A 8 de abril, a CNIPE (Confederação Nacional Independente
de Pais e Encarregados de Educação) defendeu que
o ME (Ministério
da Educação) deve
encontrar as soluções para garantir equidade nas aprendizagens dos alunos e
assegurar a proteção de dados.
Opinando que as atividades letivas de forma presencial
só devem ser retomadas quando as competentes autoridades de saúde considerarem
que “já não existe qualquer perigo para a saúde pública em Portugal”, sustenta
em comunicado que “a escola deve continuar a exercer a sua atividade com
recurso aos meios de comunicação que tem disponíveis” e, se isto não se
verificar em todas as escolas, “cabe ao Ministério da Educação o dever de
encontrar soluções”. Mais considera que a eventual proposta de Telescola pode
ser positiva, mas que deverá ser encarada como um complemento ao trabalho
desenvolvido pelos professores.
Em relação aos exames nacionais de acesso ao ensino
superior, diz que “podem e devem” vir a realizar-se num outro calendário,
correspondendo às expectativas dos alunos e das suas famílias, mas protegendo
os mesmos. Já outras provas, como as de aferição e provas finais, devem ser
eliminadas neste ano letivo, devendo os resultados ser obtidos em ano de maior
estabilidade.
O comunicado da CNIPE felicita ainda “todos os
docentes” pelo trabalho desenvolvido em prol da escola e alunos através do
ensino à distância, lamentando, no entanto, não ter sido possível “alcançar
todas as famílias”. Com efeito, as escolas tiveram muita dificuldade em orientar
de forma clara e objetiva todos os docentes, complicando o seu trabalho e, por
vezes, até as suas vidas familiares, mas para as direções das escolas este foi
também um momento de grande confusão e de muitos ajustes.
Já anteriormente a questão da equidade foi invocada
para posições diferentes: o ME, em nome da equidade, não prescinde dos exames
nacionais; e a petição pública subscrita e a subscrever pelos alunos, também em
nome da equidade, pretende que, este ano, não se realizem os exames e que as
classificações do 2.º período do ensino secundário sejam o critério para
ingresso no ensino superior. E, por mim, já defendi – e mantenho-o pelo menos
pelas óbvias razões da emergência – que a média das classificações do ensino
secundário do final do ano (o esforço de lecionação à distância pode induzir
correções para melhor ou para pior) como
critério normal para o ingresso no ensino superior, realizando-se exames para
os candidatos ao termo do ensino secundário e/ou ingresso no ensino superior
que de momento estejam fora do sistema formal de ensino.
***
Mas é oportuno refletir sobre aquilo de que falamos
quando dizemos “equidade”. Não é só de igualdade. Igualdade vem da palavra
latina “aequalitas, aequalitatis” (nome
feminino), que significa “igualdade, nível,
uniformidade, paridade, semelhança”. Da sua família é, por exemplo, o adjetivo
“aequalis, aequale” (da mesma
natureza ou grandeza, igual, uniforme, plano, igual, constante…), que, sendo nome masculino, significa “companheiro,
amigo”. Igualdade”, em grego, dizia-se “isótês”
e “homalótês” (igual:
“ísos”; e “homalós”), sendo que
“igualdade de direitos” se dizia “isonomia”. Já equidade vem do nome latino
feminino “aequitas, aequitatis”, de
que “aequalitas” é cognata e que
significa: “equidade, justiça, moderação, resignação, tranquilidade de
espírito” e também “igualdade”. Muito ligado a esta palavra temos o adjetivo “aequus, aequa, aequum”, que significa:
“plano, liso, imparcial, justo, equitativo, propício, amigo, benévolo,
vantajoso, favorável…”. Em grego, “equidade” dizia-se “epieíkeia” e “dikaiosýnê”
(justiça,
retidão, honradez). E
“equânime” e “equitativo” diziam-se “díkaios”
(justo) e “epieikês”.
