esquecendo de vez a esperança que depositaram em Jesus de Nazaré, o dito messias poderoso que derrotaria os opressores, restauraria o reino grandioso de David e distribuiria cargos e honrarias pelos cooperadores (“nós esperávamos…”). Tudo isso foi um profundo fracasso. Em vez de triunfar, deixou-se crucificar. Já era o 3.º dia, o que significava que a morte era irreversível.   
Assim, Cléofas e o companheiro (cujo anonimato pode ser preenchido por cada um dos crentes) desertam da comunidade por doravante não fazer sentido a comunidade continuar. De facto, uma comunidade cristã que não viva da ressurreição não tem razão de ser, pelo que é inútil.
A discussão entre eles sobre “o que tinha acontecido” constitui a partilha solidária dos sonhos desfeitos que dilui um pouco a desilusão. É neste contexto que surge neste caminho de desilusão partilhada um desconhecido cuja entrada no grupo de caminhantes é aceite com naturalidade e se torna o confidente da sua frustração. Os dois contam a história verdadeira do mestre que os encantou e os mobilizou, mas, para eles, a verdade não passa do sepulcro. Falta a atitude do discípulo amado que viu e começou a acreditar, porque foi no encalço da novidade trazida pelas miróforas de que o túmulo estava vazio e Ele lhes aparecera.
Porém, essa verdade incompleta (umas mulheres disseram que Ele estava vivo, mas ninguém o viu) deu azo a que o novo companheiro de viagem respondesse às inquietações dos dois e lhes mostrasse toda a verdade do projeto messiânico: não passava por quadros de triunfo humano, mas pelo dom da vida e pelo amor afetivo e efetivo até às últimas consequências. E, “começando por Moisés e passando pelos profetas, explicou-lhes em toda a Escritura o que a Ele se referia”.
É óbvio que este novo companheiro que apareceu no caminho deles é Jesus, o Ressuscitado, que deseja que ninguém fique para trás e quer que eles voltem à comunidade para retomarem os trilhos do verdadeiro caminho. 
Os três chegam, finalmente, a Emaús. Os dois discípulos continuam a não reconhecer Jesus, não obstante convidam-no a ficar com eles, pois sentiam-se confortados pela sua companhia e palavra. Ele aceita e sentam-se à mesa. Enquanto comiam, Jesus “tomou o pão, recitou a bênção, partiu-o e entregou-lho”. São gestos que evocam a instituição da Eucaristia na Última Ceia e marcam a celebração eucarística da Igreja primitiva. E foi por estes gestos que O reconheceram. Mas Ele desapareceu.
Ora, é na partilha dos problemas e na escuta e partilha da Palavra que o plano salvador de Deus ganha sentido. É por este meio que o crente perceberá que o amor e o dom da vida não são um fracasso, mas geram a vida nova. Os discípulos percebem que “o Messias tinha de sofrer tudo isso para entrar na glória”. Com efeito, a vida plena não está – de acordo com os esquemas de Deus – nos êxitos e poderes humanos, mas está no serviço simples e humilde aos irmãos, no dom da vida por amor, na partilha total do que somos e que temos.
Lucas recorda aos membros da sua comunidade que Jesus vivo e ressuscitado vem ao nosso caminho para o transformar no seu caminho. Este Jesus que por amor enfrentou a cruz continua a fazer-Se companheiro de jornada dos homens nos caminhos da história, na celebração eucarística e sempre que os irmãos se reúnem em nome de Jesus para rezar e para “partir o pão” que repartem entre si, comprometendo-se com a partilha. Aí está vivo e atuante. E é no gesto de bênção e fração do pão que se reconhece o Ressuscitado e o valor da comunidade. É aí que se reconhece a validade da ardência do coração enquanto se ouvem e meditam as Escrituras.
A última cena do episódio de Emaús põe os discípulos a retomar o caminho de Jerusalém a anunciar aos irmãos que Jesus está vivo, o que é confirmado pela e na comunidade.
Quando Lucas escreve o seu Evangelho, a comunidade defrontava-se com algumas dificuldades. Tinham decorrido cerca de 50 anos depois da morte de Jesus. As catequeses asseguravam que Ele estava vivo, mas o quotidiano da vida monótona, cansativa e dificultosa tornava difícil fazer essa experiência. As testemunhas oculares de Jesus tinham desaparecido e os acontecimentos da paixão, morte e ressurreição pareciam demasiado distantes e ilógicos, faltando as teofanias.
É a isto que a catequese lucana procura responder dirigindo a sua mensagem a crentes que se sentem a caminhar pela vida desanimados e sem rumo, cujos sonhos parecem desfazer-se no embate com a realidade monótona e difícil do quotidiano em que nada parece acontecer, a não ser perseguições. Não haverá nenhuma intervenção espetacular de Deus. No entanto, Jesus ressuscitou e está vivo. Caminha ao nosso lado nos caminhos do mundo, mesmo que não consigamos reconhecê-Lo, por os nossos corações estarem cheios de perspetivas erradas acerca do que Ele é, dos seus métodos e do que Ele pretende. Ele faz-Se nosso companheiro de viagem e quer entrar nas nossas angústias e dissipá-las; alimenta a nossa jornada com a esperança e a certeza que brotam da Palavra, faz-Se encontrar na partilha comunitária do pão e do vinho.
Na catequese lucana é eminente a certeza de que na celebração comunitária da Eucaristia os crentes, instruídos pela Palavra, experienciam o encontro com Jesus vivo. Na verdade, a narração de Emaús apresenta o esquema litúrgico da celebração eucarística: a liturgia da Palavra (“explicação das Escrituras” – para os discípulos entenderem o plano de Deus) e o “partir do pão”, para que os discípulos entrem em comunhão com Jesus, recebam d’Ele vida e O reconheçam nos gestos que são o memorial do dom da vida e da entrega aos homens.
Jesus tanto surge na comunidade confinada na casa comum como no confinamento do caminho humano para que, retomando o verdadeiro caminho os discípulos que se isolaram e a comunidade pusilânime, retumbem, revigorados pela força do Alto, nos caminhos da missão apostólica por todo o mundo e até ao fim dos tempos. Cada crente é convidado a retomar a verdadeira estrada, viver a comunidade orante e ativa e estar disponível para a missão.
Ele surge na comunidade e no caminho, atento a quem tende a ficar para trás ou sair do redil.
2020,04.26 – Louro de Carvalho

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