quinta-feira, 9 de abril de 2020

Falar de equidade hoje de forma razoável


A 8 de abril, a CNIPE (Confederação Nacional Independente de Pais e Encarregados de Educação) defendeu que o ME (Ministério da Educação) deve encontrar as soluções para garantir equidade nas aprendizagens dos alunos e assegurar a proteção de dados.
Opinando que as atividades letivas de forma presencial só devem ser retomadas quando as competentes autoridades de saúde considerarem que “já não existe qualquer perigo para a saúde pública em Portugal”, sustenta em comunicado que “a escola deve continuar a exercer a sua atividade com recurso aos meios de comunicação que tem disponíveis” e, se isto não se verificar em todas as escolas, “cabe ao Ministério da Educação o dever de encontrar soluções”. Mais considera que a eventual proposta de Telescola pode ser positiva, mas que deverá ser encarada como um complemento ao trabalho desenvolvido pelos professores.
Em relação aos exames nacionais de acesso ao ensino superior, diz que “podem e devem” vir a realizar-se num outro calendário, correspondendo às expectativas dos alunos e das suas famílias, mas protegendo os mesmos. Já outras provas, como as de aferição e provas finais, devem ser eliminadas neste ano letivo, devendo os resultados ser obtidos em ano de maior estabilidade.
O comunicado da CNIPE felicita ainda “todos os docentes” pelo trabalho desenvolvido em prol da escola e alunos através do ensino à distância, lamentando, no entanto, não ter sido possível “alcançar todas as famílias”. Com efeito, as escolas tiveram muita dificuldade em orientar de forma clara e objetiva todos os docentes, complicando o seu trabalho e, por vezes, até as suas vidas familiares, mas para as direções das escolas este foi também um momento de grande confusão e de muitos ajustes.
Já anteriormente a questão da equidade foi invocada para posições diferentes: o ME, em nome da equidade, não prescinde dos exames nacionais; e a petição pública subscrita e a subscrever pelos alunos, também em nome da equidade, pretende que, este ano, não se realizem os exames e que as classificações do 2.º período do ensino secundário sejam o critério para ingresso no ensino superior. E, por mim, já defendi – e mantenho-o pelo menos pelas óbvias razões da emergência – que a média das classificações do ensino secundário do final do ano (o esforço de lecionação à distância pode induzir correções para melhor ou para pior) como critério normal para o ingresso no ensino superior, realizando-se exames para os candidatos ao termo do ensino secundário e/ou ingresso no ensino superior que de momento estejam fora do sistema formal de ensino.   
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Mas é oportuno refletir sobre aquilo de que falamos quando dizemos “equidade”. Não é só de igualdade. Igualdade vem da palavra latina “aequalitas, aequalitatis(nome feminino), que significa “igualdade, nível, uniformidade, paridade, semelhança”. Da sua família é, por exemplo, o adjetivo “aequalis, aequale(da mesma natureza ou grandeza, igual, uniforme, plano, igual, constante…), que, sendo nome masculino, significa “companheiro, amigo”. Igualdade”, em grego, dizia-se “isótês” e “homalótês(igual: “ísos”; e “homalós”), sendo que “igualdade de direitos” se dizia “isonomia”. Já equidade vem do nome latino feminino “aequitas, aequitatis”, de que “aequalitas” é cognata e que significa: “equidade, justiça, moderação, resignação, tranquilidade de espírito” e também “igualdade”. Muito ligado a esta palavra temos o adjetivo “aequus, aequa, aequum”, que significa: “plano, liso, imparcial, justo, equitativo, propício, amigo, benévolo, vantajoso, favorável…”. Em grego, “equidade” dizia-se “epieíkeia” e “dikaiosýnê(justiça, retidão, honradez). E “equânime” e “equitativo” diziam-se “díkaios(justo) e “epieikês”.  
Admitindo que as referidas palavras assumem diversificada polissemia, deve considerar-se que as ligadas à equidade e equanimidade (“aequanimitas” – justiça benévola, benevolência, igualdade de ânimo) primam pela semântica da justiça, da retidão e da razoabilidade. Por outro lado, deve ser tido em conta o sentido ou os sentidos que as comunidades científicas e culturais lhes dão.
Em termos genéricos, “equidade” consiste na adaptação da regra à situação concreta, segundo os critérios da justiça, para a deixar mais justa. É uma forma de aplicação do Direito, o mais próxima possível do justo e do imparcial quando estão envolvidas várias partes. Porém, tal adaptação, de índole ética, não pode ser de livre arbítrio nem contrariar o conteúdo expresso na norma. Deve ter em conta a moral social vigente, o regime político e os princípios gerais do Direito. Além disso, não corrige o que é justo na lei, mas completa o que a justiça não alcança.