Admitindo
que as referidas palavras assumem diversificada polissemia, deve considerar-se
que as ligadas à equidade e equanimidade (“aequanimitas” – justiça benévola, benevolência,
igualdade de ânimo) primam pela
semântica da justiça, da retidão
e da razoabilidade. Por outro lado, deve ser tido em conta o sentido ou os
sentidos que as comunidades científicas e culturais lhes dão.
Em termos genéricos, “equidade” consiste
na adaptação da regra à situação concreta, segundo os critérios da justiça,
para a deixar mais justa. É uma forma de aplicação do Direito, o mais próxima
possível do justo e do imparcial quando estão envolvidas várias partes. Porém,
tal adaptação, de índole ética, não pode ser de livre arbítrio nem contrariar
o conteúdo expresso na norma. Deve ter em conta a moral social vigente, o
regime político e os princípios gerais do Direito. Além disso, não corrige
o que é justo na lei, mas completa o que a justiça não alcança.
Sem a
equidade no ordenamento jurídico, a aplicação da lei, criada pelo
legislador e outorgada pelo chefe do Executivo, acabaria por se tornar muito
rígida, o que beneficiaria grande parte da população, mas prejudicaria alguns
casos específicos que a lei não teria como alcançar. Piero Calamandrei, em “Estudios sobre el processo civil” (Editora Bibliográfica Argentina, 1961), diz:
“O legislador permite ao juiz aplicar a
norma com equidade, ou seja, temperar o seu rigor naqueles casos em que a
aplicação da mesma (no caso, ‘a mesma’ seria ‘a lei’) levaria ao sacrifício de
interesses individuais que o legislador não pôde explicitamente proteger em sua
norma”.
Na Grécia, a
equidade era epieíkeia e manifestava a ideia de adaptação do Direito
ao caso. Não pretendia dissolver o Direito escrito, mas torná-lo mais
democrático. Platão foi o primeiro a preocupar-se com a equidade e separou
equidade de justiça, colocando a primeira num patamar superior ao da justiça
normativa. Porém, Aristóteles considerou a epieíkeia
como pouco prática devido à corrupção no judiciário, pelo que não recomendou o
seu uso irrestrito pelos juízes.
Em Roma, a equidade teve papel fulcral no desenvolvimento do Direito. Para
compreender tal relevância deve distinguir-se o Direito Romano arcaico e o
Direito Romano clássico. O Direito Romano arcaico ou quiritário caraterizava-se
pelo formalismo, oralidade e rigidez, aplicando a igualdade aritmética e não a
equidade. Não abrangia todos os que viviam no império, criando a mole enorme de
excluídos da justiça. Porém, com a invasão da Grécia pelos romanos, a sincretização
entre as duas culturas, além da introdução do direito escrito, levou, graças à
filosofia grega, à quebra da rigidez do Direito, com o princípio da equidade.
A partir daí,
as fórmulas passaram a garantir novos direitos e a estender o mesmo a mais
pessoas, mesmo a estrangeiros. A equidade não veio mudar a lei criando um meio
processual para preencher as lacunas, mas a codificação de Justiniano, o Corpus iuris civilis, deu grande
relevância à equidade. Assim, no desenvolvimento do Direito romano-germânico ocidental,
os romanos legaram, através do direito formal e rígido, certeza e precisão, enquanto
os gregos lhe quebraram a rigidez excessiva, contribuindo com o princípio da
equidade.
Na Idade Média prevaleceram as ideias de São Tomás de Aquino, que, baseado
em Aristóteles, desenvolveu o conceito de equidade aplicando-o ao contexto
cristão. O seu pensamento, ligando a equidade a algo útil para a aplicação do
direito, tornou-a mais justa e a equidade tornou-se sinónimo de virtude e de
prudência. Assim, por exemplo, a lei que determina a restituição dos depósitos,
porque tal é justo na maioria dos casos, pode ser nociva no caso de o louco que
deu em depósito uma espada a exigir no acesso da loucura. Nesse caso e em
outros análogos, é mau observar a lei, sendo bom o contrário, pois é o que
postulam a justiça e utilidade comum. E a isso se ordena a epieíqueia
ou equidade.
A índole
religiosa-cristã do Direito medieval preconizava que a equidade era a justiça
suavizada pela misericórdia. E a equidade cristã (aequitas canonica), além da conceção aristotélica-tomista
(direito natural e
equidade preponderante),
recebeu influência da conceção romana e da patrística. Assim, a equidade pode influir
na norma legal de dois modos: no âmbito informativo e inspirador, ou seja, podendo
induzir uma lei (é o caso
de algumas legalizações);
e na regulação do poder de liberdade de escolha que o juiz passou a ter no Direito
contemporâneo, poder de que ele não poderia usar em livre arbítrio, tendo de
seguir os princípios da moralidade e legalidade. Nestes termos, a equidade atua
como uma noção idealista, imperando no espírito do legislador para se
cristalizar em normas condicentes com as necessidades sociais, com o equilíbrio
dos interesses. Enfim, além de ditar regras para a aplicação
das leis, serve como uma
base para o aplicador do Direito.
Também a equidade influi na interpretação da lei. De
facto, interpretar
significa entender para agir em conformidade. Ora, para se entender um texto,
precisamos de capacidade interpretativa, sendo críticos e avaliadores atentos e
minuciosos em relação a todas e quaisquer possibilidades e situações que podem
estar implicadas. Todavia, a equidade não induz um simples método de
interpretação, mas constitui a forma de evitar que a aplicação da norma geral
do Direito positivo em casos concretos e específicos venha a prejudicar caprichosa
e desnecessariamente algumas pessoas, sendo que toda a interpretação da justiça
deve tender, quanto possível, para o que é justo. Nestes termos, a equidade na interpretação da lei significa o predomínio do
espírito ou a intenção do legislador sobre a letra da lei e a preferência,
entre várias interpretações possíveis do texto legal, da mais benigna e humana. Ajuda, assim, o aplicador da lei a tratar casos
singulares de uma forma mais humana e justa.
Influi a equidade também na integração da lei. Na
verdade, o ordenamento
jurídico (não obstante o
seu decretismo) é aberto,
deixando vazios ou lacunas que precisam de ser preenchidas. O avanço da
sociedade, que vai postulando novas regras, exige mais do Direito. A criação de
novas regras induz o aparecimento de lacunas nas leis, pois, não raro o
legislador, por falta de competência, pelo decretismo causado pelo avanço
social e/ou pela negligência na feitura das leis, cava o fosso entre leis e
sociedade. A cresce que tais lacunas são voluntárias ou involuntárias. As
primeiras são deixadas propositadamente pelo legislador e as segundas devem ser
preenchidas através da analogia, costume, princípios gerais do Direito e, na
insuficiência destes, através da equidade. A equidade
suplementa a lei preenchendo os vazios encontrados nela.
E a equidade influi ainda na correção da lei.
Efetivamente, face à constante evolução social e ao furor legislativo que se
apodera de parlamentos e governos em alguns momentos, muitas leis e normas tornam-se
redundantes ou obsoletas, formando-se, assim, excreções e lacunas no
ordenamento jurídico. E aí entra o papel da equidade na abolição ou na correção
de leis.
Raramente o
juiz considera a lei inadaptável ao caso concreto, o não quer dizer que tal facto
não possa ocorrer. E, se isso suceder, o juiz conta com o poder da equidade
para estabelecer norma individual para o caso específico. Assim, a equidade evita
que leis redundantes baralhem o aplicador e que as obsoletas não prejudiquem
pessoas que tenham casos específicos.