Sem a equidade no ordenamento jurídico, a aplicação da lei, criada pelo legislador e outorgada pelo chefe do Executivo, acabaria por se tornar muito rígida, o que beneficiaria grande parte da população, mas prejudicaria alguns casos específicos que a lei não teria como alcançar. Piero Calamandrei, em “Estudios sobre el processo civil(Editora Bibliográfica Argentina, 1961), diz:
O legislador permite ao juiz aplicar a norma com equidade, ou seja, temperar o seu rigor naqueles casos em que a aplicação da mesma (no caso, ‘a mesma’ seria ‘a lei’) levaria ao sacrifício de interesses individuais que o legislador não pôde explicitamente proteger em sua norma”.
Na Grécia, a equidade era epieíkeia e manifestava a ideia de adaptação do Direito ao caso. Não pretendia dissolver o Direito escrito, mas torná-lo mais democrático. Platão foi o primeiro a preocupar-se com a equidade e separou equidade de justiça, colocando a primeira num patamar superior ao da justiça normativa. Porém, Aristóteles considerou a epieíkeia como pouco prática devido à corrupção no judiciário, pelo que não recomendou o seu uso irrestrito pelos juízes.
Em Roma, a equidade teve papel fulcral no desenvolvimento do Direito. Para compreender tal relevância deve distinguir-se o Direito Romano arcaico e o Direito Romano clássico. O Direito Romano arcaico ou quiritário caraterizava-se pelo formalismo, oralidade e rigidez, aplicando a igualdade aritmética e não a equidade. Não abrangia todos os que viviam no império, criando a mole enorme de excluídos da justiça. Porém, com a invasão da Grécia pelos romanos, a sincretização entre as duas culturas, além da introdução do direito escrito, levou, graças à filosofia grega, à quebra da rigidez do Direito, com o princípio da equidade.
A partir daí, as fórmulas passaram a garantir novos direitos e a estender o mesmo a mais pessoas, mesmo a estrangeiros. A equidade não veio mudar a lei criando um meio processual para preencher as lacunas, mas a codificação de Justiniano, o Corpus iuris civilis, deu grande relevância à equidade. Assim, no desenvolvimento do Direito romano-germânico ocidental, os romanos legaram, através do direito formal e rígido, certeza e precisão, enquanto os gregos lhe quebraram a rigidez excessiva, contribuindo com o princípio da equidade.
Na Idade Média prevaleceram as ideias de São Tomás de Aquino, que, baseado em Aristóteles, desenvolveu o conceito de equidade aplicando-o ao contexto cristão. O seu pensamento, ligando a equidade a algo útil para a aplicação do direito, tornou-a mais justa e a equidade tornou-se sinónimo de virtude e de prudência. Assim, por exemplo, a lei que determina a restituição dos depósitos, porque tal é justo na maioria dos casos, pode ser nociva no caso de o louco que deu em depósito uma espada a exigir no acesso da loucura. Nesse caso e em outros análogos, é mau observar a lei, sendo bom o contrário, pois é o que postulam a justiça e utilidade comum. E a isso se ordena a epieíqueia ou equidade.
A índole religiosa-cristã do Direito medieval preconizava que a equidade era a justiça suavizada pela misericórdia. E a equidade cristã (aequitas canonica), além da conceção aristotélica-tomista (direito natural e equidade preponderante), recebeu influência da conceção romana e da patrística. Assim, a equidade pode influir na norma legal de dois modos: no âmbito informativo e inspirador, ou seja, podendo induzir uma lei (é o caso de algumas legalizações); e na regulação do poder de liberdade de escolha que o juiz passou a ter no Direito contemporâneo, poder de que ele não poderia usar em livre arbítrio, tendo de seguir os princípios da moralidade e legalidade. Nestes termos, a equidade atua como uma noção idealista, imperando no espírito do legislador para se cristalizar em normas condicentes com as necessidades sociais, com o equilíbrio dos interesses. Enfim, além de ditar regras para a aplicação das leis, serve como uma base para o aplicador do Direito.
Também a equidade influi na interpretação da lei. De facto, interpretar significa entender para agir em conformidade. Ora, para se entender um texto, precisamos de capacidade interpretativa, sendo críticos e avaliadores atentos e minuciosos em relação a todas e quaisquer possibilidades e situações que podem estar implicadas. Todavia, a equidade não induz um simples método de interpretação, mas constitui a forma de evitar que a aplicação da norma geral do Direito positivo em casos concretos e específicos venha a prejudicar caprichosa e desnecessariamente algumas pessoas, sendo que toda a interpretação da justiça deve tender, quanto possível, para o que é justo. Nestes termos, a equidade na interpretação da lei significa o predomínio do espírito ou a intenção do legislador sobre a letra da lei e a preferência, entre várias interpretações possíveis do texto legal, da mais benigna e humana. Ajuda, assim, o aplicador da lei a tratar casos singulares de uma forma mais humana e justa.
Influi a equidade também na integração da lei. Na verdade, o ordenamento jurídico (não obstante o seu decretismo) é aberto, deixando vazios ou lacunas que precisam de ser preenchidas. O avanço da sociedade, que vai postulando novas regras, exige mais do Direito. A criação de novas regras induz o aparecimento de lacunas nas leis, pois, não raro o legislador, por falta de competência, pelo decretismo causado pelo avanço social e/ou pela negligência na feitura das leis, cava o fosso entre leis e sociedade. A cresce que tais lacunas são voluntárias ou involuntárias. As primeiras são deixadas propositadamente pelo legislador e as segundas devem ser preenchidas através da analogia, costume, princípios gerais do Direito e, na insuficiência destes, através da equidade. A equidade suplementa a lei preenchendo os vazios encontrados nela.
E a equidade influi ainda na correção da lei. Efetivamente, face à constante evolução social e ao furor legislativo que se apodera de parlamentos e governos em alguns momentos, muitas leis e normas tornam-se redundantes ou obsoletas, formando-se, assim, excreções e lacunas no ordenamento jurídico. E aí entra o papel da equidade na abolição ou na correção de leis.
Raramente o juiz considera a lei inadaptável ao caso concreto, o não quer dizer que tal facto não possa ocorrer. E, se isso suceder, o juiz conta com o poder da equidade para estabelecer norma individual para o caso específico. Assim, a equidade evita que leis redundantes baralhem o aplicador e que as obsoletas não prejudiquem pessoas que tenham casos específicos.
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O Direito moderno, eivado pela corrente do Direito positivo, minimiza a relevância da equidade, preconizando que a generalidade e abstração das normas jurídicas garantem a abrangência de todos os factos. Porém, não se obtém tal efeito porque a generalidade e a abstratividade da norma jurídica não absorvem todos os novos factos ainda não legislados. Por isso, alguns Estados desfiam um contínuo e irritante rosário de leis, decretos-lei, decretos, portarias, despachos e retificações. Ora, a equidade existe como um mecanismo para suprir lacunas da lei e orientar a ministração da justiça face à proliferação de leis, pois as novas relações e novos factos jurídicos possíveis são infinitos. Para tornar mais ampla e equitativa a realização da justiça, alguns sistemas políticos chegaram a autorizar expressamente a aplicação da equidade pelos juízes, podendo estes, quando autorizados pela lei, criar e aplicar uma norma específica para um caso concreto específico. Porém, o entendimento restrito da separação dos poderes impede a correção da lei pelo juiz, cabendo ao poder legislativo realizá-la. Não obstante, cabe ao juiz, no quadro da flexibilidade da lei, aplicá-la de forma que a sua aplicação não resulte em injustiça, supondo a postura que o legislador teria se fosse confrontado com o facto em causa.
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Em termos sociais, a equidade exige, face à lei e no respeito pelos direitos fundamentais, a igualdade de oportunidades, bem como o apoio ao desenvolvimento das capacidades de cada indivíduo e de cada grupo, com acesso aos bens de que a sociedade dispõe, tendo em vista à realização pessoal e social e à intervenção política num patamar final de igualdade.
Neste aspeto, não é aceitável o igualitarismo ou a igualdade forçada ou artificiosa (ignorando as diferenças) nem de tratar de modo desigual o que é diferente, mas de tratar de forma adequada cada pessoa, grupo ou situação conforme a sua especificidade: necessidades, capacidades (fazendo que estas se otimizem), esforços e méritos. E a equidade, além da justiça comutativa (do ut des, do quia fecisti), postula a justiça distributiva repartindo os bens de produção e civilizacionais por todos os intervenientes e abolindo ou, pelo menos, minimizando o fosso entre os que têm muito e os que pouco ou nada têm, bem como a justiça social no patamar mais proveitoso da justiça distributiva. Foi a noção de equidade que gizou o conceito moral e político de justiça social baseado na igualdade de direitos e solidariedade coletiva. Em termos de desenvolvimento, a justiça social é vista como o cruzamento entre o pilar económico e o social.
O conceito surgiu em meados do século XIX, referido às situações de desigualdade social, para a busca de equilíbrio entre desiguais, por meio da criação de proteções (ou desigualdades de sinais contrários), a favor dos mais fracos. Assim, enquanto a justiça entendida no sentido clássico do termo é cega, a justiça social tira a venda para ver a realidade e compensar as desigualdades que nela se produzem, ou seja, enquanto a justiça comutativa se aplica aos iguais, a justiça social corresponde à justiça distributiva na parte em que se aplica aos desiguais.
Em “Uma Teoria da Justiça, de 1971, John Rawls defende que uma sociedade será justa se respeitar três princípios: garantia das liberdades fundamentais para todos; igualdade equitativa de oportunidades; e discriminação positiva, ou seja, manutenção de desigualdades apenas em prol dos mais desfavorecidos.
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Com base no exposto, pergunto-me se quem hoje preconiza a equidade tem em conta estes pressupostos. Quem defende razoavelmente a equidade: ME, estudantes, CNIPE? Será que a equidade escolar se circunscreve a exames, classificações, ingresso no ensino superior? Em vez de reproduzir e acentuar as desigualdades sociais e económicas, por exemplo, premiando o recurso a explicações, a escola não deveria fazer mais esforço por as esbater ou anular? Onde está o cuidado acurado do ensino básico? Vale ingressar na universidade sem bases sólidas?
2020.04.09 – Louro de Carvalho

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