***
O Direito
moderno, eivado pela corrente do Direito positivo, minimiza a relevância da
equidade, preconizando que a generalidade e abstração das normas jurídicas
garantem a abrangência de todos os factos. Porém, não se obtém tal efeito
porque a generalidade e a abstratividade da norma jurídica não absorvem todos
os novos factos ainda não legislados. Por isso, alguns Estados desfiam um
contínuo e irritante rosário de leis, decretos-lei, decretos, portarias,
despachos e retificações. Ora, a equidade existe como um mecanismo para suprir
lacunas da lei e orientar a ministração da justiça face à proliferação de leis,
pois as novas relações e novos factos jurídicos possíveis são infinitos. Para
tornar mais ampla e equitativa a realização da justiça, alguns sistemas políticos
chegaram a autorizar expressamente a aplicação da equidade pelos juízes, podendo
estes, quando autorizados pela lei, criar e aplicar uma norma específica para um
caso concreto específico. Porém, o entendimento restrito da separação dos poderes
impede a correção da lei pelo juiz, cabendo ao poder legislativo realizá-la. Não
obstante, cabe ao juiz, no quadro da flexibilidade da lei, aplicá-la de forma
que a sua aplicação não resulte em injustiça, supondo a postura que o
legislador teria se fosse confrontado com o facto em causa.
***
Em termos
sociais, a equidade exige, face à lei e no respeito pelos direitos
fundamentais, a igualdade de oportunidades, bem como o apoio ao desenvolvimento
das capacidades de cada indivíduo e de cada grupo, com acesso aos bens de que a
sociedade dispõe, tendo em vista à realização pessoal e social e à intervenção política
num patamar final de igualdade.
Neste aspeto,
não é aceitável o igualitarismo ou a igualdade forçada ou artificiosa (ignorando as diferenças) nem de tratar de modo desigual o que
é diferente, mas de tratar de forma adequada cada pessoa, grupo ou situação
conforme a sua especificidade: necessidades, capacidades (fazendo que estas se otimizem), esforços e méritos. E a equidade,
além da justiça comutativa (do ut des, do quia fecisti), postula a justiça distributiva repartindo
os bens de produção e civilizacionais por todos os intervenientes e abolindo ou,
pelo menos, minimizando o fosso entre os que têm muito e os que pouco ou nada
têm, bem como a justiça social no patamar mais proveitoso da justiça distributiva.
Foi a noção de equidade que gizou o
conceito moral e político de justiça social baseado na igualdade
de direitos e solidariedade coletiva. Em termos de desenvolvimento, a
justiça social é vista como o cruzamento entre o pilar económico e o social.
O conceito
surgiu em meados do século XIX, referido às situações de desigualdade social,
para a busca de equilíbrio entre desiguais, por meio da criação de proteções (ou
desigualdades de sinais contrários), a favor
dos mais fracos. Assim, enquanto a justiça entendida no sentido clássico do
termo é cega, a justiça social tira a venda para ver a realidade e compensar as
desigualdades que nela se produzem, ou seja, enquanto a justiça comutativa se
aplica aos iguais, a justiça social corresponde à justiça distributiva na parte
em que se aplica aos desiguais.
Em “Uma
Teoria da Justiça”,
de 1971, John Rawls defende que uma sociedade será justa se respeitar três
princípios: garantia das liberdades fundamentais para todos; igualdade
equitativa de oportunidades; e discriminação positiva, ou seja, manutenção de
desigualdades apenas em prol dos mais desfavorecidos.
***
Com base no
exposto, pergunto-me se quem hoje preconiza a equidade tem em conta estes
pressupostos. Quem defende razoavelmente a equidade: ME, estudantes, CNIPE? Será
que a equidade escolar se circunscreve a exames, classificações, ingresso no ensino
superior? Em vez de reproduzir e acentuar as desigualdades sociais e
económicas, por exemplo, premiando o recurso a explicações, a escola não
deveria fazer mais esforço por as esbater ou anular? Onde está o cuidado
acurado do ensino básico? Vale ingressar na universidade sem bases sólidas?
2020.04.09 –
Louro de Carvalho
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